quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

CHICO BUARQUE ENCANTA O PÚBLICO NA ESTREIA DA TURNÊ CARAVANAS; LEIA A CRÍTICA

"Vai pra Cuba!", ordenam os críticos do cantor nas redes sociais. Pois Chico foi. Voltou de lá para o novo show com a tabelinha entre Iolanda e Desaforos, resposta enviesada aos agressores virtuais


Por Carlos Marcelo

(foto: Marcos Vieira/EM/D.A.Press)


Breves palavras entre as canções, olhares, sorrisos de cumplicidade e, logo no início, Chico Buarque tem a plateia do Palácio das Artes aos seus pés. Ele mostra as músicas novas, escava o passado. Escala seu time mexendo nas peças, mas sem alterar o esquema tático. Tudo dominado: eis o malandro em casa outra vez.

“Vai pra Cuba!”, ordenam os críticos do cantor nas redes sociais e nas caminhadas dele pelos “bairros chiques” do Rio. Pois Chico foi. Voltou de lá para o novo show com a tabelinha entre Iolanda e Desaforos, resposta enviesada aos agressores virtuais (“Custo a crer que meros leros-leros de um cantor possam te dar tal dissabor”), reforçada pela inclusão de Injuriado (“Não entendo/ Porque anda agora falando de mim”). Durante As vitrines, na qual surge o vigia que tanta polêmica histérica rendeu na linda Tua cantiga, a moça ao meu lado, não mais do que 20 anos, tira os óculos e enxuga as lágrimas. Como ele já dizia em Jorge Maravilha: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”.

O script é meticulosamente arquitetado pelo autor, como se fossem capítulos de um romance. Por meio dos versos ou das sonoridades, tudo está conectado. A iluminação se adapta às sequências de canções: os blues (é surpreendente a acolhida à novata Blues pra Bia), os sambas, os amores, as catarses (Geni e o zepelim, dolorosamente atual). A luz ressalta as celebrações aos parceiros (Tom Jobim, Edu Lobo, Cristóvão Bastos), acompanha os passos miúdos e coreografados, reforça a reverência a Wilson das Neves. Ilumina cordas coloridas que se cruzam ao fundo da envolvente cenografia criada por Helio Eichbauer, formando teias semelhantes às engendradas no repertório. Linhas que se movimentam no ritmo de ondas para emoldurar Massarandupió, comovente declaração do avô ao neto sobre a inexorabilidade do tempo, disfarçada de idílio praieiro. 

Os músicos, afiados e harmônicos, seguem à risca o roteiro determinado pelo comandante. Nem os insistentes gritos político-românticos-ardentes da plateia de todos os sexos (“Casa comigo!”, “Você é foda!”, “Brasil urgente, Chico presidente!”, “Orgulho do Brasil!”) os tiram do prumo. Mas eis que surge Sabiá. Súbito encanto: a emoção dribla o script. “Vou voltar, sei que ainda vou voltar...”. Em contraluz, Chico hesita. A voz fraqueja, os olhos marejam. O nó na garganta demora a desatar. “Não vai ser em vão que fiz tantos planos...”. Envolvido pelo turbilhão de lembranças, sob a escultura suspensa que evoca um caleidoscópio, Chico se cala. Parece estar em outro tempo. No tempo do início, no tempo dos relógios que rodam para trás, do tempo da delicadeza e também das primeiras asperezas, como naquela noite de setembro de 1968, quando sua parceria com o “maestro soberano” foi vaiada no Festival Internacional da Canção. Amparado pelas vozes do público, ele volta ao presente. 

Se, no show de 2011, havia um instante de rap na citação da releitura de Criolo para Cálice, agora Chico flerta com o funk na poderosa As caravanas. Mostra que não aposentou a navalha ao escolher um lado e apontar o dedo para os seus vizinhos de Zona Sul carioca (“Gente ordeira e virtuosa que apela para polícia despachar o populacho de volta pra favela”), antes de ironizá-los: “O sol, a culpa deve ser do sol, que embaça os olhos e a razão...”. Ao lado do resgate de Sabiá e da contrição de Gota d´água, é um dos grandes momentos do show. Muitos sonhos foram extraviados no caminho, talvez os do próprio compositor. Apesar deles, e apesar das gritarias a favor e contra ele, não vale a pena se afobar. Amanhã há de ser outro dia, Chico acreditou lá atrás. Futuros sábios tentarão decifrar o eco de palavras ofensivas, fragmentos de verdades, marcas de uma estranha civilização que escolheu viver sob o império do confronto e do rancor. Como tudo no Brasil, nada é pra já. 

Enquanto não chega o outro dia, Chico decreta aos que o mandaram pegar uma caravana para Havana ou ficar no seu apartamento de Paris. “Sou um artista brasileiro”, encerra em Paratodos, no segundo bis, no show de estreia, realizado na quarta-feira. Sob rosas brancas e vermelhas, ele sai. Na carreira, sorri. Antes, uma fã, também ligeira, sobe ao palco e o agarra. Quando desce, Vânia, de 56 anos, se transforma. Agora é chamada por outras fãs de “a moça do abraço”. Chico enfurece? Sim. Mas Chico também rejuvenesce. Suas palavras, tantas palavras, provocam amor, repulsa, desejo, angústia, fascínio, raiva, sonho. Todas as reações. Todos os sentimentos.

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