sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*





49 - Eram felizes e não sabiam

Olhando o passado de longe como olho hoje, tão rico em emoções e aprendizado de vida, vejo que meu pai era muito feliz. E que, apesar do relacionamento tempestuoso, das brigas e das dores até físicas, minha mãe também era. Éramos todos felizes. Mas fui vendo que a felicidade real é algo muito diferente do que às vezes desejamos. Ela tem a ver com a despreocupação com a existência. Tem a ver com a soltura e liberdade com que vivemos, sem a invocar tanto. Sem sofrer tanto para conseguir tê-la. Ou até sofrendo, sem saber que ela está junto, por perto, sem se pronunciar. A felicidade para meu pai e minha mãe foi aquele instante. A felicidade para mim, para Bily, para minhas tias, para Otelo e para quem quisesse chegar. A felicidade foi o apartamento da rua João Luís Alves, na Urca. Foi o tempo do Cassino da Urca. Para quem veio dos pardieiros da praça Tiradentes, o caminho até os cassinos da Urca e do Quitandinha havia sido longo e espinhoso. E estar nesses palcos e morar no charmoso bairro da Urca, em frente da praia, representava a grande conquista do sucesso e da dignidade no viver. Era um momento de brilho intenso para eles e havia sido conquistado a dois. Como filho, sempre procurei me relacionar mais com o íntimo dos meus pais do que com seus personagens, e por isso tenho certeza de que nem meu pai nem minha mãe foram mais felizes na vida do que quando estiveram juntos. Brigando, trabalhando, com - pondo juntos. Suas vidas eram expostas no palco, as desavenças eram curadas no palco, seu mundo brilhava no palco. Sempre juntos. O que eles não sabiam é que, juntos, estavam fazendo a história da música de um país. Cheios de amor, às vezes cheios de dor, de rancor, mas cheios de vida também . Com a juventude e o frescor fundamentais para transformar as “infelicidades” numa história que tornaria o país, com sua música, uma emoção só. Ao lado de minha mãe, meu pai conheceu o auge de sua força musical. Ela o inspirava. Ele construía as notas e as palavras sob medida para o seu canto. Sabia com exatidão que brilho ela daria às canções. Juntos, ultrapassaram limites artísticos. Juntos, reinaram no palco: Herivelto nos arranjos e com - posições, Dalva no brilhantismo de seu canto. Minha mãe o ajudava muito em seu pro-cesso criativo. Ele costumava compor com frequência ao dirigir o carro. De repente, começava a cantarolar uma frase musical. Então, repetia algumas vezes, pedindo a ela para memorizar. Quando chegava em casa, pegava o violão e perguntava: “Dalva, como é mesmo aquela frase que cantei no carro? ”. E ela cantava. Dava palpites, sugeria caminhos. Chamo isso de cumplicidade. Há uma canção, “Nossas vidas”, que nasceu assim . Meu pai a fez no carro, minha mãe ficou repetindo-a seguidamente, até ele poder parar numa padaria e escrevê-la num papel de pão, enquanto minha mãe a cantava:

Como já fomos nós dois tão iguais
E como hoje em dia
Tornamo-nos tão diferentes 
Que a vida da gente se transformou
E até nossos beijos
Parecem beijos de quem nunca amou
Não me compreendes mais
Nem eu a ti
É inútil continuar, já vi
Procura esquecer
O endereço do meu apartamento
Eis o desfecho
Depois da indiferença
Deve vir o esquecimento

Quando me aventuro a falar na felicidade que acredito piamente ter existido na Urca, é porque devo ter percebido muito cedo que a força do talento que conduzia meus pais consistia justamente em uma espécie de dramaticidade necessária aos dois. Eles precisavam ter o que tinham em suas vidas. Precisava ser do jeito que foi para seguirem produzindo e crescendo com talento. A cri-atividade deles, com a força que o momento exigia, se alimentava totalmente da ausência de monotonia que marcou a vida deles juntos. As brigas e as reconciliações eram cerca-das de música, de violão, letras bonitas, sambas gloriosos, macarrão na madrugada, cumplicidade nas canções, pescarias, amigos e fidelidade ao palco. Tudo isso era Dalva e Herivelto juntos. Pura vida. Sem a assepsia que cerca os que apenas buscam o acasala-mento, o sossego, a convivência sem as emoções revigorantes, sejam elas quais forem, que aprofundam o relacionamento humano. Quando ele se casou de novo, encontrou uma paz e um sossego com que não soube lidar. Era silêncio demais para um mundo feito de tantas cores e sons. Houve uma acomodação; um vulcão entrou em calmaria. Ele continuou a viver, mas a sua função na vida ficou comprometida. Foi se tornando um ser esvaziado, com um olhar muitas vezes perdido e um coração apagado, sem som . Só se acendia quando ele voltava para o palco. Ali, no seu templo, quando eu cantava junto com ele, podia ver uma garra, uma luz que lhe ilu-minava a alma. Era bárbaro. Às vezes, fazia questão de me encolher no palco e oferecer mais espaço só para vê-lo brilhando. Para mim, uma imagem marcante do artista Herivelto, uma verdadeira imagem de felicidade, era ele com sua escola de samba. Eu gostava de vê-lo com as mulatas e os ritmistas tocando seu apito; ele se orgulhava de ter sido o inventor do apito. Depois que o usou pela primeira vez, nos anos 40, numa gravação carnavalesca, nunca mais se fez Carnaval sem apito neste país. O apito se tornou um símbolo da sua presença no samba. Na comemoração dos seus cinquenta anos de carreira, Lurdes organizou no Rio uma festa no Café Nice, o novo, não o antigo. Bolei uma surpresa para ele. Reuni alguns dos antigos crioulos e cabrochas e mais alguns participantes para reviver a Escola de Samba de Salão. O lugar estava cheio de parentes e amigos, como o companheiro Grande Otelo, Elizeth Cardoso, Jamelão, Raul Sampaio, Braguinha, entre tantos que foram levar seu abraço. Havíamos mandado fazer um apito de ouro para dar a ele como lembrança da data e de sua invenção. Em determinado mo-mento, subi ao palco e o chamei. Ao chegar perto, entreguei o presente em nome da família e lhe pedi que estreasse o apito, dando seu antigo brado de guerra. Não quer-ia, mas insisti. Ele apitou como nos velhos tempos: “Bateria, sentido! Tamborim e pandeiro! Tá na hora do samba que fala mais alto, que fala primeiro!”. Para sua total surpresa, os instrumentistas foram entrando um a um, sob o comando do ritmista Marçalzinho, sambando até o palco onde estávamos, ao som de sua famosa “Praça Onze”. Foi incrível a emoção que sentiu. Aliás, foi uma choradeira geral. Todo mundo se contagiou por aquela apresentação. E o mais importante: pude ver meu pai num momento de verdadeira felicidade. Somente no palco com Dalva eu o havia visto daquele jeito.



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