Por Maria Cristina Aguiar
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
MÚSICA E POESIA: A RELAÇÃO COMPLEXA ENTRE DUAS ARTES DA COMUNICAÇÃO - PARTE 01
Sempre me fascinou a relação texto/música. O cantor é levado a aprender vários idiomas, no intuito de obter uma melhor e mais perfeita articulação e emissão dos vocábulos inseridos na música. Para além disso, sempre se pôs a questão de se perceber o que se está a dizer, uma vez que, se há um texto escolhido pelo compositor, o seu sentido deverá ser descodificado pelo intérprete e, em condições ideais, pelo ouvinte também. Ponho, no entanto, uma questão: o que será mais relevante, o texto ou a música? Farse-á uma melodia para musicar um discurso, ou, por outro lado, será a música que o vai sugerir?! Nas Paixões de J. S. Bach é feita uma narração cuidada da Paixão e Morte de Jesus Cristo, em que os recitativos dão destaque ao texto; por sua vez, as árias incidem apenas num pequeno refrão ou tema que é repetido até à exaustão, rico em melismas, que, em determinados pontos, remetem mais para o sentido musical do que propriamente para o significado da palavras utilizadas. Certo é que tudo evolui; assim também a música. Apesar disso, e alheia a tudo, persiste esta relação complexa entre texto e música, entre palavra e melodia, entre “som” da palavra, (e não o seu significado), e “sons” musicais escolhidos. O que terá levado a esta desvirtuação do conteúdo da palavra? Qual o porquê da sua submissão ao efeito sonoro? Em que é que muda na nossa percepção quando ouvimos uma interpretação do Adagio de Samuel Barber para quarteto de cordas, e posteriormente na versão para voz, com o texto do Agnus Dei? E o texto? Não condicionará a nossa maneira singular de fruir a música? Por outro lado, não contribuirá a melodia para enriquecer o conteúdo de uma mensagem? A música e a linguagem aparecem ligadas por grandes laços de afinidade entre si.
Ambas têm características da espécie humana, diferenciando-se dos sons e dos ruídos
produzidos pelos animais, bem como do seu modo de comunicar; são capazes de gerar um
sem número de sequências novas e originais, uma vastidão de frases ou de melodias distintas;
demonstram ser espontâneas ao longo do crescimento das crianças, que entre o um e os dois
anos começam a palrar e a cantar os seus primeiros sons; podem ser expressas oralmente e por
escrito, uma vez que temos uma forma de linguagem oral e de música vocal, (a canção), e que
ambas se podem registar mediante a utilização de sinais previamente convencionados para o
efeito; permitem o desenvolvimento da capacidade de as manipular, dado que à medida que a
criança vai crescendo, e desenvolvendo as suas potencialidades, vai também amadurecendo a
sua forma de falar ou de cantar; diferem de acordo com as culturas nas quais se inserem,
recebendo influências do meio envolvente; podem dividir-se em três componentes: fonologia,
sintaxe e semântica.
O musicologista Schenker e o linguista Chomsky fizeram as suas investigações
relativamente à estrutura da música e da linguagem.
Estudos recentes vieram a revelar que música e linguagem partilham, como já vimos,
comportamentos e características formais, dividindo-se nas três categorias atrás referidas: a
fonologia, que diz respeito ao modo como um mundo infinito de sons pode ser organizado
num número restrito de categorias de sons, que constituem a base da comunicação; a sintaxe,
que nos permite saber se a frase é possível ou não na nossa linguagem, como soam os seus
componentes e como se ligam as palavras entre si; a semântica, que nos diz se a frase tem
sentido e qual é esse sentido.
Quando ouvimos uma frase e a tomamos como errada, poderá ser porque esta não tem
um significado evidente; no entanto, a mesma frase poderá estar correcta do ponto de vista
sintáctico. Por exemplo: “Eu vou chover”, será uma afirmação errada em termos de
semântica, e que mesmo que se lhe atribua um significado continuará impossível no contexto
da nossa linguagem, mas cuja componente sintáctica se encontra perfeita (sujeito, verbo,
complemento directo).
Daqui se poderá concluir que temos uma forma de ouvir condicionada a determinadas
regras de construção gramatical. Este será um ponto a ter em conta relativamente à moderna
concepção de intuição sintáctica, nomeadamente no que diz respeito ao campo da música
contemporânea.
As considerações semânticas concordam geralmente com as intuições sintácticas e têm
o seu paralelo na música. Talvez se possa dizer que há também uma gramática em música, a
qual poderá ser evocada para explicar, pelo menos, as nossas noções de certo ou errado,
suportando a ideia de que a música é uma arte com regras, cujo significado é trabalhado ao
longo da sua estrutura.
O compositor realiza a sua criação musical de acordo com determinadas regras já
estabelecidas, que conferem à sua obra maior garantia de ser aceite pelo público em geral, que
tem determinados conceitos e noções sobre a dita “boa ou má música”. Torna-se, então,
necessária uma reflexão acerca da natureza da sintaxe musical, da gramática da música.
Como na linguagem, também em música as nossas intuições, no que diz respeito a
certo ou errado, se dividem em três partes: sintaxe, semântica e estilo. Deste modo, uma peça
musical poderá estar correcta do ponto de vista sintáctico e não fazer sentido.
Pensemos numa melodia de sintaxe simples, apoiada numa escala maior, sem
acidentes, entre os limites da tónica e da dominante, usando apenas a harmonia I V I. Uma
nota errada, fora da harmonia, remeter-nos-á para o campo do significado (da semântica);
parecer-nos-á estranha e sem aparente razão de ser, tal como um tempo verbal errado ou um
substantivo colocado no lugar do advérbio.
Não há equivalente musical para o discurso verbal. Não há advérbios ou adjectivos. A
linguagem é diferente e se é certo que, em determinadas partes, a melodia pode, por exemplo,
evocar uma conclusão ou uma paragem, certo é também que estas frases ocorrem em qualquer
momento, sem se confinarem à localização textual; isto é, a melodia vai acontecendo sem
esperar pelo momento do texto em que poderia contribuir para a sua clarificação.
Os compositores podem escrever com a mesma sintaxe mas com estilo diferente. A
sintaxe tem regras, o estilo não. Com a sua abordagem única e particular, é próprio do
compositor que se identifica pela audição da sua obra. É o caso de Händel e Bach, cuja
música, dotada de uma sintaxe perfeita e que coincide ao nível temporal, se distingue
relativamente ao estilo.
Apesar destas diferenças entre música e linguagem, a busca de uma sintaxe musical
permanece válida, uma vez que as regras da gramática musical deverão ter o mesmo carácter
generativo das regras da sintaxe linguística.
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