Por Maria Cristina Aguiar
Para Schoenberg a obra de arte é tão completa e homogênea que não pode dissociar-se em fragmentos. O sujeito que faz a sua apreciação não deve deter-se apenas numa das suas partes sem apreciar o todo. Embora não veja a necessidade de compreender o texto para fazer a sua interpretação musical, Schoenberg acaba por se render ao facto de que quer a canção, pela sua música, quer o poema, pelo seu som (e não necessariamente pelo conteúdo das suas palavras ou o significado das frases), são necessários para uma análise global de uma canção. Nietzsche, escreve como poeta e compositor e é um pouco radical ao referir a desunião existente entre ambos os elementos o que promove um repúdio da linguagem:
When the composer writes music for a lyrical poem...
he, as a musician, is not excited either by the images
or by the feelings speaking through this text...
A necessary relation between poem and music... makes no sense,
for the two worlds of tone and image
are too remote from each other to enter more than an external relationship.
The poem is only a symbol and related to the music
like the Egyptian hieroglyph of courage to a courageous soldier.
Friedrich Nietzsche
On Music and Words
Poder-se-á concluir que a canção não é um meio de promoção da linguagem, mas sim uma forma muito particular de a fazer esquecer e apagar. Pierre Boulez, compositor dogmático avant-garde, segue esta linha. Num comentário que faz acerca do seu Ciclo Pli selon pli, manifesta quase um certo prazer pela abolição da linguagem. O próprio Robert Schumann partilha das mesmas ideias, considerando a poesia como secundária numa canção. Muitos dos seus comentários indicam que considera os Lieder como uma forma de peças líricas para piano, que dobra quase sempre a voz do cantor, uma canção sem palavras... só que com palavras. Não é o poema que tem importância mas sim a voz. Numa perspectiva perfeitamente oposta àquela que temos vindo a desenvolver, surge o nome de Sir Michael Tippett que expressou o seu desagrado no que diz respeito aos “estragos” que a música provoca na poesia.
Nowadays,
I am disinclined to “destroy” the verbal music of any real poetry
by instrumental or vocal music
and prefer to “manufacture” a scenario of words myself.
Sir Michael Tippett
A sua atitude é positiva; mais do que destruir será bom construir salvaguardando o que há de importante. Faz este comentário relativamente à sua obra Words for Music Perhaps, onde uma série de interlúdios permitem a recitação dos poemas protegendo-os, assim, de qualquer tipo de adulteração.
Um compositor que tenha em mãos um poema de Goethe ou Shakespeare não terá tarefa fácil no que diz respeito à sugestão de novos espaços imaginativos e criativos, espaços estes que não podem ser ocupados pelo próprio texto. Isto tem a ver com a relação que o ouvinte tem com o poema. Um texto de menor importância pode ser aceite com maior ou menor indiferença pelo ouvinte, ao passo que um texto de qualidade incontestável tem sempre subjacente a carga conotativa de um sem número de interpretações e performances. Uma peça vocal baseada num texto desta envergadura correrá sempre o risco de comparação e de ser encarada como expressivamente inferior. A mensagem musical é algo que o compositor e o intérprete pretendem sugerir ao ouvinte e é absorvida enquanto experiência estética. A mensagem pode ser apreendida como uma nova vivência ou como uma interpretação. Neste caso, o receptor está perante um universo de rendição às suas memórias e à sua imaginação construtiva. Estamos, assim, perante uma experiência estética que está condicionada quer aos esquemas do compositor, quer aos do ouvinte, sem esquecer o papel do intérprete. A natureza da mensagem musical, bem como o modo da sua transmissão, têm sido alvo de numerosos escritos e discussões. Neste panorama surgem as divergências dos que defendem a música pura e dos que defendem a música descritiva. A questão que separa estas duas posições prende-se com o carácter da mensagem musical, patente na mente do compositor, bem como com as limitações inerentes à sua transmissão. Os compositores ou intérpretes que desejam oferecer uma vivência de puro sentimento, colocam-se de forma receptiva ao que o material musical lhes oferece no momento, de forma espontânea. Verifica-se uma atitude artística radicalmente oposta à atitude psicológica. É uma atitude de abandono que esquece todas as regras apoiando-se apenas na inspiração. O importante não é a forma ou o “musicalmente correto”, mas sim o sentimento ou a beleza intrínsecos ao próprio som. Por outro lado, na música descritiva o compositor procura todos os recursos que lhe permitam clarificar ideias e sentimentos. Não se alheando da beleza e do sentimento, esta mensagem deverá ter um certo grau de objectividade, no sentido de facilitar a sua compreensão por parte do ouvinte. Se o cidadão comum define música como linguagem da emoção, o compositor acaba por defendê-la enquanto linguagem dos sons. O que se conclui é que nem um nem outro sabe o que é a música: enquanto que o primeiro sente que é algo de elaborado, o segundo nem sequer se prende com uma definição.
Schopenhauer, o filósofo do ‘ideal romântico’ da música,
defende que o mundo da música é o mundo dos sentimentos,
porque representa o que é mais íntimo, mais indizível, mais misterioso da vontade.
O compositor revela a essência íntima do mundo
numa linguagem que a sua razão não saberia apreender.
A música opõem-se aos conceitos, por excesso.
Fátima Pombo
Traços de Música
0 comentários:
Postar um comentário