sábado, 23 de dezembro de 2017

SOCIÓLOGA ANALISA PAPEL DE ARTISTAS "DESBUNDADOS" E "MARGINAIS" DA MPB NA RESISTÊNCIA À DITADURA - PARTE 03


Entre desbundados e marginais

O termo “desbunde” ganhou conotações diversas em um momento em que se acirrava a repressão do regime militar. Sheyla afirma que a palavra surgiu dentro das organizações de luta armada, “para acusar, tachar os companheiros que recuavam. Para a esquerda armada, desbundado era a pior coisa que se podia dizer sobre alguém, fazia referência a posicionamentos julgados individuais e egoístas”. O termo passou a circular no meio artístico, e foram chamados de desbundados aqueles que, para alguns, seriam despolitizados, alienados, “como se só estivessem interessados em ‘curtir’, fazer sua revolução individual, comportamental. Mas não se encerrava aí”, comenta a socióloga. “O desbunde, muito vinculado ao ideário hippie, era uma gíria ambivalente. É preciso situá-la em meio aos conflitos político-ideológicas da época. O desbunde não deixou de ser uma postura política, sobretudo no âmbito das chamadas micropolíticas”, completa.

Ainda que parte da imprensa e dos intelectuais herdeiros do nacional-popular tenha caracterizado aquele contexto como expressão de um “vazio cultural”, são alguns dos artistas considerados desbundados que, para a pesquisadora, vão abrir caminho para que a marginalidade temática e formal apareça nas canções. A pesquisa de Sheyla contesta justamente aquele estigma, o do “vazio”, referente ao período que estuda, apresentando o quanto álbuns como FA-TAL, de Gal Costa, lançado em 1971, Acabou chorare, dos Novos Baianos, de 1972, ou o álbum nominal de Jards Macalé, também de 1972, por exemplo, são distintos, mas carregam elementos de um mesmo condicionante histórico, apontando para o que o crítico literário britânico Raymond Willians chamou de estrutura de sentimento, uma espécie de espírito do tempo, capaz de contribuir para se analisar obras como essas como dotadas de particularidades convergentes. “Há um teor depressivo em parte dessa produção contracultural, ao mesmo tempo há uma enorme criatividade, há um aspecto lúdico”, explica.

Ao comentar que na canção popular brasileira, a partir do fim dos anos 1960, a marginalidade tem mais a ver com linguagem, experimentação, temáticas e espaço-temporalidades, Sheyla não exime os artistas da lógica da indústria cultural, mas os compreende vinculados a esse cenário, que coloca limites, mas incita questionamentos e outras possibilidades de criação embasadas nas novas tecnologias. O fato de a cultura não ser etérea, mas substancialmente material, conforme Sheyla, não exclui atentar para a mobilidade e fluidez existente em algumas dessas criações e ações dos artistas. Essa contingência, para a pesquisadora, também caracteriza a produção cultural do período, especialmente por trazer à tona o que músicos como Luiz Melodia e o próprio Jards Macalé, em consonância com artistas como Waly Salomão e Hélio Oiticica, produziram a partir de relações mais diretas e simétricas com populações marginalizadas.

Para a socióloga, estes artistas – considerados desbundados e marginais na MPB – recusavam explicações e roteiros totalizantes sobre o mundo, tanto à direita quanto à esquerda, o que influi e ao mesmo tempo justifica a matéria cantada e os próprios modos de vida dos artistas, ancorados em experiências como as de “expansão da consciência, experimentalismo estético-formal, comunitarismo, liberação sexual e filosofias orientais, que vão se disseminar por vários lugares do Brasil, especialmente entre os jovens”, aponta.

É nesse sentido que a autora da tese defende a hipótese de que a contracultura, no Brasil, pode ser concebida como “uma estrutura de sentimento, que difere da ideia de que recebemos uma proposta empreendida nos Estados Unidos e assumimos isso de forma acrítica. O contexto aqui era outro, e o que vai ser produzido também é próprio. Mas isso não implica, de modo algum, negar todo um insumo de ideias e referências internacionais”. O solo histórico da contracultura made in Brazil naquele período, para Sheyla, está intimamente atrelado ao próprio jogo político, no qual a cultura nunca está isenta, mas articula maneiras particulares de resistências. “As interpretações construídas sobre aquele momento, principalmente a de que havia um esvaziamento do político, precisam ser revistas”, conclui, sem deixar de refletir no quanto esse fluxo intermitente na produção cultural do início dos anos 1970 parece ter contribuído para a abertura em anos de chumbo, ainda que ela tivesse sido lenta, gradual e, de certa forma, insegura, como os tempos atuais têm sido capazes de assim fazer pensar. 


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