Durante o Campeonato Mundial de Futebol de 1986, Nesuhi, fanático inveterado, mudou-se para a Cidade do México, e lá conheceu um cantor chamado Luis Rey, pai de um menino de 15 anos, que gravava na Odeon, na Espanha, e que, nessa idade, já tinha vencido um Festival de San Remo, na Itália. Luis Rey — como veremos — estava sempre em constantes conflitos com o resto do mundo e, naquele momento, seu conflito era com o diretor artístico da Odeon na Espanha, que queria impor a seu filho um percurso artístico do qual ele discordava, e procurava uma outra companhia de discos onde seria tratado melhor.
Nesuhi pediu que eu desse uma olhada no menino. Viajei, então, para o Chile, e fui assistir ao importante Festival de Valparaíso, para conhecer o Luis Miguel. Os artistas se apresentavam num anfiteatro ao ar livre, à beira do mar, para um público de vinte a trinta mil pessoas. O ambiente era como em qualquer festival do mundo: normalmente histérico. Porém chegou ao paroxismo quando Luis Miguel irrompeu no palco, recebido por gritos e choros enlouquecidos de milhares de meninas.
Fiquei muito impressionado por sua beleza ainda infantil e por sua performance — embora cantasse canções pop corriqueiras, o jeito de interpretá-las era fabuloso. Ele já tinha uma sensibilidade musical fantástica, um suingue extraordinário. A movimentação no palco era vigorosa. A voz, naturalmente soul, tinha uma riqueza e uma sonoridade excepcionais para a idade. Não havia dúvida, tratava-se de um grande artista. Porém, naquele instante, havia um risco: estando na puberdade, poderia perder aquela voz magnífica de um dia para o outro. Levei um vídeo que deixou todo mundo entusiasmado e, graças a Ramon Lopez, futuro sucessor do Nesuhi, contratamos o Luis Miguel.
Luis Miguel não perdeu a voz e o seu sucesso foi instantâneo. O que não foi fácil foi administrar Luis Rey, o pai. Era um caricatural personagem de quarenta e poucos anos de idade, muito baixinho, os cabelos negros penteados com Gumex, um fino bigode “à la Zorro”. Usava ternos impecavelmente passados, espalhafatosos, calças boca-de-sino e sapatos com saltos de cinco centímetros de altura. Era de uma arrogância doentia, quase monstruosa. Não deixava ninguém se aproximar do filho, que mantinha encarcerado nos quartos de hotéis, em companhia de prostitutas, soltando-o no palco na hora de cantar.
Porém, o caótico Luis Rey, em meio à sua loucura, tinha um excelente faro artístico para orientar o repertório do filho e direcionar sua carreira a longo prazo. Dizem as más línguas que Luis Rey, além de cuidar da carreira do filho, tinha ou tivera ligação com uma autoridade mexicana, foragida em Miami por ser — ou ter sido — chefe do tráfico de drogas entre o México e os Estados Unidos na década de 1970. A tal autoridade, diziam as mesmas más línguas, vivia numa mansão em Miami, com torneiras de ouro nos banheiros.
Na primeira vez que eu fui a Madri conversar com Luis Rey, uns três sujeitos de aspecto cigano me esperavam no aeroporto. Eles me escoltaram, levando minhas bagagens até o carro. Seguimos caminho, acompanhados por um outro carro. Para aumentar o suspense, à medida que chegávamos aos subúrbios de Madri, se faziam mais frequentes as comunicações por rádio com a casa do Luis Rey. Os homens nos esperavam sentados sobre o telhado, parecendo talvez sentinelas armados. Fiquei hospedado na casa — que parecia sair do programa de TV “A Família Addams” — durante uma noite e dois dias, tentando conversar seriamente com o Luis Rey, que bebia o dia inteiro e, estranhamente, parecia nunca dormir.
Tossindo feito um gambá, com febre alta, aguentei o primeiro dia e a primeira noite ouvindo Luis Rey cantar músicas supostamente compostas por ele. E, nos poucos momentos em que eu conseguia focar a conversa no planejamento das gravações e na política de marketing do filho, ele me levava, misterioso, até a garagem. Abria a porta de um Rolls-Royce ali estacionado, entrávamos, ele fechava a porta e dizia:
— É melhor conversarmos aqui, onde ninguém pode nos ouvir, ou nos espionar...
Voei, em seguida, de Madri para a Cidade do México, onde encontrei Luis Miguel cercado por personagens que também não inspiravam a mínima confiança, que não nos deixavam a sós nem por um instante. E adorei o bichinho.
Eu tive que suportar Luis Rey por mais três intermináveis anos, até o dia em que Luis Miguel, tendo chegado aos seus 18 anos, decidiu ele mesmo cuidar de todos os aspectos de sua carreira. No desfecho da relação, Luis Miguel descobriu que todos os bens que ele tinha acumulado estavam registrados em nome do pai, e que, além disso, devia ao fisco norte-americano mais de US$700 mil de impostos que Luis Rey e seus acólitos não pagaram. Luis Miguel estava falido. Emprestamos o suficiente para ele viver nos seis meses seguintes e saldar as dívidas com o fisco.
Liberado dos laços paternos, Luis Miguel saiu à procura da mãe, atriz do cinema italiano, que havia fugido da família alguns anos antes sem deixar rastro. Parece que ele afinal recorreu ao FBI, que investigou na Itália durante meses. Em vão... Correram vários boatos: um dizia que sua mãe mudara o nome e fizera plásticas para não ser reconhecida, e que finalmente teria se casado com um capo da máfia siciliana, sendo seu paradeiro desconhecido; segundo outro, teria sido assassinada a mando do ex-marido Luis Rey; outro dizia que estaria enferma num manicômio, em algum lugar desconhecido na Itália!
Luis Miguel, roubado pelo pai e abandonado pela mãe, não confiava em ninguém, nem na sua sombra, nem nas suas namoradas, nem no seu empresário e, obviamente, tampouco em mim. Seu único universo seguro era sua carreira, que tive o imenso prazer e a constante angústia de acompanhar durante os 15 anos seguintes, com cinquenta milhões de discos vendidos até a minha saída da Warner.
Em 1987, Nesuhi estava com setenta anos, e Steve Ross o aposentou em grande estilo, com uma festa de despedida em Veneza, num palácio suntuoso e decadente à beira de um canal. A chuva caía fina e fria, e se instalava um cenário apropriado para a melancolia do evento, todo iluminado à luz de velas. Éramos uns cinquenta convidados, além da Roberta Flack e do Modern Jazz Quartet, amigos do Nesuhi que o homenagearam com uma magnífica jam session. A aposentadoria foi fatal para Nesuhi. A noção de ter perdido um poder que exercia impulsivamente em qualquer parte do globo pareceu-lhe uma traição do Steve Ross. Além do mais, o seu sucessor, Ramon Lopez, homem racional e objetivo do qual eu gostei muito, tinha lhe sido imposto muito contra sua vontade. Nesuhi permaneceu como presidente da IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica), continuou com uma sala no prédio da Warner e fundou um selo chamado East West Records, que não deu em nada.
Em janeiro de 1990, Nesuhi e eu marcamos um almoço no Restaurante 21, em Nova York. Ele apareceu atrasado e muito nervoso:
— Haidar, eu estou doente, muito doente!
— Nesuhi, excelentes médicos não faltam em Nova York, nem dinheiro na sua conta bancária.
Então, é bobagem você ficar tão nervoso. Vai se tratando e isto vai passar — falei repetidas vezes.
Nosso almoço foi melancólico. E as notícias nos meses seguintes não foram melhores. Nesuhi morreu em julho. E com ele morria, se não o último, com certeza um dos últimos gentlemen dessa indústria. Em reunião com seu irmão Ahmet e sua viúva Selma , decidimos organizar dois memoriais — um em Nova York, no Lincoln Center, para celebrar a sua trajetória na indústria fonográfica, e outro em São Paulo, para celebrar a sua paixão pelo futebol. Pedi ao Gil, que conhecia muito bem o Nesuhi, para ser o padrinho da partida de futebol que organizamos em São Paulo, entre os veteranos do Cosmos e os da Seleção Brasileira. O Pelé entrou em campo alguns minutos do primeiro tempo com a Seleção Brasileira, e jogou alguns minutos do segundo tempo pelo Cosmos, comandado pelo Beckenbauer. O jogo foi transmitido para o Brasil pela TV Bandeirantes, com locução do Luciano do Valle. O time do Cosmos me entregou uma taça comemorativa; e Luciano do Valle, um videoteipe da partida e uma camisa de cada equipe, ambas autografadas pelos jogadores, para o pequeno Rustem, filho de Nesuhi.
O memorial no Lincoln Center foi inesquecível. Ahmet Ertegun e Claude Nobs tinham coordenado o evento, que teve início em torno das 17h de um dia quente de verão nova-iorquino e entrou noite adentro, só terminando quando o chefe do sindicato do teatro apagou as luzes para nos expulsar. O teatro estava repleto de artistas — de Ray Charles e Mick Jagger a Robert Plant e Jimmy Page, do Led Zeppelin , sem esquecer o Tom Jobim —, que esperavam na fila sua vez de cantar uma última canção, ou tocar uma música, ou simplesmente dizer algumas palavras de recordação.
Na saída, Claude Nobs e Bernard de Bosson, querido amigo e colega nosso, organizaram um jantar para umas dez pessoas num restaurante ali perto. Bebeu-se muito vinho e champanhe, e cada um foi lembrando e contando suas histórias com Nesuhi. Talvez a mais interessante tenha sido contada pelo Claude.
Claude era filho de um padeiro de Montreux e, no início da década de 1960, organizou o primeiro Festival de Jazz, que não durou mais do que um fim de semana, e no qual somente se apresentaram jazzistas suíços. Dez anos depois, o festival crescera, tornando-se famoso internacionalmente. No entanto, não agradava aos respeitáveis burgueses da conservadora e sisuda cidade que o Claude, filho de um padeiro, homossexual, se tornasse o símbolo internacional da pacata cidade de Montreux.
Para se verem livre dele, prepararam uma armadilha, pagando um garoto de programa para seduzir o Claude. O plano deu certo e, no dia seguinte, foram publicadas no jornal local algumas fotografias, acompanhadas de um artigo devastador. O Claude pensou estar liquidado, e viajou para Nova York na esperança de arranjar um trabalho como produtor de jazz numa companhia de discos. Ele foi primeiro para a Atlantic Records, onde foi recebido pelo Nesuhi. Não se conheciam pessoalmente, apenas de nome. Claude lhe pediu um emprego na Atlantic.
— Mas por que você quer sair de Montreux se o festival está indo tão bem? O que vai acontecer com o seu festival? Você não pode largar assim uma coisa tão importante para todos nós... E o pessoal do jazz? Onde eles vão tocar no verão? — espantou-se Nesuhi. — Aqui você vai ser mais um produtor de jazz...
Aí, o Claude teve que contar a sua triste história. Nesuhi pensou, pensou, e disse:
— Não. Você não vai ficar aqui, não...Você vai voltar para a sua terra. Vou nomeá-lo diretor de relações públicas da Warner Music internacional para toda a Europa, com sede em Montreux, e você vai ver que nem os burgueses da cidade, nem quaisquer outras pessoas vão incomodar você e seu festival. Você ficará duplamente importante!
Claude acabou aceitando a proposta do Nesuhi, que mandou para a imprensa europeia um press release anunciando a contratação do Claude, que retomou o caminho de casa. Claude ficou por muitos anos com o cargo, seu festival ficou cada vez maior e mais conhecido, e ele foi reintegrado, com respeito, na sociedade local.