51 - Bandeira branca, eu peço paz
No início dos anos 70, como uma fênix, minha mãe renasceu do esquecimento em que mergulhara e voltou a brilhar nos palcos e na programação das rádios. Sua saúde já estava totalmente comprometida e a fazia alternar os palcos com os hospitais. Teve que se sub-meter a punções para retirada de líquido — seu abdômen estava enorme —, e na primeira, realizada no Hospital Pedro Ernesto, na Tijuca, os médicos confirmaram o diagnóstico de cirrose hepática. Já se desconfiava disso desde o desastre no Túnel Novo. Ainda internada, ela recebeu a visita de Max Nunes e Laércio Alves, que a convidaram para interpretar uma música deles num festival de Carnaval. Encantada com o desafio, ela aceitou, pedindo um tempinho para se fortalecer. Ao deixar o hospital, foi direto para o estúdio da Odeon gravar “Bandeira branca”. Eu tinha acabado de chegar do exterior. Ao ser sagrada uma das vencedoras, minha mãe fez questão de que eu subisse ao palco do Maracanãzinho com ela para receber o prêmio. Sem ter nada a ver com a festa, conduzindo-a por uma passarela enorme até a frente do palco, percebi quanto estava insegura e frágil ao se apoiar em mim . De cima daquele palco, abraçado a ela, provei a sensação divina de ouvir 20 mil pessoas gritando o nome de Dalva. Emocionada, ela chorava, apertando minha mão, ao receber aquela homenagem grandiosa e cheia de amor, o Maracanãzinho inteiro cantando a marcha-rancho “Bandeira branca”. Sobre essa participação no concurso, Maurício Sherman me contou uma história. A marcha não havia entrado para a seleção das trinta finalistas do festival de Carnaval de 1970, na TV Tupi. Ficou apenas na relação de reserva feita pela organização para eventuais problemas. Era a número 1 nessa lista. Por obra do destino, quando a produção do concurso teve de desclassificar por fraude uma das finalistas, Sherman, então diretor da Tupi, mandou avisar os autores de que “Bandeira branca” havia entrado para a final. A música entrou no concurso de Carnaval defendida por Dalva, tirou o terceiro lugar e se consagrou para o resto da vida. Transcendeu o universo carnavalesco e se tornou um clássico da música popular. E hoje, tenho certeza, ninguém se lembra nem do primeiro nem do segundo lugar desse concurso… Nesse período, minha mãe estava pro-fundamente triste. Mesmo que algumas coisas estivessem acontecendo para que ela pudesse se recuperar, mesmo que o sucesso trouxesse alguma alegria, mesmo assim um vazio e um sentimento de perda haviam tomado conta dela. Em toda a sua trajetória de vida, não conheceu a glória sem enfrentar a dor. A destruição, a fraqueza diante da bebida e um descontrole total da própria vida eram evidentes. Depois de ficar longe dela tantos anos, passou a me requisitar muito, fazendo questão de que eu estivesse com ela em todos os lugares. Foi assim quando resolveu dividir comigo a felicidade da consagração de “Bandeira branca” — pude sentir a imensidão do amor de minha mãe e quanto era generosa. Ao mesmo tempo, vi como estava frágil e angustiada. Nessa minha volta ao Brasil, ainda tive a felicidade de dividir o palco com minha mãe em alguns shows no Rio, São Paulo e Salvador. Trabalhar com ela era sempre uma grande fonte de prazer e aprendizado para mim . Além de uma verdadeira emoção, penso que desde os tempos de criança, ao vê-la no palco, no íntimo, sonhava com isso. Nosso último trabalho juntos foi uma temporada no Vivará do Rio, mais tarde Scala, num show produzido por meu irmão Bily e por Nuno. Ficamos uns dois meses em cartaz. Sentia que ela estava feliz e orgulhosa de trabalhar comigo. Nós três nos unimos para evitar que ela bebesse. Mas seu organismo estava cada vez mais fraco. Quem tem alcoólatra na família sabe que o problema vai se agravando, porque a pessoa já não se alimenta mais, vive da bebida. E o organismo fica sem defesa. Assim, minha mãe começou um entra e sai de hospitais. Com a cirrose, o abdômen acumulava muito líquido e ela tinha de ser inter-nada para os médicos fazerem punção em sua barriga. Esse quadro durou por volta de um ano. Até que seu estado se agravou e ela foi inter-nada na Casa de Saúde Arnaldo de Morais, de onde não mais conseguiu sair. Nesse hospital, foi tratada com grande carinho e devoção pelo dr. César Barroso, que comandava uma junta médica empenhada em salvá-la. Nos três meses em que passou in-ternada, o quadro clínico de minha mãe foi piorando. Surgiram hemorragias, que consumiam sua pouca força e exigiam dos amigos e dos fãs muita doação de sangue. Seu estado de saúde mobilizou mais do que os fãs de Dalva: mobilizou o país e a imprensa. O boletim médico ocupava as primeiras páginas dos jornais. Os fãs faziam plantão 24 horas por dia em frente do hospital. Atendíamos a ligações de pessoas de todo o país informando que estavam fazendo novenas e vigílias pelo seu restabelecimento. Éramos procurados por padres, pastores, mães de santo e rabinos, oferecendo a solidariedade de suas fés. Os colegas artistas entravam e saíam do hospital a toda hora. Conversando com Emilinha Borba, ela se lembrou de quando foi com o cantor João Dias fazer uma visita à minha mãe. Estavam de saída para São Paulo, onde iriam participar de um programa na TV Record. Vendo a grande despesa que ela estava tendo no hospital e recordando a generosidade que Dalva sempre tivera com todos, combinaram durante a viagem de pedir aos colegas para doarem seus cachês do programa de TV para o tratamento. Todos os artistas cooperaram . E Emilinha voltou ao hospital para nos entregar o dinheiro arrecadado. Toda essa solidariedade nos emocionava. Mesmo nos momentos em que não podia receber visitas, os amigos se acotovelavam na sala de espera à cata de notícias mais detalhadas. O apoio e o carinho com minha mãe nos sensibilizavam e nos davam força naquele momento difícil. Em meio a esse turbilhão, eu estava ensaiando com Leny Andrade o show Gemini 5, que iria estrear no Teatro Santa Rosa sob a direção de dois talentosos amigos, Mièle e Ronaldo Bôscoli. Podem imaginar o estado psicológico em que me encontrava? Ter-minava os ensaios e corria para o lado dela. O estado de minha mãe se agravava cada vez mais e ela entrou em coma pela primeira vez. Ficamos em alerta total. Não queria sair de perto dela. Interrompi os ensaios. Solidários e entendendo o meu momento, Mièle e Bôscoli chegaram a me oferecer o adiamento do show. Graças a Deus, ela ficou em coma menos de dois dias. Quando acor-dou e me viu a seu lado, perguntou: “O que o senhor está fazendo aqui? Não é hora do seu ensaio?”. “Ora, mãezinha, estou sem cabeça pra trabalhar. Estou preocupado com você. Quero que fique boa.” “Nada disso! Trate de ir ensaiar. O senhor tem um show para estrear. Isso é o que importa.” Estreei o show debaixo desse clima. Edith estava morando comigo num apartamento da avenida Nossa Senhora de Copacabana e me ajudava no camarim do Teatro Santa Rosa. Ela conta que, quando minha mãe acordava, ia logo perguntando: “Cadê o Pery ?”. Edith explicava o que eu estava fazendo e que estaria no hospital mais tarde. Minha mãe conversava um pouco com ela, mas logo a despachava para ir cuidar de mim, das minhas roupas, da minha comida. Porque, na análise de minha mãe, eu não podia ficar sozinho. A morte de minha mãe foi um processo que aconteceu devagarzinho. Entra e sai de hospitais, comas, noticiário falando dela o tempo todo. As pessoas acompanharam com profunda tristeza os acontecimentos. Uns vinte dias antes de ela falecer, o dr. César, ar-rasado em sua impotência, se reuniu conosco e anunciou a morte clínica dela, dizendo que não havia mais nada que pudessem fazer. Era apenas uma questão de tempo. Ela es-tava em coma nesse dia. Foi quando sofri de verdade sua perda. Quando finalmente se foi, a morte já havia se pronunciado dias antes. Quem já teve um ente querido sofrendo durante muito tempo com alguma doença grave sabe o alívio que a morte desse ser amado nos traz. O que aprendi sobre o ser humano nesse lento processo de agonia foi impressionante. Se surgia a notícia de que ela havia sofrido uma hemorragia, o noticiário todo se empolgava e crescia em intensidade. Homenagens com seus discos tocando nas rádios. As pessoas indo para as igrejas fazer promessas. Enquanto durava o perigo do grande mal, durava o interesse. Quando ela ia melhorando, arrefeciam as homenagens, os discos tocavam menos, os jornais iam deixando de falar nela. Como todos sabem, felicidade não vende jornal. Acontecia outra hemorragia, pronto!, começava tudo de novo. Jornais, rádios, interesse geral. À medida que ela melhorava, acabava tudo. Um amigo me preveniu: “Não se espante, Pery, de ver que, à medida que as hemorragias passam e o estado dela melhora, o povo, os jornais vão per-dendo o interesse. O povo precisa chorar forte, de verdade. Não interessa chorar um pouquinho apenas”. Até que minha mãe se foi e o povo teve sua grande notícia: Dalva morreu. Foi uma comoção nacional. O Rio parou. Telegramas vinham de todas as partes do país. O fã e ex-presidente Juscelino telefonou de Paris, além de mandar telegrama. O presidente Médici mandou telegrama. Políticos, religiosos, artistas se solidarizavam com a família pela morte de Dalva. O país chorou, e chorou muito. As revistas O Cruzeiro e Manchete dedicaram números especiais a minha mãe. Eu só havia visto algo parecido na morte de Carmen Miranda. E muitos anos depois, com Ayrton Senna. O velório no Teatro João Caetano durou o tempo necessário para passarem por ela, acre-dita-se, mais de 100 mil pessoas. Foi feita uma máscara mortuária, como derradeira homenagem. No longo caminho para o Jardim da Saudade, em Jacarepaguá, o povo chorava. O subúrbio do Rio com - pareceu em peso ao trajeto, divulgado pela imprensa, por onde passaria o carro de bombeiros com o caixão. A grande notícia acabava de ser dada e o Brasil inteiro chorava o desaparecimento de sua Estrela Dalva. Nunca vou me esquecer de alguns detalhes daquele dia. Ela havia estado em coma por uns três dias e acordara na manhã do triste 30 de agosto de 1972. Passamos todo o resto do tempo ao seu lado. Lembro que, quando ela acordava do estado de coma, seus olhos pareciam ainda maiores, mais brilhantes e mais verdes. Num momento em que estava sozinho com minha mãe no quarto, ela acordou de um sono curto. Perguntei baixinho: “Tudo bem, mãezinha? Está se sentindo bem? Quer alguma coisa?”. Ela me olhou com aqueles olhos lindamente verdes, segurou minha mão, levou-a até seu rosto pálido e me disse docemente: “Força, meu filho! Pra frente, campeão! Eu parto, mas vocês continuam”. Como eu não conseguia me lembrar de mais detalhes do dia de sua morte, liguei para meu irmão Bily para esclarecer algumas questões. E aí pude entender o porquê do meu “esquecimento”. Como Bily ouviu do médico que nossa mãe não passaria daquele dia, ficou preocupado comigo. Sabendo da minha forma intensa de reagir, pediu ao médico para me aplicar um calmante bem forte. Por isso tudo é tão embaralhado na minha cabeça ao me recordar desse dia. Por volta das cinco da tarde, Bily, Gigi e eu assistimos ao seu último suspiro. O silenciar do seu canto. A partir do seu silêncio, o Brasil cantou sozinho, e ainda canta, o grito de paz que ela pediu em toda a sua existência, dedicada unicamente a cantar o Amor, e traduzido em: Bandeira branca, amor Não posso mais Pela saudade que me invade Eu peço paz Saudade mal de amor, de amor Saudade dor que dói demais Vem, meu amor Bandeira branca Eu peço paz! Acredito que a morte de minha mãe deve ter mexido muito com a cabeça do jornalista David Nasser. Além dos pedidos de desculpas que procurou fazer à minha mãe enquanto ela viveu, ele se sentiu responsável o bastante para escrever uns quinze dias de-pois de sua morte, na revista O Cruzeiro, uma declaração até bonita, não fossem as dores que ele mesmo havia causado a ela. O que ele publicou nessa edição dedicada inteiramente à minha mãe era, sem dúvida, um enorme, um gigantesco pedido de desculpas. Inteligentemente, oferecia um retrato da conduta e da personalidade daquela que nos deixara havia poucos dias. Ali já não havia outra cabeça a fornecer subsídios comprometidos pelo despeito de marido ferido, como meu pai fez. Ali estava o ser humano se redimindo, já fora do prazo, pelo papel de narrador oficial de tanta imundície. Foi bonito, mas ele escreveu para o mundo que o julgava, não para Dalva, que já não podia ler nem saborear sua atitude. Apenas sei que minha mãe jamais guardou ódio em relação a David ou a qualquer pessoa em sua vida. Era realmente imbuída de uma profunda capacidade de perdão para com o mundo. “Viveu sem ódio, morreu em paz”, como David escreveu.
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