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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

GRAMOPHONE DO HORTÊNCIO

Por Luciano Hortêncio*





Canção: Pour Lui

Composição: Aime Barelli

Intérprete - Monique Neige

Ano - 1949

Álbum - Copacabana 068-A




* Luciano Hortêncio é titular de um canal homônimo ao seu nome no Youtube onde estão mais de 10.000 pessoas inscritas. O mesmo é alimentado constantemente por vídeos musicais de excelente qualidade sem fins lucrativos).

GORDURINHA, 50 ANOS DE SAUDADES

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Biografia

Waldeck Artur de Macedo, "Gordurinha" (Salvador, Bahia, 1922 - Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, 1969). Compositor, cantor, radialista e humorista. Aprende a tocar violão aos 16 anos. Aos 18, canta músicas de sua autoria no programa de calouros Caídos do Céu, da Rádio Sociedade da Bahia. Apresenta programas nas rádios Recife e Tamandaré, em Pernambuco, em 1951. Muda-se no ano seguinte para o Rio de Janeiro, e trabalha em diversas emissoras de rádio. Em 1954, tem sua primeira composição gravada por Jorge Veiga, o baião Quero Me Casar, e a dupla Venâncio e Corumba interpreta Cadeia da Vila, de sua autoria.

Gordurinha estreia em 1955 com a gravação, pelo selo Continental, de duas canções voltadas para o Carnaval do ano seguinte: Sonhei com Você, de Roberto Martins e Mário Vieira; e Soldado da Rainha, marcha que assina com João Grimaldi e interpreta em duo vocal com Leo Vilar e acompanhamento de Severino Araújo (1917-2012) e Orquestra Tabajara. Em 1957, comanda o programa Varandão da Casa Grande, na Rádio Nacional, e, em 1958, produz Café sem Concerto e Boate Ali Babá, respectivamente na Rádio Tupi e na TV Tupi. No ano seguinte, lança Vendedor de Caranguejo, que faz sucesso com Ary Lobo, regravada por Clara Nunes (1943-1983) e Gilberto Gil (1942).

Compõe com José Gomes (1919-1982), verdadeiro nome de Jackson do Pandeiro, sua canção célebre, o samba Chiclete com Banana, em 1958, lançada nesse mesmo ano por Odete Amaral, mulher do cantor Ciro Monteiro, e, posteriormente, pelo próprio Jackson do Pandeiro. Ela origina, em 1968, montagem dirigida por Augusto Boal, no Teatro de Arena de São Paulo, que aborda as relações históricas da música brasileira no exterior e da estrangeira no Brasil. É redescoberta pelo público com Gilberto Gil, no LP Expresso 2222, de 1972. Também dá nome à tira em quadrinhos do cartunista Angeli (1956) e à banda baiana de axé music, ambas formadas nos anos 1980. É citada por Marcelo D2 (1967) na música A Maldição do Samba, de 2003.

Ainda em 1959, Gordurinha faz sucesso como intérprete de outra canção autoral, Baiano Burro Nasce Morto, cujo título vira bordão popular. Ele a grava com a participação do humorista Mário Tupinambá, que faz um personagem na televisão em que interpreta um deputado baiano que adora longos discursos, como faz no disco. A música também faz sucesso com o alagoano Luiz Wanderley, em 1959. É regravada por Moraes Moreira (1947), em 2000. Em 1960, interpreta o baião-toada Súplica Cearense (parceria com Nelinho), sucesso na voz de Merino Silva (1967), Luiz Gonzaga (1912-1989), Fagner (1949), Elba Ramalho (1951) e gravada pelo conjunto O Rappa. Entre diversos compactos, Gordurinha lança quatro LPs na década de 1960.

Morre no início de 1969, no Rio de Janeiro. Nesse ano, é lançado pela Musicolor o disco póstumo Gordurinha. Em 1999, com patrocínio do governo do estado e lançamento da Warner Music, o selo Sons da Bahia grava A Confraria do Gordurinha, com 16 faixas de sua autoria, interpretadas por Gilberto Gil, Marta Millani e o conjunto Confraria da Bazófia. No mesmo ano, Carmélia Alves, a rainha do baião, grava pelo selo CPC-Umes o disco Carmélia Alves Abraça Gordurinha e Jackson do Pandeiro. Em 2000, a Warner Music lança, pela série Enciclopédia Musical Brasileira, o CD Jackson do Pandeiro e Gordurinha, que intercala faixas interpretadas por cada um, com composições próprias e de outros autores.


Análise

Cronista perspicaz dos costumes e questões culturais e sociais de seu tempo, Gordurinha (Waldeck Artur de Macedo), navega com desenvoltura por diversas temáticas e estilos musicais. É autor de melodias de gêneros nordestinos, como o coco e o baião. Essas canções têm usualmente como pano de fundo a cultura nordestina e seus dilemas sociais, expressos por meio de um personagem forjado no vasto repertório de seus tipos populares. Gordurinha elabora letras que captam a psicologia e o linguajar coloquial do universo retratado, interpretando as dicções regionais.

Em Súplica Cearense, um baião-toada, se vale de um fato verídico ocorrido no sertão cearense, uma cheia provocada por uma enxurrada que se seguiu à costumeira seca na região, para problematizar a relação do sertanejo com seu meio e Deus. Um personagem perplexo com tal sucessão de intempéries faz uma prece amargurada em forma de penitência: "Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho / Pedi pra chover, mas chover de mansinho / Pra ver se nascia uma planta no chão / Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a culpa foi desse pobre que nem sabe fazer oração". Outra canção que envereda pela crônica de costumes é o coco Vendedor de Caranguejo ("Caranguejo uçá, Caranguejo uçá / Apanho ele na lama e trago no meu caçuá"), em que um personagem humilde narra que sustenta seus filhos com essa sua profissão, que não pretende abandoná-la mesmo depois de vê-los educados, encaminhados e com "fama" na vida. Essa canção é tida como uma precursora do movimento manguebeat do Recife, nascido nos anos 1990, que incorpora o coco e o tema do mangue.

Em Baianada, Baiano Não É Palhaço e Baiano Burro Nasce Morto, Gordurinha combate o preconceito ao nordestino que detecta no Rio de Janeiro com a construção de personagens pitorescos, orgulhosos de sua origem. O baião Baiano Burro Nasce Morto tem a introdução com esquetes de piadas sobre baianos recitados pelo próprio Gordurinha, que atua como comediante em circo e rádio no início da carreira; as piadas são contrapostas pelo bordão do refrão ("Pau que nasce torto, não tem jeito morre torto / Baiano burro, garanto que nasce morto") e pelos elogios espirituosos que o narrador faz de seus conterrâneos, com direito a citação de baianos ilustres: o poeta Castro Alves (1847-1871), o bacharel Rui Barbosa e a miss Brasil Marta Rocha.

Também é autor de diversos sambas e marchinhas carnavalescas, que não se prendem a temas regionais, e até de uma Bossa Quase Nova, de1961. Sua canção mais conhecida e influente é o samba Chiclete com Banana, composto em parceria com Jackson do Pandeiro. O mote da crítica à influência da cultura norte-americana sobre a brasileira ganha ressonância nas insuspeitadas aproximações que o compositor cria ao estabelecer condições de reciprocidade para sua rendição: "Só ponho bebop no meu samba / Quando o Tio Sam pegar no tamborim / Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba / (...) / Aí eu vou misturar Miami com Copacabana". Mas ele se trai no refrão quando adianta uma adesão hipotética da música norte-americana à brasileira, já aderindo à música norte-americana: faz scat com a palavra bebop, o ritmo norte-americano do momento; enuncia o bordão "quero ver a grande confusão", que preconiza a fusão entre os estilos musicais dos dois países; e sugere o termo "samba-rock" para denominar um tipo de samba com influências roqueiras. Não é à toa que a música faz sucesso na voz do tropicalista Gilberto Gil, em 1972.

Gordurinha também funde ritmos brasileiros à latinidade da rumba, do mambo e do chá-chá-chá, em arranjos de orquestra, como em Um Calo Só (1962), com acento da rumba; e a interpretação de Mambo da Cantareira (1960) e Copacabana Mambo (1961), ambas de Barbosa da Silva e Eloide Warthon, cuja regravação de Jards Macalé (1943) nomeia um de seus discos, com o verso "Vou aprender a nadar", em 1974. Esse LP traz outro sucesso de Gordurinha, Orora Analfabeta (com Nascimento Gomes), gravado inicialmente por Jorge Veiga, em 1959.


Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A MÚSICA POPULAR NA REPÚBLICA - "VAI PASSAR" I



Entre 1964 e 1968, os militares foram se ajeitando na cadeira. Caía a ficha da sociedade civil, a ditadura viera para ficar. Com os ânimos acirrados depois da implantação dos atos institucionais, parcela numerosa de estudantes, artistas e intelectuais passou a expressar seus desejos nos festivais da canção. Dos festivais sairia o conceito de MPB: música engajada, politizada, crítica, renovadora. O rótulo virou “sinônimo” de música brasileira.

Em 1965, no I Festival de Música Popular Brasileira, da extinta TV Excelsior, o compositor Edu Lobo venceu com “Arrastão”, obra-prima composta em parceria com Vinicius de Moraes:

Ê! Tem jangada no mar.
Ê! Iê! Iê! Hoje tem arrastão. 
Ê! Todo mundo pescar. 
Chega de sombra e João.

No mesmo ano de “Arrastão” estreou na TV Record o programa Jovem Guarda. Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa formaram a tríade básica do programa que acabou por dar nome ao novo movimento. O desafio da produção era manter elevada a audiência da emissora nas tardes de domingo, até então garantida pelas transmissões ao vivo dos jogos de futebol.


A jovem guarda, primeiro e mais coeso movimento do rock brasileiro, também era conhecida como “iê-iê-iê”, em alusão à clássica música dos Beatles.

A jovem guarda motivou comportamentos, gírias e modas juvenis. Suas letras destacavam a temática do amor e da vitalidade da juventude, tudo bem docinho para não agredir os ouvidos. Eram jovens pouco interessados em política e que tampouco tinham o objetivo de compor músicas de protesto ou canções que virassem de pernas para o ar a cultura brasileira. De pernas para o ar até que eles queriam, mas no sentido da dança, do embalo e do ritmo. “É proibido fumar”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, parecia uma composição de protesto contra a ditadura: 

É proibido fumar,
Diz o aviso que eu li.
É proibido fumar,
Pois o fogo pode pegar. 

O fogo que “bombeiro nenhum poderia apagar” era apenas um beijo apaixonado, saindo faísca... 

A TV Record, que exibia o programa Jovem guarda, também teve o seu festival. E o compositor Geraldo Vandré, uma das grandes vítimas da violência dos militares, venceu o primeiro deles com “Disparada”, feita em parceria com Theo de Barros: 

Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar,
Eu venho lá do sertão, 
eu venho lá do sertão, 
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar. 

Nos anos de chumbo, dois “movimentos” provocadores ao status quo se destacavam. A música de protesto, ou de resistência e engajamento, que buscava a “autenticidade”, as raízes da cultura musical brasileira. Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Taiguara, entre outros, eram defensores dessa bandeira. Já o tropicalismo sintonizava em outras ondas. O aspecto político do movimento estava atrelado a uma vasta proposta cultural e estética (com interlocução nas artes plásticas, no cinema e no teatro). A canção-manifesto do movimento, “Tropicália”, feita por Caetano Veloso, representava o Brasil dos meninos bossa-novistas, do “roqueiro” Roberto Carlos, das alegorias de Carmen Miranda, da angelical “A banda” de Chico Buarque. Tudo em tom carnavalesco: 

Sobre a cabeça os aviões,
Sob os meus pés os caminhões. 
Aponta contra os chapadões. 
Meu nariz. 

Em 1968, no III Festival da TV Globo, a crítica do compositor Chico Buarque ao regime era afiada em “Sabiá”. De verniz romântico, a letra revelava a habilidade do poeta em usar metáforas para fugir da censura: 

Vou voltar,
Sei que ainda vou voltar 
Para o meu lugar,
Foi lá e é ainda lá... 

No mesmo festival, Geraldo Vandré resolveu ser explícito ao convocar o povo às ruas em “Pra não dizer que não falei das flores”: 

Vem, vamos embora, 
Que esperar não é saber. 
Quem sabe faz a hora, 
Não espera acontecer. 

A letra tem um apelo tão forte que, quando ficou em segundo lugar – perdendo para a magnífica “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque –, o público presente no Maracanãzinho cantou-a em coro, rejeitando a indicação da primeira colocada. Eis os versos de “Caminhando” – como a música ficou conhecida –, que seriam entoados durante anos, na campanha pela Anistia, ao final da década de 1970 e nas manifestações pelas Diretas Já, no começo dos anos 1980: 

Caminhando e cantando e seguindo a canção, 
Somos todos iguais, braços dados ou não.
Nas escolas, nas ruas, campos, construções, 
Caminhando e cantando e seguindo a canção. 

Em 1968, os estudantes foram às ruas protestar contra a ditadura. Aquela era uma época de intensa mobilização estudantil no mundo todo. No Brasil, os confrontos entre a polícia e os manifestantes se multiplicaram. Uma passeata contra o aumento de preço da refeição, em um restaurante universitário, no Rio, gerou um conflito com a Polícia Militar, vitimando o secundarista Edson Luís de Lima Souto. Era o estopim no barril de pólvora. Milton Nascimento e Ronaldo Bastos compuseram “Menino”, em homenagem ao estudante: 

Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte 
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte 

Edson Luís tornou-se um mártir do movimento. Seu corpo foi carregado pelas ruas do Centro do Rio e velado na Assembleia Legislativa por mais de 50 mil pessoas. Mobilizações e greves varreram o país. Era 26 de junho, e a Passeata dos Cem Mil levou às ruas estudantes, artistas, intelectuais, a ala progressista da Igreja católica, operários, trabalhadores em geral, mães de presos políticos, na maior demonstração pública de repúdio à ditadura. Em “Enquanto seu lobo não vem”, o compositor Caetano Veloso celebrava as passeatas da época, levando o estribilho da canção para um dos maiores palcos das manifestações populares, a avenida Presidente Vargas: 

A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas (Os clarins da banda militar...)
Passa por debaixo da avenida Presidente Vargas (Os clarins da banda militar...) 

Se as manifestações deixavam os militares furiosos, a coisa ficou feia quando o jornalista Márcio Moreira Alves, na época deputado federal, resolveu fazer um discurso daqueles, dizendo que o Exército era um “valhacouto de torturadores”. Ainda empolgado com o discurso, Márcio pediu às mulheres dos militares uma greve de sexo. Dá para imaginar o efeito bombástico do pronunciamento? A seca foi geral! O discurso foi rapidamente impresso e distribuído nos quartéis. Os militares da linha dura queriam a cassação imediata do deputado. Corajosamente, o Congresso não permitiu. O presidente Costa e Silva estava numa encruzilhada. De um lado, manifestações populares, greves, passeatas estudantis, movimentos de esquerda se organizando; de outro, a linha dura do Exército querendo uma resposta à altura dos acontecimentos. Numa sexta-feira, em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva baixou o Ato Institucional n.5 (AI-5). No ato, o cantor Roberto Silva lançou a música “Tom maior”, de Martinho da Vila. A composição, feita para o filho de um amigo, logo iria se tornar sucesso, mas a letra demoraria um pouco para virar realidade: 

Vai ter que amar a liberdade, 
Só vai cantar em tom maior, 
Vai ter a felicidade de 
Ver um Brasil melhor 





Registro fotográfico de Evandro Teixeira, em 26 de junho de 1968 no Rio.

BIA FERREIRA REGRAVA “FILOSOFIA”, DE NOEL ROSA E ANDRÉ FILHO


Single lançado pela Biscoito Fino faz parte do programa “Filosofia e Música”, do canal Arte 1


São Paulo, dezembro de 2018 – A cantora, compositora, produtora, multi-instrumentista e ativista do movimento antirracista Bia Ferreira regrava “Filosofia”, de Noel Rosa e André Filho. O single faz parte do programa “Filosofia e Música”, do canal Arte 1, que estreou dia 14 de dezembro, e foi lançada pela Biscoito Fino (RJ).

“Fui convidada por Ana Basbaum para dar voz e fazer o arranjo dessa canção junto com Neila Kadhí. Eu gravei o baixo e voz, a Neila fez a programação e gravamos nos estúdios da Biscoito Fino, no Rio de Janeiro”, explica Bia. 

“Filosofia” é a segunda música gravada em estúdio por Bia Ferreira. Seu primeiro lançamento é “Eu Boto Fé”, com produção de BNegão.

Ouça “Filosofia”:




SOBRE BIA FERREIRA

Bia Ferreira é cantora, compositora e ativista. Define sua música como MMP: Música de Mulher Preta. Faz uso de sua música para educar, conscientizar e passar informações a respeito das demandas de luta do movimento anti-racismo no Brasil. Multi-instrumentista, trabalha com música desde 15 anos. Em ascensão no circuito independente, já participou do Pulso Redbull Music, do Vento Festival 2018 e faz shows ao redor do país. Gravou o Estúdio Showlivre e a música “Cota Não É Esmola”, da sua participação no Sofar Sessions Latin America, passou a marca de quatro milhões de visualizações no Youtube, tornando-se o vídeo mais assistido do projeto. Caetano Veloso fez um post em seu Instagram dizendo que “(...) fiquei com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira, depois de tê-la ouvido pessoalmente cantar ‘Cota Não É Esmola’. E outras coisas mais”. Foi convidada a se apresentar no episódio de estréia do programa da Rede Globo “Amor & Sexo”, na temporada 2018. Além disso, Bia personifica Elza Soares no musical “Elza”, na temporada de São Paulo. Mesmo sem ter material completo lançado, foi indicada ao prêmio de revelação no Women Music Award 2018. Adendo: é a única preta indicada na categoria. Também foi indicada como revelação pela SIM São Paulo. E no momento, Bia se prepara para lançar seu álbum de estréia, previsto para o primeiro semestre de 2019.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Retrato da vida

Num país solar, tropical, o período das chuvas é sempre sinônimo de reclusão, de recuo interior, de ficar em casa, de amar em segredo, de cantar oitavas abaixo. É isso que o sujeito da canção “Retrato da vida” de Dominguinhos e Djavan faz. “Esse matagal sem fim / Essa estrada, esse rio seco / Essa dor que mora em mim / Não descansa e nem dorme cedo // O retrato da minha vida / É amar em segredo”, diz.
A vereda de onde canta o sujeito de “Retrato da vida” está mais próxima do sertão de Guimarães Rosa de que do sertão de Graciliano Ramos. Justapõe “matagal sem fim” e “rio seco”, a fim de encenar ao mesmo tempo a esperança e o atual estado de solidão, em que o outro “não quer saber de mim / e eu vivendo da tua vida”. O sertão do sujeito da canção é úmido, tem esperança no verde novo da “boa colheita” que ele acredita está por vir.
Gravada por Djavan no disco Bicho solto (1998) e por Mariene de Castro emColheita (2014), nas duas versões temos o uso da passionalização. Ou seja, dos tons baixos, do prolongamento das vogais, da continuidade melódica, na intenção de modalizar o percurso do estado da paixão presente na letra. As tensões internas do sujeito lírico são transferidas para a voz que canta lenta e continuadamente. À exceção da derradeira estrofe, quando o sujeito cancional é tomado pela esperança e canta uma oitava acima: “O teu beijo em meu destino / Era tudo o que eu queria / Ser teu homem, teu menino / O ser amado de todo dia”. O reduto emotivo da inter-subjetividade dá lugar à vontade de ter o outro “aqui”, oscilando a tessitura da canção, da voz dos intérpretes.
Esse gesto do plano da letra interferindo no plano da voz importa para pensarmos a cena apresentada pelo sujeito da canção. A última estrofe cantada uma oitava acima é quase uma exasperação que não chega a se configurar, já que ele não quer interferir no ciclo que se mostra anunciando a presença futura do ser amado.
“Retrato da vida” é uma canção de maio: “Esses campos não tardam em florir”. O ciclo da colheita que recompensará “a dor que mora em mim” está próximo. As noites frias de junho, a festa do milho verde, o aconchego em torno da fogueira beneficiará os amantes, em especial, o sujeito que canta esperançoso. A voz de Mariene de Castro, por exemplo, é acompanhada por uma sanfona melancólica, ajudando a retratar a vida do sujeito, uma vida que depende da vida do outro: “Deus no céu e você aqui”.
No plano da intertextualidade, “Retrato da vida” dialoga com “Deusa da minha rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj. Enquanto aquela pergunta: “Mas e você o que faz / Que não repara no chão / Por onde tem que passar / E pisa em meu coração?”; essa diz: “Minha rua é sem graça / Mas quando por ela passa / Seu vulto que me seduz / A ruazinha modesta é uma paisagem de festa / É uma cascata de luz / Na rua uma poça d'água, espelho da minha mágoa / Transporta o céu para o chão”. Temos nas duas canções uma narratividade ancorada na voz de um sujeito dependente e resignado (“E tudo parece seguir / Fazendo a vida tão direita”). Organizadora do sentido global do texto, a narrativa tem sua função efetivada no gesto da inter-subjetividade mimética, no modo como Mariene e Djavan registram a canção, já que “Retrato da vida” e “Deusa da minha rua” são serestas, repletas de passagens que, cantando a paisagem, cantam o estado interno do sujeito.
A lírica do amor romântico normatiza e universaliza a mensagem da canção. O conteúdo afetivo da letra investe na disjunção entre o sujeito da canção (enunciador) e o outro (objeto de desejo). A “dor que mora em mim” une um ao outro. Tudo ocorre como se, pela narrativa bem circunscrita, o sujeito aproximasse a colheita. E o fragmento do ciclo da existência, o “retrato da vida” apresentado no título, é traduzido na sensibilidade dos intérpretes da canção.


***

Retrato da Vida
(Dominguinhos / Djavan)

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo

O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da tua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração?

O teu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser teu homem, teu menino
O ser amado de todo dia





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

CURIOSIDADES DA MPB

Certa vez, quando cantou "Faceira", de Ary Barroso, Silvio Caldas em uma apresentação no teatro Recreio, no centro do Rio, agradou tanto a plateia que foi aplaudido de pé. Teve que cantar o samba oito vezes.

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior 


João Gilberto - Chega de Saudade (1959)

De tempos em tempos a humanidade vive momentos de grandes renovações, sejam elas no campo das artes ou no seu comportamento social e moral, provocando profundas transformações no curso do desenvolvimento humano. Algumas dessas mudanças às vezes surgem movidas por muita dor. É o caso, por exemplo, das guerras, que após um período de trevas, proporciona invariavelmente uma reflexão sobre a própria destruição que gerou e assim força aos homens a busca de sua renovação e a não repetição de erros tão graves. Outras aparecem para clarear horizontes e demonstrar a vontade do nosso espírito em caminhar rumo a um progresso sempre renovado que vai lhe descortinar horizontes, abrindo caminhos e proporcionando uma visão cada vez maior da necessidade humana em caminhar para o aprimoramento de suas necessidades evolutivas, tornando-se assim co-responsável pelo seu destino, escrevendo, portanto a sua história. 

Em nosso país passamos por muitos desses momentos, e um deles surge durante a década de cinqüenta quando o Brasil se redescobre como uma nação pronta a atingir níveis de desenvolvimento que iriam lhe colocar na vanguarda de sua época e marcaria profundamente nossos destinos até hoje. Mesmo com a tragédia proporcionada com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, a nação se renova e esse período vem acompanhado de uma auto estima como nunca havíamos experimentado antes. E no curso desse processo de afirmação nacional e patriotismo, vimos o nascimento com grande pujança de nosso parque industrial, a ascenção da classe média e seus sonhos de consumo, a televisão invadindo lares e mudando os hábitos cotidianos, o rádio em seu apogeu através dos programas de auditório, a imprensa livre, o cinema com as produções da Vera Cruz e da Atlântida, esta última fazendo da chanchada o retrato de um país livre e feliz, a democracia reafirmada como o processo político ideal e por fim para culminar esse momento tão especial: nada melhor do que ouvir a batida revolucionária de um violão vindo da Bahia e que iria ganhar o mundo. Estamos na Bossa Nova. Viva João Gilberto e todos seus companheiros que mudaram para sempre os rumos da música popular brasileira. 

Um movimento musical sempre vem acompanhado de uma situação fértil de perspectivas de grandes mudanças, o Brasil vivia esse período quando Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Ronaldo Bóscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal e muitos outros verificaram que aquele era um momento especial, e estavam criando a trilha sonora perfeita que reproduzisse a ambiência da época. Faltava apenas o intérprete ideal. E ele surge na figura do violonista baiano João Gilberto que iria gravar um disco que representaria a síntese daquele estado de espírito que inebriava toda a nação. 

As gravações do LP Chega de Saudade começaram em janeiro de 1959 e terminaram em 4 de fevereiro, a intenção era ampliar o sucesso obtido por João Gilberto em seus dois últimos discos, gravados no anterior na Odeon ainda em 78 rotações com as músicas, "Chega de saudade", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; "Bim bom", de João Gilberto; "Desafinado", de Tom Jobim e Newton Mendonça e "Ôba lá lá", também de João Gilberto. No LP seriam aproveitadas as gravações dos discos 78 rotações, faltando, portanto, gravar apenas mais oito canções que seriam "Lobo bobo", e "Saudade fez um samba", de Carlos Lyra e Ronaldo Bóscoli; "Brigas nunca mais", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes; "Maria ninguém", de Carlos Lyra; "Rosa morena", de Dorival Caymmi; "Morena boca de ouro", de Ary Barroso; "Aos pés da cruz", de Marino Pinto e Zé Gonçalves e "É luxo so", de Ary Barroso e Luiz Peixoto. As gravações terminaram no dia 4 de fevereiro de 1959 e de saída o disco venderia 35 mil cópias, confirmando as expectativas de sucesso, apesar do ceticismo de alguns integrantes da gravadora. 

Como o trabalho foi feito em duas etapas aproveitando-se gravações anteriormente lançadas e já conhecidas do público, vários foram os músicos que participaram das sessões de gravação, como por exemplo, Milton Banana, na bateria, Guarany, na caixeta, Juquinha, no triangulo, Rubens Bassini, nos bongôs e Copinha, na flauta, todos presentes na gravação da música "Chega de saudade". Durante a gravação de "Bim bom" além dos músicos citados ainda tínhamos a presença de tres integrantes do grupo Garotos da Lua, Milton, Acyr e Edgardo. Os arranjos são de Tom Jobim e João Gilberto, a direção artística de Aloysio de Oliveira e o diretor técnico de gravação era Z. J. Merky. 

Um fato curioso diz respeito a capa do disco: quando o fotógrafo Chico Pereira ajustou as luzes e a câmara para tirar a foto de João Gilberto (que usava um suéter emprestado de Ronaldo Bóscoli) um dos spots de iluminação queimou deixando aparecer sua sombra em forma de machadinha apontada para a cabeça por detrás de João Gilberto. As fotos então deveriam ser refeitas, porém como o tempo de lançamento do disco já estava praticamente se esgotando, André Midami responsável pelas capas dos discos da Odeon resolveu que deveria sair como estava, e assim foi feito. 

No texto da contra-capa Tom Jobim afirmava entre outras coisas que "João Gilberto é um baiano Bossa Nova de vinte e sete anos" (...) "Em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores" e ainda que "quando João Gilberto se acompanha ao violão é ele, quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele". 

Assim, este disco surge com uma aura toda especial provocando um divisor de águas na nossa música popular que invade o mundo fazendo-o sentir o gosto do acarajé com a maresia de Ipanema. E assim se fez a história! Viva a Bossa Nova! 


Músicas: 
01 - Chega de saudade 
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes) 
02 - Lobo bobo 
(Carlos Lyra e Ronaldo Boscoli) 
03 - Brigas nunca mais 
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes) 
04 - Ôba-lá-lá 
(João Gilberto) 
05 - Saudade fez um samba 
(Carlos Lyra e Ronaldo Boscoli) 
06 - Maria ninguém 
(Carlos Lyra) 
07 - Desafinado 
(Tom Jobim e Newton Mendonça) 
08 - Rosa morena 
(Dorival Caymmi) 
09 - Morena boca de ouro 
(Ary Barroso) 
10 - Bim bom 
(João Gilberto) 
11 - Aos pés da cruz 
(Marino Pinto e Zé Gonçalves) 
12 - É luxo só 
(Ary Barroso e Luiz Peixoto)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

PAUTA MUSICAL: A ALMA LÍRICA DE LENITA BRUNO

Por Laura Macedo



A cantora carioca Lenita Bruno (8/12/1926 - 24/8/1987) teve uma formação lírica. Iniciou sua carreira aos 14 anos de idade cantando em programas de calouros da Rádio Nacional e da Rádio Cruzeiro do Sul. Na época, saiu vencedora de vários desses concursos. Participou de vários dos mais conceituados programas musicais da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, entre eles: Operetas famosas; Um milhão de melodias; Festivais GE; Canção da lembrança; Quando os maestros se encontram e Mestres da música.

Conheceu Tom Jobim através de seu marido, o maestro Leo Peracchi, que orquestrou "Orfeu da Conceição" em 1957. Em 1959, Tom Jobim a convidou para gravar o LP "Por toda a minha vida" só com músicas dele e de Vinicius de Moraes. O disco recebeu orquestração de Leo Peracchi. Compartilho com vocês algumas faixas.

Em 1964, deixou a Rádio Nacional e foi para Nova York onde se apresentou ao lado de Laurindo de Almeida. Em 1987 sai de cena deixando um legado importante à história da música brasileira.


"Por toda minha vida" (Tom Jobim/Vinicius de Moraes)

"Canta, canta mais" (Tom Jobim/Vinicius de Moraes)

"Eu não existo sem você" (Tom Jobim/Vinicius de Moraes)

"As praias desertas" (Tom Jobim)

PIANISTA BERENICE MENEGALE COMPLETA 85 ANOS, MAS DISPENSA COMEMORAÇÕES

Ela prefere descansar antes de acelerar as atividades na Fundação de Educação Artística, onde dará curso intensivo de formação em seu instrumento neste mês


Por Ana Clara Brant 



Jair Amaral/EM/D.A Press
'As famílias (dos alunos da Fundação de Educação Artística) não necessariamente estão querendo que os filhos se tornem um talento excepcional, mas sabem que a formação e a educação musical são fundamentais para todo ser humano. Quem dera todos tivessem essa oportunidade', Berenice Menegale, pianista e diretora-executiva da Fundação de Educação Artística (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press )



Berenice Régnier Menegale nasceu em Belo Horizonte, num dia 1º de janeiro. O ano era 1934. Para o seu aniversário de 85 anos, hoje, a pianista não planejou comemorações. “Fujo do meu aniversário (risos). Geralmente passo o réveillon na casa do meu irmão, em Lambari, no Sul de Minas, e aí já fico por lá mesmo. Final de ano a gente costuma ficar tão cansada que desanima um pouco de comemorar. Fica com vontade de descansar um pouquinho”, diz.

A pausa na virada de ano serve para recarregar as energias da professora de música e diretora-executiva da Fundação de Educação Artística (FEA), que já programou para este mês de janeiro oferecer um curso intensivo de piano. Essa é uma das novidades da entidade sem fins lucrativos que ela ajudou a criar em 1963, ao lado de amigos e colegas. “Não dá nem para tirar férias. Agora é a época de fazer o planejamento do semestre, do ano, e as matrículas já estão abertas. A gente praticamente não para”, afirma.

Questionada sobre o que gostaria de ganhar de presente, ela não titubeia: patrocinadores. A escola acaba de encerrar a sétima edição do projeto “Transforme seu imposto de renda em música”, que incentiva apoiadores a destinar parte de seu IR para o programa de bolsas de estudos da Fundação. Berenice salienta que essa foi uma das alternativas buscadas pela FEA para garantir sua sobrevivência. “A Fundação não tem vínculo com nenhuma instância, nem particular nem oficial. É uma instituição autônoma, sem fins lucrativos. E, com essa crise, nossos patrocinadores se reduziram muito. Sempre enfrentamos dificuldades, mas este é um dos momentos mais delicados”, admite. Ela afirma que, apesar do turbulento momento financeiro, funcionários, alunos e voluntários da instituição conseguiram manter seu entusiasmo e dedicação. “Acreditamos muito na força da educação musical e da música. Por isso não desistiremos.”

Ao longo dos seus 55 anos de existência, a Fundação de Educação Artística formou cerca de 10 mil alunos, segundo os cálculos de Berenice. Por ali passaram talentos como Chico Amaral, Trio Amaranto, Grupo Oficcina Multimédia, além do compositor, arranjador e construtor de instrumentos Marco Antônio Guimarães. “Ele foi nosso professor e criou o Uakti aqui dentro”, lembra a pianista. Com sede no bairro Funcionários, a entidade oferece formação musical para crianças (a partir dos 4 anos), jovens e adultos no modelo de cursos livres, ou seja, cursos que não têm qualquer vinculação com programas e instituições oficiais, em formatos e horários variados.

Em 2019 a FEA introduzirá uma atividade de entre seus cursos regulares e um específico para aperfeiçoamento. “Alunos que já fizeram um bacharelado e querem prestar um concurso ou, por exemplo, ingressar em uma orquestra, vão ter essa opção. É um acompanhamento individual com professores renomados”, diz ela. O curso intensivo de férias de piano, ministrado por Berenice Menegale, a partir do dia 14 de janeiro, com opções de manhã e à tarde, é outra novidade deste ano. “São 18 horas ao todo, três vezes por semana. É para ensinar como estudar piano e como formar um repertório”, explica.


OBJETIVOS 

Embora a FEA já tenha ultrapassado meio século de existência, Berenice diz não enxergá-la como uma obra acabada e afirma que ainda há muitas ideias e sonhos a realizar. Os objetivos que nortearam sua criação, no entanto, são os mesmos, segundo ela diz. “Desde o princípio, a ideia era oferecer cursos livres e que a instituição não tivesse vínculo com nenhuma instância. Mantivemos isso e, apesar das dificuldades que isso causa, porque não temos nenhum tipo de subvenção, por outro lado, nos dá uma liberdade de fazer a nossa proposta, do jeito que quisermos, de mudarmos quando quisermos, sem precisar de autorizações oficiais. E isso é muito importante para a gente.”

Os estudantes da Fundação são basicamente crianças e jovens de classe média. Berenice salienta que boa parte dos pais que matriculam os filhos nos cursos da FEA o fazem por dar imenso valor a uma formação cultural e artística para seus filhos. “As famílias não necessariamente estão querendo que os filhos se tornem um talento excepcional, mas sabem que a formação e a educação musical são fundamentais para todo ser humano. Quem dera todos tivessem essa oportunidade”, diz.

A pianista ressalta que é grande também a procura por parte de estudantes de classes menos favorecidas, daí a importância das bolsas. “Temos tido uma demanda cada vez maior de pessoas de baixa renda. Elas não têm condições de pagar, mas têm muito talento. Muitos desses jovens atendidos têm tido um alto índice de profissionalização – saem daqui preparados para qualquer vestibular e ainda conseguem fazer parte de orquestras e grupos de renome.”

Avessa a comentar sobre sua vida pessoal, a pianista e educadora é eloquente quando fala sobre seu trabalho e a Fundação de Educação Artística. “É isso que é importante”, justifica. Filha do professor e ex-reitor do Colégio Estadual Heli Menegale e de Odette Régnier, ela tem mais quatro irmãos – três são vivos. A descoberta da música ocorreu dentro de casa. “Minha mãe sabia tocar piano, como boa parte das moças da geração dela. Mas o piano ficou um pouco de lado, porque ela tinha que cuidar das crianças. Acabei descobrindo aquele instrumento maravilhoso dentro de casa com apenas 3 anos e comecei tocando de ouvido. Não teve jeito. Isso acontece com muitas crianças. Ter um instrumento em casa é uma oportunidade para se descobrir esse universo”, afirma.


ESTUDOS 

No final da década de 1930, a capital mineira não contava com escolas específicas de formação musical para crianças. Mas a chegada de uma professora de fora, que tinha um trabalho dedicado aos talentos infantis, começou a moldar a trajetória de Berenice Menegale. Aos 15 anos, ela foi estudar em Paris e teve a companhia da mãe na capital francesa. Pouco tempo depois, acabou se diplomando pela Academia de Música de Viena, na Áustria.

Durante a temporada europeia – mesmo já iniciando uma carreira como solista – Berenice passou a vislumbrar um trabalho dedicado à educação. “Quando voltei ao Brasil, com 29 anos, acabei idealizando, ao lado de amigos, o projeto da Fundação de Educação Artística. Ficou cada vez menos importante para mim a minha profissão de pianista, que eu nunca deixei. Continuo tocando até hoje, mas foi suplantada com o tempo que dedico ao meu trabalho. A Fundação me absorveu e me absorve demais. O peso foi muito maior para esse lado da formação, da educação, mas nunca deixei de tocar”, enfatiza.

Berenice diz que ensinar é, na verdade, uma grande oportunidade de aprendizado para o professor. “O maior prazer é receber alunos que amam o que fazem. O prazer do professor vem da disposição do aluno. Costumo dizer que não é meramente uma aula de piano. Quem está sendo formado é o aluno através do instrumento. Por isso friso que a música não é tão importante, mas a educação musical. É a chance de a criança ser educada com música, que é algo extraordinário.”


FUNDAÇÃO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA (FEA)

Cursos livres. Matrículas abertas para as turmas do 1º semestre de 2019 e para o curso de férias. Rua Gonçalves Dias, 320, Funcionários. De segunda a sexta, das 8h às 18h. Mais informações: (31) 3226-6866 e pelo e-mail: contato@feabh.org.br

domingo, 27 de janeiro de 2019

MÚSICA E DIREITO




Quais direitos você, artista, tem a receber?


Talvez a primeira dificuldade listada por músicos e compositores, principalmente aqueles em início de carreira, seja a questão financeira. Do dono da casa que não quer aumentar o cachê aos altos valores de equipamentos, viver de música envolve uma certa dose de perseverança. Porém, engana-se quem acha que ganhar dinheiro com essa arte significa somente fazer shows e vender discos – ou, nos tempos atuais, com as plataformas de streaming. É preciso olhar para todas as possibilidades presentes no mercado.

Nesta primeira e pequena contribuição da Usina, vamos então falar um pouco sobre alguns direitos envolvidos na música. É bom lembrar que, graças ao mercado digital e apesar do momento complicado pela qual passa o Brasil, a música vem crescendo em todo o mundo: de acordo com o Global Music Report 2018 do IFPI, em 2017 o mercado cresceu 8,1% no planeta. As oportunidades estão aparecendo cada vez mais.

Direito de Execução Pública

Você provavelmente já ouviu falar no ECAD. Ele é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, ou seja, se vamos falar de execução pública, temos que falar dele.

O ECAD é uma instituição privada e sem fins lucrativos, regulamentado pela lei 5.988/73 e mantido pelas leis federais 9.610/98 e 12.853/13. É formado pelas associações brasileiras de gestão coletiva, compostas por autores, artistas musicais, editoras e gravadoras.

Em outros termos, as associações de gestão coletiva criaram o ECAD para centralizar a arrecadação dos direitos de execução pública da música. A arrecadação dos direitos autorais e conexos musicais no Brasil, em regra, é por meio do ECAD, havendo previsão legal da gestão individual no Decreto nº 8.469/2015, porém, esse tema específico e polêmico que será abordado em texto trazido futuramente.

As associações, juntas, por meio de seus representantes, formam a Assembleia Geral do ECAD onde são tomadas as decisões sobre a Execução Pública.

Qualquer pessoa física ou jurídica que queira executar músicas publicamente (TV, rádio, cinema, serviços de streaming, casa de show, eventos, sites, hotéis, bares, restaurantes, etc.), ou seja, em um local de frequência coletiva com alcance simultâneo a várias pessoas, precisa pagar pelo uso dessas músicas ao ECAD. Isso garante a remuneração justa aos artistas e compositores.

A partir desta arrecadação, o ECAD passa o dinheiro para as associações, que fazem a distribuição aos compositores, intérpretes, músicos, editoras e produtores fonográficos.

É importante deixar claro que não há como nenhum dos artistas mencionados acima contatar diretamente o ECAD. Sendo assim, toda pessoa interessada em receber os rendimentos dos seus direitos autorais deve estar filiada a uma das associações e se comunicar com ela para que essa associação leve o seu pedido e a represente junto ao ECAD.

As associações controlam, administram e monitoram o trabalho do ECAD. Atualmente, existem sete no Brasil: Abramus, AMAR, ASSIM, Sbacem, SICAM, Socinpro e UBC. São elas que representam todos os titulares de obras musicais e fonogramas filiados a elas para que recebam os rendimentos de seus direitos.

Depois de se filiar, é muito importante que você cadastre corretamente suas obras e fonogramas (com geração do ISRC). Vamos nos atentar a esse importante tema em um próximo texto.

Direito Fonomecânico

O direito de reprodução mecânica é recebido sobre a venda de gravações (CDs e DVDs, por exemplo). Neste caso, os percentuais que vão para os artistas e compositores são definidos em contrato com a editora, gravadora ou agregador digital.

Como o mundo virou suas atenções ao streaming, muita gente se pergunta sobre os direitos envolvidos em serviços tais como Spotify, YouTube, Deezer e Apple Music. Pois bem, o entendimento no Brasil é que o streaming deve ser considerado execução pública. Mas é um assunto espinhoso, novo, e que traz mudanças constantemente.

Vamos tentar focar na questão financeira para o artista. Hoje, em nosso país, existe uma divisão no streaming de 25% para execução pública (que é recolhido pelo ECAD) e 75% para o direito mecânico digital (repassado através de editoras e selos). Portanto, quem tem música nessas plataformas tem direito a receber por essas duas vias.

É importante ainda esclarecer como é feita a divisão dos valores do direito fonomecânico gerados no streaming. A conta funciona, em um exemplo genérico, da seguinte forma:

* 30% fica com a loja ou player;
* 58% fica para a parte conexa;
* 12% fica para a parte autoral.

Há ainda o percentual que fica com as agregadoras, empresas que se comunicam com as plataformas e fazem a distribuição digital. Há agregadoras que cobram percentuais, outras, valores fixos para cada lançamento, entre outros formatos de negócio. Esses termos variam e cabe ao artista decidir qual é a melhor para si.

Como se pode ver, o direito e os rendimentos no mundo digital ficaram mais complexos do que a simples incidência sobre o valor da venda de discos.

Direito de Sincronização ou Inclusão

Também chamado de Sync, é o direito recebido pelo titular pela inclusão de obras musicais e fonogramas seus em produtos audiovisuais. O direito geralmente é fornecido por um valor combinado entre a produtora audiovisual e os titulares dos direitos da obra e do fonograma. Assim como o valor, outras condições de uso deverão ficar previstas expressamente em contrato escrito.

A produtora, então, deverá procurar compositores e editoras, intérpretes e gravadoras, para negociar o uso de determinada canção pré-existente em seu filme e, geralmente, contrata um compositor de trilha original para criar a atmosfera sonora da obra audiovisual e outros procedimentos profissionais necessários à sincronização adequada das músicas em cada cena de todo o audiovisual. Muitas vezes o artista cria músicas originais que passam a integrar a trilha sonora do audiovisual. De todo modo, o valor pelo direito de sincronização é definido no contrato entre as partes.

Existem, ainda, bibliotecas de música. Bastante utilizadas por produtoras de cinema, elas oferecem um vasto repertório de músicas para inclusão em filmes e séries. Você, como músico, pode incluir suas canções na biblioteca que mais lhe agradar e receber pela sincronização quando a sua música for escolhida e sincronizada.

Ter uma música em um filme, novela ou série pode gerar bons rendimentos e maior visibilidade ao artista. Isso porque, além do direito de sync, o músico tem direito a receber pela execução pública deste produto (sobre os quais falamos no primeiro tópico) quando executado em salas de cinema, na Netflix e na TV, por exemplo. Importante dizer que, para que todos recebam corretamente os rendimentos destes direitos, é necessária a confecção da cue-sheet do produto, assunto que trataremos em um novo post em breve.

Como dissemos no início do texto, há uma gama de possibilidades para compositores, músicos e artistas serem remunerados com a música. Naturalmente, não estamos dizendo que seja simples e fácil. Por outro lado, quem escolheu ter uma carreira artística sabe que não é um trabalho como outro qualquer: há paixão e sentimentos envolvidos. Nosso objetivo, portanto, é dar subsídios para que você possa expandir os horizontes e viver dignamente da sua arte. Agora que você entendeu um pouco mais sobre seus direitos, mão na massa!

UM CRAQUE CHAMADO DOUGLAS GERMANO



Por Eduardo Lamas


Douglas Germano está entre os maiores compositores brasileiros da atualidade e me arrisco a dizer que já escreve seu nome entre os melhores de todos os tempos. Falta só um (re)conhecimento maior de público e crítica. Inventivo, usa a tecnologia, efeitos vocais e sonoplastia quase como um personagem a mais para suas crônicas poético-musicais. As influências de Adoniran Barbosa nas letras e de João Bosco no violão me parecem claras, mas seu estilo tem cor própria. Muito própria. O cara é um apaixonado por futebol e inclui entre suas melhores e mais criativas composições o tema e não erra a meta, matando a bola no peito, driblando e distribuindo o jogo com maestria. Não sei se faz o mesmo no Madrugada Samba e Futebol, time de pelada organizada no qual semanalmente joga ao lado de outro grande craque da música brasileira que também tem várias composições que falam do futebol, Carlinhos Vergueiro.

Comecei a conhecer o trabalho de Douglas Germano em 2015, bem no início das minhas pesquisas que geraram o projeto que dá nome também a esta coluna: Jogada de Música. Na busca pelas músicas que contam, cantam e tocam a História do futebol brasileiro me deparei logo de cara com uma que nunca tinha ouvido falar, muito menos cantar e tocar: “Seu Ferrera e o Parmera”. Pelo título já se vê um toque “adoniraniano”. Mesclando locução esportiva de rádio com a crônica de um torcedor fanático pelo Palmeiras nos seus piores tempos, o do jejum de títulos que durou de 1977 a 1993, Douglas narra todo o ritual do Seu Ferrera para assistir a um fictício jogo contra o XV de Jaú, no antigo estádio Parque Antarctica, calculo que em 1982 (isto porque a escalação, embora bastante plausível, com jogadores que estiveram no Verdão naquele início dos anos 80, não encontrei em nenhuma ficha técnica das partidas daquele tempo).

Esta música, que faz sorrirem de satisfação até os palmeirenses que muito sofreram naquele período de vacas magras, está em seu ótimo CD solo de estreia, chamado Orí, de 2011 (link acima). Antes, em 2009, já havia lançado umCD pelo Duo Moviola, que formava com o multiartista Kiko Dinucci (cantor, compositor, instrumentista, artista plástico e cineasta). As referências ao futebol estão em várias de sua autoria, inclusive no mais recente trabalho, de 2016, chamado “Golpe de Vista” (link abaixo). Neste, Douglas pôs em campo ao menos uma obra-prima chamada“Zeirô, Zeirô”, uma analogia entre uma partida do fictício Cruzeiro da Vila do Calvário e a vida de Jesus Cristo. “Cô di Deux, rapais”, diria Bebeto, o atacante do tetra. Tudo invenção, tudo inventivo, espantoso, surpreendente, visionário como aquela jogada inesperada do craque que antevê o lance decisivo antes de todos e a conclui com um toque genial.




Para saber mais: www.douglasgermano.com.br

PS.: Neste pontapé inicial gostaria de agradecer imensamente a Luiza Carino pelo convite para estar aqui mensalmente, sem me esquecer jamais do espaço que me foi cedido gentil e carinhosamente pela galera do Pop Bola, onde a coluna esteve semanalmente de fevereiro a dezembro do ano passado.

sábado, 26 de janeiro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso




PARTE 01


ELVIS E MARILYN

Costumo dizer que, se dependesse de mim, Elvis Presley e Marilyn Monroe nunca se teriam tornado estrelas. Fui eu, no entanto, o primeiro a mencionar - não sem que isso representasse um certo escândalo - a Coca-Cola numa letra de música no Brasil. Na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock'n'roll e tentavam imitar suas aparências. Rapazes de jeans e botas, moças de rabo-de-cavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos. Mas não apenas eles eram minoritários: eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres. Não quero dizer que se tratava de uma turma à qual eu não pertencia e com que eu mantinha uma relação de hostilidade mútua.
Não. Aquilo era mais como que uma tendência que se manifestava de forma muitas vezes acanhada em poucos dos meus conhecidos - e decididamente não entre os mais inteligentes ou os de personalidade mais interessante. Mas isso não me levava a nada além de partilhar com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico. Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes regionais ou nacionais não lidávamos com tais
noções, embora uma forma branda e ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar uni estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar. Riamos deles, como se percebêssemos que atuavam como canastrões.
Mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia. Quando eu tinha uns seis, sete anos, lá pelo fim dos anos 40, uma das nossas muitas primas mais velhas que moravam em casa conosco (essa já devia ter então mais de trinta anos) me disse, entre divertida e irritada, com aquela
sinceridade desleixada com que desabafamos perante as crianças: "Meu filhinho, eu queria morar em Paris e ser existencialista". Fiquei curioso: "Minha Daia (é assim que ainda hoje - a poucos anos do ano 2000 chamamos essa adorável criatura), o que é existencialista?". E ela, com uma raiva deliberada crescendo na voz: "Os existencialistas são filósofos que só fazem o que querem, fazem tudo o que têm vontade de fazer. Eu queria viver como eles, longe dessa vida tacanha de Santo Amaro". Numa visão retrospectiva, imagino que Minha Daia, em sua definição do existencialismo que sem dúvida era um fenômeno pop nos anos 40, poderia estar apenas repetindo os versos de uma marchinha carnavalesca de grande sucesso, chamada "Chiquita Bacana", na qual se completa o retrato da personagem que lhe dá titulo com a informação de que ela é "existencialista com toda a razão só faz o que manda o seu coração"; mas evidentemente seu conhecimento do assunto ia além dessa informação contida na marchinha, uma vez que ela se referira a "filósofos existencialistas" quando quis me contar (sem imaginar que eu nunca iria esquecer) sobre aqueles que lhe acenavam com uma vida mais livre do que aquela que lhe era possível levar em Santo Amaro. Pois bem, os nossos colegas americanizados da década seguinte não pareciam representar uma ameaça a – nem mesmo uma revolta íntima contra - essa "vida tacanha". Pelo contrario, suas atitudes, que sugeriam uma tentativa canhestra de ganhar status dentro de uma escala de valores já dados e mal interpretados, eram, a meus olhos, uma nítida marca de conformismo. Eu pessoalmente sabia que o que de fato importava para mim não os sensibilizava.
Santo Amaro era uma cidadezinha bastante homogênea do ponto de vista urbanístico e arquitetônico - mesmo) hoje, algumas edificações ainda de pé datam do século XVIII, e muitas, do século XIX - e, já na metade do século XX, não abrigava heterogeneidades sociais gritantes: a baixa classe média que povoava os sobradões e as casinhas coladas umas às outras em frente a passeios arborizados com fícus-benjamins e ruas calçadas com paralelepípedos de granito (nossa família pertencia a essa classe média: meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos), estava sempre muito perto da pobreza semi-rural que circundava a sede do município (e fornecia mão-de-obra para trabalhos domésticos), mas não tinha nenhum contato direto com a riqueza: o fausto que muitas famílias locais conheceram desde o período colonial até os fins do século XIX deixou a herança arquitetônica para funcionários públicos, padres, médicos, dentistas, juizes, advogados e pequenos comerciantes, mas a tradicional fonte de renda da região - o açúcar, com seus engenhos e usinas rodeados por vastos canaviais - passou pouco a pouco a integrar patrimônios muito maiores, centrados em outras áreas do pais, de modo que nada do que se ganhava com o que a terra do município produzia era gasto em Santo Amaro, e nenhum dos
novos grandes proprietários vivia ali ou tinha nascido ali.
Eu levava uma vida pacífica, em meio a uma família grande e amorosa, nessa cidade pequena e bonita no seu urbanismo aconchegante. No entanto, não apenas a pobreza vista sempre tão de perto me levava a querer pôr o mundo em questão: os valores e hábitos consagrados estavam longe de me parecer aceitáveis, Era impensável, por exemplo, ter sexo com as meninas que respeitávamos e de quem gostávamos; as moças pretas de famílias que beiravam a classe média tinham que ter seus cabelos espichados para que pudessem se sentir apresentáveis; as mulheres e moças "direitas" não deviam fumar; um cara com ar de cafajeste que comia os garotos (mas repetia-se sempre no ginásio que "quem começa comendo acaba dando" e esse mesmo cara já era tido como numa espécie de "fase de transição") encontrava um ambiente de cumplicidade masculina no botequim onde se insultavam os veados (ou quem quer que ao grupo de freqUentadores parecesse levemente efeminado); os homens casados eram encorajados a manter ao menos uma amante, enquanto as mulheres (amantes ou esposas) tinham que ostentar uma fidelidade inabalável etc. etc.
Claro que os princípios que estavam por trás desses hábitos não eram uma exclusividade de Santo Amaro, nem mesmo das pequenas cidades do interior: nos anos 50, com as variações de região, classe e cultura, acontecia mais ou menos o mesmo em toda parte. E, se hoje aqueles costumes parecem revolucionados a ponto de muita gente alardear a ameaça do caos, os pressupostos que os sustentavam, e que já estavam aí havia muito tempo, permanecem, ainda que muitas vezes sejam apenas matéria de discussão.
Que eu estivesse em desacordo com essas realidades era para mim muito claro.
Mas todas elas vividas em conjunto, e somadas a tantas outras de que eu não tinha consciência, produziam um mal-estar difuso que eu tentava esconjurar com pequenas excentricidades e grandes reflexões. O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por impor-se a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo. Um mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo. O fato de meu pai trabalhar em casa (a agência postal-telegráfica tinha então que ser na casa de seu chefe) contribuía muito para criar essa sensação. As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado de membros da família
também eram fatores agravantes. Muitos amigos nos freqüentavam. Todos trazíamos nossos colegas para brincar. Além das visitas que vinham ver nossos pais, companheiros de estudo e trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para conversas. Muitos eram visitantes diários indefectíveis. Assim, o casarão era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo. Nós próprios saíamos pouco, nunca nenhum de nós tendo tido o habito de ir brincar na "casa dos outros". Mas a vida alegre e sensual do recôncavo estava ali
representada pela comida (cuja famosa alta qualidade fechava ainda mais nosso mundo), pela doçura no trato, pelas rodas de samba que se refaziam a cada festa. O que não devia estar em desarmonia com os costumes sombrios e solenes que nos davam a um tempo segurança e medo. Tomávamos a benção aos nossos pais todas as manhãs ao acordar e à noite antes de ir para a cama. Ouvíamos em resposta: "Deus lhe abençoe" ou "Deus lhe faça feliz" ou "Deus lhe dê sorte".
Tratávamos nossos pais por "o senhor" e "a senhora", nunca podendo usar o "você" íntimo no Brasil, embora essa fosse uma forma abreviada de "vosmecê", um tratamento reverencial obrigatório até que, representando uma grande distensão, "o senhor" e "a senhora" vieram substituí-lo. Não podíamos dormir sem rezar. Ouvi mais de uma vez que poderíamos morrer durante o sono e ir para o inferno se fôssemos surpreendidos sem as orações. Víamos famílias inteiras vestidas de negro em luto por algum parente morto e, embora nossos mais velhos repetissem que mais importavam os verdadeiros sentimentos do que as convenções, quando morreu Mãe Mina, irmã de meu pai, nossa tia muito querida (cuja agonia eu próprio adivinhei pela respiração ofegante que ouvi de minha cama no meio da noite, no quarto onde então eu e Roberto dormíamos com ela), ficamos meses proibidos de tocar piano, ir ao cinema, dançar, usar roupas coloridas, cantar, assoviar ou rir dentro de casa (ou mesmo na rua, "na frente dos outros"). Havia o "quarto do santo", onde ficava um nicho com o Crucificado e imagens da Virgem, de santo Antônio, são José, a pomba do Espírito Santo e o
Menino Jesus. Minha Ju – a irmã de meu pai que dedicou sua vida a agudá-lo a nos criar, trabalhando com ele no telégrafo e dando-lhe a íntegra do seu salário - comandava as orações: treze noites para santo Antônio, um mês para são José, o Mês de Maria etc. Tudo isso rezado a seco, sem música, ao contrário do que se fazia em outras casas, embora na igreja Minha Ju fosse (boa) cantora do coro. 
Eu me aconchegava nesses rituais, mas, a pouco e pouco, fui me rebelando contra as formalidades. Eu tinha intuições filosóficas complicadas. Senti com muita força a evidência solipsista da impossibilidade de provar para mim mesmo a existência do mundo mesmo a do meu corpo. Com angústia e orgulho, eu, aos sete ou oito anos (sei que não pode ter sido depois disso pois o pensamento ocorreu no sobrado dos Correios, antes de nos mudarmos para a casa da rua do Amparo, o que se deu quando completei oito anos), me prometia crescer para fazer um escândalo entre os homens a respeito da certeza de que, se não posso sair de mim - e não posso -, não há mundo nem coisas nem nada, só meu pensamento.
E me encolhia diante do contra-senso de querer gritar para os outros homens que sabia que eles não existiam. Eu então chegava mesmo a pensar que seria um modo de forçar algum acontecimento no mundo, denunciar a sua inexistência. 
Pouco depois de nossa mudança para a rua do Amparo, eu, que fizera a primeira comunhão e tinha de assistir á missa dominical, decidi comunicar aos meus familiares que não acreditava em Deus nem nos padres. Não o fiz em tom oficial nem mesmo com tanta clareza por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha Ju. Era curioso que não fosse assim necessariamente também para meus pais. De fato, eles eram os únicos que não iam á missa aos domingos, aproveitando a saída de todos para ficarem a sós no único dia da semana em que meu pai não trabalhava. Nessa casa da rua do Amparo, onde minha mãe vive até hoje, aconteceram as coisas mais importantes de minha formação. Ali eu descobri o sexo genital, vi La strada, me apaixonei pela primeira vez (e pela segunda, que foi a mais impressionante), li Clarice Lispector e - o que é o mais importante - ouvi João Gilberto.
Eu era tímido e espalhafatoso. Introspectivo, entregava-me a muitas horas solitárias no galho do araçazeiro do quintal e ao piano da sala, no qual tirava de ouvido canções simples aprendidas no rádio e cujas harmonias eram massacradas pelas limitações de minha percepção, ou diante de telas em que pintava a óleo a princípio paisagens e casarios e, mais tarde, abstrações que eu pretendia que fossem muito expressivas. Extrovertido, falava com todo o mundo no ginásio, usava com freqüência um pé de meia de cada cor, deixava o cabelo
crescer até muito além da tolerância de minha mãe para depois raspa-lo por inteiro, não me intimidava quando tinha que cantar diante do público n) palco do auditório nos dias de festa (e eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações). Em suma, o personagem que eu via delinear -se em mim como
possível para mim, pouco ou nada tinha a ver com o do jovem concorrente em um daqueles concursos de rock'n'roll que tinham se tornado uma mania no Rio e em Salvador: seus participantes não demonstravam senão o desejo de se identificar com os estudantes de high school que eram vistos nos filmes jogando football americano e sendo encorajados por garotas que agitavam mamãe-sacode, a eventual rebeldia de alguns deles sendo apenas um adorno a mais na imagem invejada.
Mas a influência americana na cultura brasileira não começou com o rock'n'roll. Todos os mais velhos da minha família e das famílias amigas tinham tido uma educação formal e uma cultura literária afrancesada. Mas o cinema e a canção popular americanos - que nos anos 20 já marcavam forte presença na vida brasileira - a partir dos anos 40 passaram a dominar a cena. E, se a musica popular americana encontrou sempre por aqui a competição não apenas da rumba cubana, do tango argentino e do fado português, mas também, e sobretudo, da música brasileira, que nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de importação, o cinema de Hollywood não encontrou quase nenhuma resistência nacional e conviveu com as produções europeias e mexicanas sem maiores motivos para se sentir ameaçado. Eu aprendia um pouco de inglês no ginásio e o único uso desse aprendizado era cantar trechos de canções americanas. Todos sabíamos que, no mundo inteiro, Frank Sinatra tinha sido - e continuava sendo a estrela indiscutível, e Nat King Cole chegou a parecer, por algum tempo, uma estrela maior do que o próprio Sinatra. Além disso, ao lado de exitosas carreiras de artistas que apresentavam estilizações (às vezes extraordinariamente bem concebidas) de música característica das diferentes regiões do Brasil (como é o caso de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro e de Pedro Raimundo), havia lugar para o sucesso de um tipo como Bob Nelson que, vestido de caubói, cantava, ostentando grande habilidade no y odle (que aqui ficou conhecido como "tiro leite", numa engenhosa adaptação que dava conta da reprodução do efeito sonoro ao mesmo tempo que aludia à atividade tão tipicamente rural da ordenha), versões para o português de canções do Oeste americano, ou imitações destas compostas aqui mesmo. Santo Amaro não era uma exceção naquele mundo onde o caubói americano era uma espécie de herói mítico incontestável. Mas sobretudo nós ficávamos extasiados com os grandes musicais da Metro - voltávamos para casa depois do cinema imitando os passos de Gene Kelly e Cyd Charisse. De modo que os fãs de Elvis Presley, quando apareceram, deveriam ser os representantes de um mero movimento de atualização do acompanhamento que fazíamos da cultura de massas americana. Mas decididamente eles não foram inicialmente recrutados entre os que partilhavam comigo as mesmas preocupações ou o mesmo tipo de sensibilidade.
Pode ser que os grandes estúdios de Hollywood tivessem - e de fato tinham razões de sobra para não temer a concorrência dos europeus no mercado de distribuição de filmes no Brasil, mas para mim e para meus amigos essa indiscutível realidade mercadológica não era uma evidência, Certamente eu lembro uma curiosa piada muito em voga em Santo Amaro no fim dos anos 40 e que consistia em se alertar o interlocutor para um cisco (inexistente) na gola da roupa, forçando-o assim a virar o rosto algo desconfortavelmente na direção do próprio ombro e aproximar o queixo da clavícula com as pálpebras superiores abaixadas, o que levava quem iniciou a piada a mudar subitamente de tom e dizer, como que flagrando o interlocutor numa tentativa de imitação de um tique sedutor de Rita Hayworth: "Olhar de Gilda...". Se este fosse um homem, naturalmente o efeito cômico era intensificado. E Minha Daia - que nós em casa chamávamos de Bette Davis – podia ser ouvida as vezes repetindo, como se estivesse apenas pensando alto: "Nunca houve mulher como Gilda". Contudo, se hoje eu sei que, ao tempo em que Marily n Monroe crescia como figura mítica, seria quase impossível encontrar um americano que sequer soubesse quem eram Françoise Arnou ou Martine Carol, à época era-nos inimaginável que alguém, em qualquer parte do mundo, não as conhecesse. Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro. Os mexicanos também. E, se - apesar da extraordinária beleza de Maria Felix - percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex, não fazíamos - nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse - nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as europeias. No início da nossa adolescência, era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses: um seio de mulher, um casal deitado numa mesma cama de ferro, a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual - tudo o que não podia ser visto num filme americano, os filmes franceses ofereciam com naturalidade. (E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar, àquela altura, nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores, não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro.) Mas o cinema italiano, à medida que o tempo passava e nós crescíamos, nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua "seriedade": o neo-realismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção.
Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor - o único que chegou a ter cinemascope - dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar - e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina. 
Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade - a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado. justificou-se. limpando o nariz na gola da camisa: Esse filme é a vida da gente! Lembro de Nicinha, minha irmã mais velha, comentando que, enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando, nos filmes italianos as pessoas comiam - e às vezes falavam enquanto comiam.
Assim, beldades que mais tarde Hollywood chegou a contratar e fazer conhecidas do público americano, como Sophia Loren e Gina Lollobrigida, chegaram até nós em primeira mão e - ao lado de outras que mal foram notadas nos Estados Unidos, como Silvana Pampanini, Silvana Mangano, Rossana Podestà foram por nós cultuadas como deusas. Na verdade, vimos antes motivos para deplorar do que festejar a ida das italianas para Hollywood: as deslumbrantes moças simples que pareciam ter sido encontradas nas ruas de Nápoles, tinham agora se tornado provincianas que, uma vez na cidade grande, tomaram um banho de loja que não lhes caiu bem (na província, quando se faz alguma, faz-se uma crítica mais severa do provincianismo do que a que se pode fazer na metrópole). De todo modo, nada nos indicava que Brigitte Bardot fosse ainda que minimamente inferior a Marilyn em número de admiradores, em valor de cachê ou em representatividade do espírito do tempo. Não só nas canções que vim a fazer já nos anos 60 - e que, bem ao gosto da estética pop, ostentavam nomes de celebridades - os nomes escolhidos foram de estrelas europeias (Claudia Cardinale, Brigitte Bardot, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo): no final da década de 50, por um instante interrompi os borrões abstracionistas e pintei um retrato de Sophia Loren a partir da fotografia de uma cena do filme A mulher do rio (La donna del Pó), um subproduto do neo-realismo. 
Quanto a Marily n Monroe, sem que seu papel de deusa da beleza nos parecesse convincente, e sem que estivéssemos conscientes do fato de sua condição de americana ser necessária à produção de uma verdadeira celebridade mundial, pouco víamos nela além de uma vulgar imposição comercial, e, se quiséssemos renovar nosso elenco de divas e encontrar substitutas para Ava Gardner ou Elizabeth Tay lor, Jane Russell ou Ingrid Bergman, estávamos muito mais naturalmente inclinados a ir buscá -las entre as italianas. Quando, já nos anos 60, a imagem de Marilyn ganhou importância para mim, incluída num interesse maia abrangente pela cultura de massas, ela era antes de tudo uma estrela das telas de Andy Warhol.
Mas mesmo isso me chegou de segunda mão. Digo que foi a Marily n de Warhol - e quase poderia dizer também "o Elvis de Warhol" - que se impôs a mim como figura de algum valor estético e interesse cultural porque foi a reconsideração dos ícones de grande consumo popular, a crescente tendência a tomá-los em si como informação nova, como imagens brutas que comentavam o mundo se nós não as comentássemos, o que comecei a intuir - e a captar em conversas frívolas com amigos e em artigos frívolos de jornal na virada da década de 50 para a de 60, que coincidiu com minha mudança de Santo Amaro para Salvador. Mas eu não tinha nenhum conhecimento do que se passava no mundo das artes em Nova Iorque na aurora da década louca. Em outras palavras: quem veio a realizar o gesto que deu sentido nítido a essas tendências - quem veio a fazer a série de retratos de Marilyn (e de Elvis) - foi Andy Warhol, por isso credito a ele um tipo de percepção que desenvolvi (e desenvolvi muito pouco, pois, quando mais tarde tudo veio à tona, alguns amigos meus já tinham ido muitíssimo mais longe) antes de aprender sequer o seu nome. É como se Marilyn tivesse existido apenas para ser personagem do mundo de Warhol e como se pudéssemos dizer, parafraseando Oscar Wilde sobre Balzac, que o século XX, tal como o conhecemos, é uma criação de Andy Warhol. 
Claro que, a partir de um ponto, mesmo sem conhecer-lhes os nomes, eram já influências indiretas dos artistas pop americanos que me atingiam através do que via e lia - e mesmo ouvia em conversas - de artistas e escritores brasileiros mais informados ou melhor formados do que eu. Isso, no entanto, só veio a se dar de fato na segunda metade dos anos 60. Por enquanto, basta dizer que o tipo de sensibilidade que instauraria um imaginário aparentado com o imaginário pop era ainda, nesse início de década, demasiado embrionário para determinar minhas escolhas e meus julgamentos. Seria antes o caso de enfatizar quão submetido ele estava a outros movimentos do espírito que recebiam estímulos irresistíveis. De fato havia outras razões para que em mim, como na maioria dos outros garotos brasileiros da minha idade (pois não era apenas em Santo Amaro que os fãs do rock eram minoritários), a mitologia americana dos anos 50 não causasse impacto considerável. E, na verdade, muito boas razões. 
No início dos anos 80, Roberto Dávila, um jornalista de televisão que mais tarde veio a ser vice-prefeito do Rio, me pediu que fosse a Nova Iorque com ele para ajudá-lo a entrevistar Mick Jagger para uma nova série de programas de entrevistas longas chamado Conexão Internacional. Fui convidado, segundo me disse ele, porque eu sabia o que se passava no mundo do rock'n'roll e falava inglês: ele faria perguntas jornalísticas ao Mick Jagger em francês e eu entremearia uma conversa mole em inglês sobre o que quer que nos fosse (a mim e a Jagger) comum. Bem, dizer que eu entendia de rock'n'roll e falava inglês só era verdade relativa ao fato de meu amigo jornalista nada entender de rock e não falar inglês absolutamente. Mas - o que não foi dito - a minha presença no programa supostamente aumentaria a curiosidade a respeito do mesmo, uma vez que um tipo como eu é freqüentemente referido na imprensa como "o Bob Dylan brasileiro", "o John Lennon brasileiro" ou - o que no caso em pauta vinha bem a calhar - "o Mick Jagger brasileiro". De todo modo, como nunca encarei essas classificações imbecis com demasiada antipatia, aceitei o convite. Também por curiosidade e admiração por Mick Jagger. Admiração que só fez crescer com esse quase impessoal contato pessoal, embora a entrevista, como programa de televisão, não resultasse muito interessante (sobretudo porque as respostas de Mick Jagger foram cobertas por uma voz que lia em primeiro plano a tradução em português). O que é interessante contar aqui é que, ao lhe perguntar como foi que o rock o conquistou, eu lhe disse do meu inicial desprezo por Elvis e comentei que, sendo eu da mesma geração dele, Mick, e, como ele, tendo chegado à universidade, o rock primeiro me parecera primário e pouco estimulante, e que para mim e para muitos outros brasileiros a bossa nova tinha tido um apelo fortíssimo que nos orientara para outra direção. Ele me interrompeu para dizer: "Isso é bom. Seria muito chato se não houvesse estilos diferentes em lugares diferentes e a música fosse mundialmente uniformizada". Não o disse em tom de gentileza, antes quase como uma branda repreensão, pois ele aparentemente julgava que eu estava me penitenciando por não ter me interessado suficientemente cedo pelo rock'n'roll. No entanto, essa sua singela observação me soava natural e absolutamente correta. Vivi e vivo como um
acontecimento auspicioso o fato de a bossa nova ter surgido entre nós justamente quando eu e meus companheiros de geração estávamos começando a aprender a pensar e a sentir.
Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: "Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro".
Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção "Desafinado" - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é mais importante – as nossas possibilidades. João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba, a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico- poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio, catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antônio Carlos Jobim, Carlos Ly ra, Newton Mendonça, João Donato, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo - seus companheiros de geração - e abriu um caminho para os mais novos que vinham chegando - Roberto Menescal, Sérgio Mendes, Nara Leão, Baden Powell, Leny Andrade -, como deu sentido ás buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham
tentando uma modernização através da imitação da música americana - Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas -, revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos); marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva - o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba.
O fato de o impacto cultural causado pela bossa nova ter tido tal abrangência e penetração seria mais facilmente compreendido por seus observadores - sobretudo seus observadores não brasileiros - se se levasse em conta não apenas o peso histórico) e sociológico que o aparecimento de uma música ultra-sofisticada necessariamente representa num contexto como o brasileiro (no qual convivem características do primeiro e do quarto mundos), mas sobretudo alguns aspectos propriamente estéticos de grande sutileza e complexidade. É muito comum, por exemplo. ler-se em artigos estrangeiros sobre a bossa nova que o primeiro e fundamental gesto dos seus criadores foi tirar o samba das ruas, afastá-lo de suas características de música de dança e transformá-lo num gênero pop para consumo de jovens urbanos de classe média. Mas a verdade é que, com o aparecimento de João Gilberto, pode-se dizer que até o oposto aconteceu. O samba já conhecia uma longa história de estilizações sofisticadas que, desde o
inicio do século, o afastaram do batuque dos terreiros da Bahia (onde ele nasceu com esse nome de samba e onde ainda é cantado, tocado e dançado em sua forma primitiva como parte da cultura viva não apenas da população analfabeta dos bairros pobres ou das áreas rurais atrasadas, mas também da classe média das cidades do recôncavo baiano) e do partido alto das favelas cariocas (cujos blocos carnavalescos foram pouco a pouco se transformando no Folies-Bergère de rua que são as atuais "escolas de samba", as quais, não obstante, apresentam nos seus conjuntos de percussão - as chamadas "bateria" - a mais impressionante manifestação de originalidade e competência de toda a arte popular brasileira).
Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos 40 e início dos 50 - os já citados pré-bossanovistas Farney, Alves e Alf – que iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado. Primeiro o teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de arranjadores, cantores, compositores e instrumentistas que criaram um samba domado e refinado, sobretudo a partir dos anos 30. Quando João Gilberto inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova, a forma samba-canção dominava. O que se chama samba-canção - e que já foi apelidado meio pejorativamente de "sambolero" - é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecê-lo em todas as suas variações de andamento e acentuação. Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa - inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis, um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado - e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins, além do Caymmi dos anos 40. 
Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de "Maria" ou "Tu", de Ary Barroso, ou "Carinhoso" de Pixinguinha por Orlando Silva - todas dos anos 30 - para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante, sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba "de rua" ou de terreiro antes a exceção do que a regra. 
Nos anos 50, cantores como Ângela Maria, Carmen Costa, Nora Ney, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Dóris Monteiro (para citar alguns poucos) tinham no samba-canção "de meio de ano" - em oposição aos sambas de dança compostos especialmente para o Carnaval - o essencial de suas carreiras. Nora Ney, em particular, com sua voz grave e sua dicção límpida, fundou um estilo urbano e noturno, marcado até mesmo por uma densidade, digamos, literária, sobre o repertório de magníficos sambas-canções de Antônio Maria, Fernando Lobo e Pernambuco. (Curiosamente foi essa mesma mulher quem primeiro cantou publicamente um rock no Brasil - "Rock around the clock" -, num programa de auditório da Rádio Nacional do Rio de janeiro que tive a sorte de ouvir -, mas isso não passou de um episódio isolado em sua carreira.) O samba-canção predominava também na produção comercial de baixa qualidade. Mas mesmo os sambas de andamento) rápido - e até os que eram gravados para ser dançados, no Carnaval - recebiam tratamentos orquestrais e interpretações vocais que os afastavam da batucada primitiva. Em suma: o samba tem sido um gênero pop para consumo de populações urbanas desde sua consolidação estilística no Rio de Janeiro, para a qual o teatro, o rádio e o disco contribuíram decisivamente. Só nestes últimos decênios do século é que começaram a se comercializar as gravações de sambas de "escola" com a exuberante percussão das baterias. Inicialmente considerado um artigo para turistas, o LP anual dos sambas-enredos das grandes escolas de samba do Rio se tornou um item obrigatório na agenda das companhias de disco do Brasil - e uma previsão também obrigatória no inimaginável orçamento de larga faixa de consumidores brasileiros.
É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado, que passou a estender seus tentáculos na direção de formas brutas de manifestação musical - não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da Bahia (que já surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa), mas toda uma variada gama de estilos abordados de modo mais documental -, se deve, em última análise à bossa nova. E menos pela ação direta de alguns dos seus participantes que foram buscar as raízes de tudo no morro e no sertão - e trouxeram de lá Cartola e João do Vale, Zé Kéti e Clementina de Jesus - do que pelo grau de elaboração da estilização conseguida: sem a segurança que a bossa nova nos deu quanto à nossa capacidade de criar produtos acabados nós continuaríamos deixando os tamborins da Mocidade Independente de Padre Miguel e os harmônicos da voz de Nelson Cavaquinho longe dos estúdios.
O aparecimento da cantora Maysa - uma bela mulher de dezoito anos e selvagens olhos verdes que, com sua voz rouca, transformou-se, da noite para o dia, de jovem senhora da alta sociedade paulista, em fetiche do mundo boêmio -, imediatamente antes da eclosão da bossa nova, representou um coroamento dessa tendência para o samba-canção interiorizado e intimista que ela própria, como compositora que também era, enriqueceu com algumas canções simples e exemplares que são pouco numerosas mas nunca foram esquecidas. Há, entre as mais belas melodias que ela gravou, uma composição do Tom Jobim da fase pré-bossa nova, um autêntico samba-canção chamado "Caminhos cruzados", que João Gilberto veio a regravar anos depois. É útil comparar essas duas gravações para entender o significado do gesto fundamental da invenção da bossa nova. A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa, e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir - com o ouvido interior - o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (E o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman.) Quanto a mim, encontro nessa gravação de "Caminhos cruzados" por João um dos melhores exemplos de música de dança – e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada: eu de fato gosto de sambar ao som dessa gravação, e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba-samba que estava escondido num samba -canção que, se não fosse por ele, ia fingir para todo o sempre que era só uma balada. 
Por ocasião de um recital de João em Nova Iorque, em 1988, o jornalista Julian Dibell, que sabe muito sobre a música popular brasileira e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema -, publicou no jornal Village Voice um artigo em que ele procura dar ao leitor americano uma ideia da dimensão revolucionária da bossa nova no ambiente musical e social brasileiro, caracterizando João Gilberto como o Elvis do Brasil. Essa comparação, feita quase em tom de brincadeira, aparece como imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira. Surgida no contexto apressado do jornalismo, ela pode aparentar certa irresponsabilidade, mas revela que seu autor tocou um ponto vivo da questão.
É claro que uma renovação do samba, nascida de um requinte do gosto musical em grande parte desenvolvido no culto à qualidade da canção americana dos anos 30 e ao tratamento cool dos jazzistas dos anos 50, não pode ser identificada com o rock, que é fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação. O que pensar, no entanto, se os dois são convidados a desempenhar funções semelhantes? Com efeito, as reações contra o rock nos Estados Unidos e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional. E os que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade reuniam-se em torno daqueles movimentos.







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