quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*





48 - Estrela Dalva, o grande mito

Logo que se separou, minha mãe ficou muito perdida, sem saber o que fazer, cheia de medos profissionais e financeiros. E, principalmente, sem saber como conduzir a vida a partir daquele momento. Meu pai dizia sempre que ela nunca ia conseguir fazer nada sozinha. Criou problemas incríveis na cabeça dela com suas palavras. Ele era uma pessoa muito espezinhadora e, para dominar, se aproveitava da delicadeza das pessoas que o cercavam e da guarda baixa de qualquer um que ansiasse por se aproximar dele, como minha mãe, suas irmãs, eu, Messias. Assim, ela morria de medo de ficar sozinha e de trabalhar sem ele. Seus receios e medos tomavam conta dela. No fundo, minha mãe era muito frágil, apesar da grande força artística que passou a manifestar. O que tornava as coisas mais fáceis era o fato de ser uma pessoa muito querida, pois assim recebia apoio de todas as partes — dos amigos, parentes e, por que não dizer, dos compositores, que mais tarde tirariam proveito do drama da separação. Mas era muito frágil. E acho que a própria vida deu de presente para ela a condição de seguir sozinha, sem ter de tomar atitude alguma para modificar o estado das coisas. Além do mais, o que aconteceu a partir da separação, profissionalmente, favoreceu-a muito. Tudo colaborou: o fato de ser mulher num país extremamente machista, e de meu pai ter tomado as atitudes públicas que tomou, mexeu muito com a cabeça das mulheres de todo o país e movimentou uma grande massa de oprimidas e marginaliza-das. Minha mãe se tornou a imagem da reação feminina contra o homem que fere, maltrata e impõe suas convicções. Tornou-se a mulher que gritou pela primeira vez: “Errei, sim, manchei o teu nome, mas, porra, foste tu mesmo o culpado!”. Esse grito veio forte, sem medo, passando por cima dele. Ela cantava para as vítimas do preconceito. Para a mulher que até então era somente inspiração para samba. Mas que, a partir daí, ganhou representatividade, força no discurso, ganhou uma voz. E que voz! Cauby Peixoto, por quem Dalva tinha carinho de mãe, ia muito à nossa casa de Jacarepaguá e pedia para ela cozinhar seu prato preferido: galinha ao molho pardo. Quando se referia a minha mãe, Cauby gostava de dizer que ela nascera mil anos antes do seu tempo, porque era a pessoa que mais sabia compreender e aceitar a difícil condição do homossexual, fosse homem ou mulher. Dalva cantava para quem vivia à margem. Imagino que foi nesse contexto que os homossexuais se identificaram com ela e passaram a acompanhar sua carreira com ver-dadeira fixação. Ela era endeusada por eles e considerada A Rainha das Bichas! Chegou a receber oficialmente esse título e guardava com orgulho uma faixa com essa frase em seu quarto de lembranças, em Jacarepaguá. Minha mãe ganhou toda essa postura sem querer, apenas sendo o que era — emoção total, sensível, frágil, verdadeira. Não era es-crava de nada. Como dizia sempre: “Ah, o amor! O amor é o Amor. Só o amor importa!”. Penso que essa capacidade de minha mãe se comunicar com os feridos na alma e no coração seja a razão de seus discos continuarem a vender aos milhares e sua memória jamais ser esquecida. Ninguém mais canta com aquela verdade escarnecida. Ninguém mais abre o peito e joga tanta emoção na direção dos que sofrem por amor. Os mel-hores momentos da carreira de Dalva se cruzaram com verdadeiras tragédias na sua vida particular. Em sua autenticidade, porém, ela acabava virando o jogo. Até com o advogado de meu pai no desquite, Clóvis Ramalhete, isso aconteceu. Não sei em que circunstâncias a vida os aproximou, só sei que, alguns anos mais tarde, minha mãe o recebeu em casa para um almoço. Além de se desculpar com ela, ele veio a ser seu advogado. Com especial sentimento de triunfo, minha mãe escutou dele: “Se soubesse que tipo de pessoa você era, jamais teria sido advogado do Herivelto”. Outro episódio quem me contou foi o jornalista e compositor Sérgio Cabral, em 1963, e demonstra bem a autenticidade de minha mãe. Ao pedir, meio descrente, para participar, sem cachê, de um show no Teatro Municipal, promovido pelo velho CCP – Centro de Cultura Popular, recebeu surpreso o “sim” de Dalva. Era um espetáculo escandalosamente esquerdista. Só pôde ser realizado no Municipal porque o governador Car-los Lacerda estava viajando e o governo era ocupado interinamente pelo deputado Lopo Coelho. Abrindo sua participação no show, em uma manifestação de pura ingenuidade, Dalva disse ao microfone: “Já sei o que vocês querem ouvir: ‘Lencinho branco’”. Minha mãe nem imaginava que o CCP na época patrulhava as músicas que não tivessem em sua letra algum conteúdo político. “Éramos todos comunistas”, lembra Sérgio, mas o fato é que Dalva era tão maravilhosa que levou o seu tango até o fim . E foi muito aplaudida por uma plateia formada basicamente de estudantes universitários de esquerda. Atualmente, o Brasil é um país que rompeu com o sentimento cantado. Não se rende mais à emoção como esses estudantes de esquerda se renderam . A emoção não representa mais a força de expressão necessária para a identificação mais ampla. Ficou out. Concordo com Cauby: minha mãe estava, e ainda está, muito além do seu tempo. E nos legou uma herança musical que atravessa gerações, não nos deixando esquecer que existiu uma Dalva de Oliveira para amaciar nossa trajetória. Hoje, uma geração que nem mesmo a conheceu passou a procurar sua história, seus discos e a querer saber quem foi aquela mulher que cantou como ninguém, que falou o que ninguém mais fala e que se comunicou, através da emoção escancarada, à flor da pele. Como uma espécie de Edith Piaf nacional, ela retirava da própria vida — marcada pela tragédia, a frustração amorosa e uma incrível capacidade de estar sempre recomeçando — a força de sua arte. O drama pessoal vivido na separação de meu pai foi, sem querer, uma espécie de aditivo na carreira de minha mãe. Dalva de Oliveira ficou acima do bem e do mal, não era vista como de “carne e osso”. A Estrela Dalva é sempre desculpada, compreendida, amada. Dalva transcende. Ao contrário, o homem Herivelto em nenhum momento dos depoimentos é poupado, mesmo todos levando sempre em conta o seu gigantismo e brilhantismo como artista e compositor. Ele é de “carne e osso”. Ela virou mito. Há uma grande ironia da vida em tudo isso. Apesar de Dalva ter sido lançada e lapidada por Herivelto, ela estourou sozinha e brilhou mais ainda sem ele. Ao contrário de Herivelto, que teve seu ápice artístico com ela no Trio de Ouro. Como compositor, criou maravilhas para brigar com ela, teve mais alguns sucessos com outros intérpretes, mas foi perdendo a força em sua obra. Dalva passou a ser grande sem Herivelto, mas Herivelto nunca mais foi o mesmo sem Dalva. Digo isso não apenas porque convivi com os acontecimentos. Baseio-me no testemunho unânime dos que conviveram com meus pais. Nelson Gonçalves me disse: “O Trio de Ouro era a Dalva, e depois de sua saída o grupo acabou”. Dorival Caymmi completou: “Herivelto era um grande compositor, mas o Trio era a Dalva”. E o mais curioso é que, através do tempo, passamos a perceber que meu pai em toda a sua obra ficou atado à imagem de minha mãe, sua criação. Vou mais longe: ficou muito mais preso a ela, em importância, do que ela a ele. Um perfeito exemplo dessa ligação é o livro Herivelto, uma escola de samba, escrito por Jonas Vieira e Natalício Norberto. Quando me encontrei com Jonas e comentamos o livro, ele me disse que teve muito pouca liberdade no trabalho, que meu pai, para variar, direcionou tudo como quis e não permitiu que se falasse muito sobre Dalva, dizendo que a obra era sobre ele. Mas essa postura deixava Jonas e seu parceiro Natalício numa grande sinuca: “Como falar de Herivelto sem Dalva?”.Meu pai era dono de um alter ego dos mais inflados de que se tem notícia. Quem o conheceu de perto sabe bem como era — somente ele sabia fazer ou ser. Considerava-se o único, o melhor, o mais inteligente, o mais produtivo. De um egocentrismo desmedido, jamais deu o braço a torcer reconhecendo o papel de minha mãe em sua trajetória. Mas o que importa é que, à parte os resmungos de meu pai, a realidade irrefutável está expressa na capa desse livro: a foto do Trio de Ouro com minha mãe. E na contra-capa reina novamente uma foto de Dalva, sem Herivelto. O livro pode ser de Herivelto Martins, mas quem brilha em suas capas é Dalva de Oliveira.




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