Uma filosofia espiritualista afirma que todos nós, antes de nascer, escolhemos nossos pais: se isso for verdade, eu declaro em alto e bom som musical que sou imensamente feliz por ter escolhido quem escolhi. Pois tenho uma herança a saborear. Não foi uma herança que me deixasse muito dinheiro, e jamais me importou esse fato. Foi uma herança de brilho interior e de muita luz a iluminar o palco de minhas lembranças. Nessa cena aberta – o grande show da vida –, fui ao mesmo tempo plateia e ator. E por isso tenho amado a vida em sua essência – feita de tamanha fragilidade e força, ao mesmo tempo. O tempo, inexorável e preciso, transcorreu firme e suave, silencioso e paciente. O grande barulho da existência de meus pais já não desperta muita gente. Definitivamente transformados em mitos, suas letras e músicas ainda fazem sonhar e chorar a alma dos mais sensíveis. Às vezes viajo no tempo e ainda ouço o vozerio nervoso de Dalva e Herivelto saindo para um show, minha mãe se pintando pelo caminho; sinto o perfume que usavam, escuto meu pai repassando o repertório no carro. Eu ainda me vejo criança na coxia, ad-mirando cada passo, cada movimento do Trio, cada frase musical, os duetos, as vozes, os arranjos, as letras. Seria capaz de cantar cada música, no lugar de qualquer um deles Hoje sou um homem de meia-idade que adoraria ter minha mãe e meu pai por perto, e desfrutar de sua velhice curtindo os meus filhos, seus netos. E, mais do que os consagrar com honrarias, gostaria de lhes oferecer este enorme perdão que o tempo trouxe, quando o mundo e as pessoas lhes fazem justiça. Depois de tudo que vivi, não me presto a qualquer julgamento do comporta-mento de meus pais. Eles foram os meus pais. Com eles aprendi a ver a beleza da vida. A ver música em cada som . Em meio ao sofrimento deles, aprendi a ter e oferecer per-dão. Talvez esta seja a palavra mais importante em toda a minha vida com os dois: perdão. O meu hoje é feito de perdão. É feito de muito, muito amor. Faz bastante tempo que eu os perdoei por não terem organizado melhor a nossa infância. Que os perdoei por não saberem como demonstrar o amor que sentiam por nós dois, e do qual eu e o Bily precisávamos tanto. Faz tempo já os perdoei por não terem tido o cuidado de evitar que víssemos tanta coisa que vimos e que nos marcou profundamente. Não guardo rancor de nada, absolutamente nada. As possíveis mágoas ou dores, eu as transformei em experiência de vida. Meu tempo vem transcorrendo também, suave e firme. Aprendi muito cedo o valor de estar em sintonia com a vida. A minha visão de mundo é diferente da minha visão de vida. Procuro obter da vida o melhor que eu possa colher. Aprendi que, em qualquer circunstância, a vida não tira nem oferece absolutamente nada: a vida é o que é. Nós é que devemos tomá-la como a maior razão de tudo. O mundo são as pessoas. A vida é Deus. Lógico que ficaram marcas. É natural que eu não seja um tipo de homem certinho e centrado. Tenho minhas loucuras como qualquer pessoa, que erra e acerta, condizente com minha condição de ser humano. Sou a pessoa que eu mesmo construí. Minhas experiências de vida fizeram de mim um indivíduo corajoso, encarando os obstáculos com armas leais, sem covardia. Movido por um vulcão de força e determinação, e um profundo sentimento de justiça, fui obrigado a desprezar qualquer senti-mento de autopiedade e a edificar o respeito por mim mesmo. Aprendi que não existiriam acertos se não houvesse erros. O que interessa é o tamanho de nossa investida di-ante da vida. A dignificação da caminhada. Desde cedo, aprendi a valorizar a busca da beleza. A amar a grandeza do mundo que me serve de moradia, pois sempre tive dentro de mim um conhecimento do maior, do belo, do Superior. Aprendi a respeitar o meu corpo, esse templo que Deus me deu. Sei que por isso tive uma relação muito cautelosa com a bebida e com as drogas. Se por curiosidade ou fraqueza recorri a alguma droga em dado momento, ou então me excedi na bebida, nada me fez prosseguir nesse caminho, achando que isso me daria uma realidade melhor do que a que eu mesmo pudesse construir. A minha realidade é feita de ontens, hojes e amanhãs. E eu preciso estar de cabeça-feita com autoconhecimento e respeito por mim, para poder lidar com o mundo. As coisas mais lindas e mais saborosas da vida só serão realmente desfrutadas se eu estiver de cara limpa, ou pelo menos consciente do deleite a que estou me entregando. Sem fugas. Pleno de mim mesmo. Mas isso nunca foi ou é fácil, porque, queiramos ou não, certos padrões que recebemos no princípio de nossa existência nos acompanham e marcam pro-fundamente nosso comportamento. O amor formou vertentes dentro de mim que com frequência correm em direções conflitantes. Sempre senti em meu interior um barulho muito grande. É um barulho forte em relação ao amor. Meu relacionamento com o amor é algo muito complicado. Nunca foi uma relação calma, serena. A inquietação sempre povoou minha cabeça e meu coração. Sempre senti falta de uma plenitude. Talvez pela minha essência artística, ou por tudo a que assisti em minha infância, eu tenha fantasiado muito na busca do amor, deixando-o muito distante desse sentimento feito do dia a dia com uma mulher de carne e osso, quando se constrói uma vida e, enquanto envelhecemos juntos, podemos saborear o caminho percorrido. Houve momentos no passado em que vivi numa enorme inconstância. Enxergava o amor como a conquista de um prêmio, ou de um troféu. Se aquele tivesse sido conquistado, havia a obrigação de se conquistar outro. Com as trocas constantes, vinha o sabor de perda, de fragilidade, de solidão. Acompanhado do gosto amargo de uma ressaca. De várias ressacas. Casei, descasei, casei de novo, me apaixonei por pessoas certas e erradas; fiz filhos, sou mal interpretado por um deles, talvez sufoque de proteção o que vive comigo. Me deixei envolver, fiz sofrer, sofri; errei, consertei, não consertei; fiquei doido, fiquei apático; bati, apanhei, não respondi; odiei, desprezei, desprezo ainda; traí, fui traído. Amei e fui amado como ninguém . Enfim, “confesso que vivi”. Hoje também tenho a minha casa, meus sonhos e realizações. Cresci e me tornei pai e marido. Sou um artista que trabalha no ofício aprendido desde o berço com meus pais. A cada dia me aprimoro no que mais sei fazer – cantar. E canto com a certeza de que com meu canto eu me lanço ao mundo e sigo meu grande destino. Vivo hoje em Miami, com alguma paz, não total, mas bem maior da que o Brasil de agora poderia me oferecer. Cheguei aqui seis anos atrás, em busca de um mundo que pudesse receber a minha música e o meu eu, sem preconceitos nem limitações. No entanto, sou um eterno apaixonado pelo Brasil, viajo sempre para o meu país para tomar a bênção à saudade. Para regar e colher os frutos da minha semeadura de mais de 40 anos de carreira. Costumo dizer que sou um “exilado cultural”. Mas, ao contrário do exil-ado político, não fujo de nada, apenas ainda me permito desafios. Sinto um vigor juvenil ao enfrentar novas plateias, novos aplausos, novas conquistas. Serei sempre um apaixonado pela música. Mais do que isso: sou viciado em música. Ela me entorpece, acalma, empolga, me faz pensar, esquecer, lembrar, enfim, me motiva a viver. Tenho certeza de que nada me foi mais fiel e gratificante do que a música. Porque mesmo cercado da família, dos amigos, das conquistas, a solidão é a minha grande companheira. Sim . Em meu entender, nós somos a grande solidão universal. E, ao descobrir isso, trabalho o meu interior e faço da minha solidão o tesouro maior que equilibra o meu íntimo. Como sempre diz meu amigo Luis Gasparetto: “Só você vai ficar com você o resto da eternidade”. Longe de mim ser um solitário, ao contrário, apenas seleciono com quem dividir meus momentos para enriquecê-los. Eu gostaria de amar mais os amigos desta caminhada. Saber dividir com eles os meus sonhos. Gostaria de saber amar melhor os meus filhos. Saber ser o melhor amigo deles. Gostaria de ter convivido mais com minha filha Paula. Gostaria de amar melhor a mulher que vive comigo e suporta por demais as minhas incertezas; que já enfrentou barras incríveis comigo, e com o meu trabalho; altos e baixos, às vezes mais baixos do que altos. A companheira que me faz trabalhar, criar mais e produzir melhor. Que me instiga com a sua boa crítica a me aperfeiçoar. Um senti-mento especial nos une, e se transformou numa liga muito forte entre nós. Ela representa o esteio da minha vida. Desde os conselhos na carreira até a elaboração deste livro, que sem ela não existiria. Com seu estímulo o escrevi em rompantes de emoção, num depoimento desordenado das minhas lembranças – trabalho feito à mão, que ela pacientemente deu forma em seu notebook, organizando com carinho os meus pensamentos da primeira à última linha do que foi escrito. Sou orgulhoso herdeiro de todas as min-has lembranças. Elas me ajudaram a ser o homem que sou. O artista que sou. Jamais poderia ser outra coisa na vida. Tenho música nas minhas veias. O palco é o meu oxigênio. Sou um artista à moda antiga, de quando os ídolos eram escolhidos pelo público, e não pelo marketing que fabrica sucessos para consumo rápido. A música e a arte no Brasil têm sofrido muito na última década com a industrialização dos sentimen-tos. O que era artesanal, feito com o coração e para os corações, deu lugar a uma grande indústria dominada apenas pelo volume de comércio, levando ao endeusamento dos re-cordistas de vendas, nem um pouco preocupados em construir uma carreira – o que implica uma jornada muito mais longa, nem sempre só de sucessos. Com isso, artistas que se dedicaram ao cultivo da maior qualidade e da beleza sofreram bastante, e o abandono tomou conta de suas carreiras. Muitos grandes artistas brasileiros, e também eu, fazemos parte dessa geração que foi deixada à margem da máquina voraz que se alimenta de resultados rápidos, imediatistas, e não tem compromisso com nenhum legado de cultura para as gerações vindouras. Assim, para meus filhos Bernardo e Paula, não posso deixar outra herança que não seja a do trabalho, da perseverança, do amor à vida e, principalmente, a do perdão. Em to-dos os sentidos. Meus bens materiais são muito poucos. Meus bens espirituais e mo-rais quero que lhes sirva de luz para guiar seus passos. Que eles estejam na vida de uma maneira forte e decisiva. Descobri a essa al-tura da existência que viver é armanezar coragem para conduzir com calma os rumos da nossa própria solidão. Espero que suas decisões sejam tomadas em nome da justiça, do amor ao mundo e aos outros seres que lhes servem de parceiros nesta caminhada. Que eles se orgulhem muito dos seus avós, de suas mães, do seu pai, e do amor que sempre norteou os passos de quem os precedeu neste mundo. Que iluminem sempre os meus filhos, as Minhas duas Estrelas. Que nasci de uma fêmea de grande luz E de um homem gigante em cantar o amor Da emoção de um instante maior Eu, Cujos olhos abri e eram cor do mar E enxerguei toda a luz que me dava o sol E aprendi a cantar pra viver Eu, Que em versos meu berço cobri E com música aos poucos cresci E de sonhos eu me alimentei Eu, Que com arte reguei meu jardim Só com flores fiz rimas pra mim E hoje sigo o destino que herdei Eu, Cantador de emoções de poetas mil Portador de alegrias pros corações. Eu sou Pery
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