segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




45 - O relacionamento com meu pai

Meu pai nunca esteve realmente presente em minha vida. O relacionamento com ele não era tão aberto como eu gostaria. Ele tinha princípios exageradamente cravados dentro de si. Era homem de suprir as necessidades materiais da família: botar comida na geladeira, fazer festa no Natal, pagar colégio, comprar roupa. Menos ser íntimo dos filhos. O contato físico com ele era escasso. Limitava-se a um beijo na mão, quando ainda tomávamos sua bênção, ou no rosto. Abraços só no aniversário, no Natal ou no Dia dos Pais. Não me viu disputar uma partida de futebol, não ia ao colégio nas reuniões de professores, me botou para fora de casa por bobagem e radicalismo, não foi ao meu casamento, nunca me incentivou na carreira, nem fez um elogio na minha presença ou um gesto de carinho. Aos amigos, a amizade, a alegria, o companheirismo, a compreensão; à família, somente a austeridade das obrigações e do dever. Para mim, ele sempre foi um referencial de autoridade excessiva e de honestidade e disciplina no trabalho. Todas as outras coisas que formam um indivíduo — ternura, carinho, entrega ao amor, delicadeza com os filhos — aprendi com minha mãe ou sozinho, observando outras famílias. Meu pai tinha um modo estranho de ser. Não tenho a menor lembrança de senti-lo me encarando ou de conversar comigo, olho no olho. Ele nos olhava somente para brigar ou chamar nossa atenção de forma ríspida. Em seus ataques me dizia coisas terríveis: que eu não seria nada na vida, que seria um vagabundo, que tinha jeito de veado. Confesso que levei muito tempo para fazer do meu íntimo algo indevassável, onde meu pai não pudesse botar o dedo ou ferir com palavras. No meu tempo de garoto, morria de in-veja de alguns colegas de escola, ao ver o relacionamento entre eles e seus pais quando os visitava na Urca. A preocupação que os pais demonstravam com a formação deles, as palavras carinhosas com que os tratavam e a suavidade com que transcorriam suas infâncias. É claro que eu também reconhecia que, por ter os pais que tínhamos, Bily e eu saboreávamos momentos especiais que ninguém mais vivia. Eu estava consciente de que vivíamos sem rotina e que a empolgação e os prazeres a que tínhamos acesso eram muito diferenciados. Mas era com paz e tranquilidade que eu sonhava. Com uma vida normal. Sonhava em ter amigos. Bily e eu nunca tivemos amigos. Amigos íntimos. A verdade nua e crua era que o meu amigo era Bily e o amigo de Bily era eu. E ponto final. Não havia como termos outras pessoas compartilhando a nossa difícil e doída experiência de vida. Assim, Bily e eu não tivemos adolescência da forma gostosa como todos os outros colegas de colégio tiveram . Precisamos crescer rapidamente — era sobreviver ou sobreviver. Dos tempos de colégio, me lembro com um misto de carinho e inveja de José Messias, o rapazinho vindo de Minas, que passou bons e maus pedaços ao lado de meu pai, e apenas por amor suportou seu tempera-mento e gênio irascível. Meu pai gostava dele, mas de vez em quando também o tratava de forma antipática. Fazia dele realmente o confidente, o amigo do peito. Mas também atacava de mau patrão, com dureza: “Ô, garoto, carrega minha mala. Você tem muito que aprender!”. Sei que Messias absorveu muitos ensinamentos de meu pai — o culto à qualidade, o respeito ao trabalho e à própria verdade interior. Aprendeu a importância da disciplina. E o grande privilégio: conviveu intensamente com a genialidade que dominou a geração de meu pai. No fundo (confesso!), sempre senti mesmo uma pontinha de inveja de Messias por poder ter partilhado de momentos maravilhosos ao lado de meu pai, sentia inveja da intimidade deles. Com os filhos, meu pai jamais compartilhou intimidade alguma. Não dividia suas particularidades conosco. Eu é que me metia nas suas coisas por sentir um amor enorme por ele. Mas somente nos assuntos relacionados a música ou palco. Hoje, sei que assimilei a dignidade desse templo chamado palco vendo o amor que meu pai e minha mãe tinham por ele. E não poderia ser de outra forma, embora meu pai tivesse insistido para que eu não seguisse a carreira artística. Ele vislumbrava muita incerteza em relação à profissão. No início, eu não conseguia entender seus receios. Só compreendi depois de assistir ao gradual esquecimento que minha mãe foi sofrendo antes de morrer. E também meu pai, nos últimos anos de vida. Sei que foi por meio da música que conquistei certa cumplicidade com ele, quando começamos a fazer shows juntos. Passamos a ter alguma coisa em comum e só nossa. Cantando suas canções, enaltecendo seu trabalho, eu mostrava que não permitiria que ele fosse esquecido. Sabia que ele se orgulhava de ter um intérprete à altura de sua obra e percebia que eu vibrava de verdade por estar no mesmo palco que ele. Mas eu apenas intuía tudo isso, não era realmente verbalizado por ele.  Não nos esqueçamos de que, em sua biografia, meu pai fez a infeliz declaração: “Estou convencido de que filhos não servem pra nada, servem só para a gente amá-los”. Quando cheguei ao coquetel de lançamento do livro, vindo de São Paulo, encontrei meus irmãos com cara de enterro e um exemplar do livro na mão. Estavam todos revoltados. Eu não entendia nada, até eles me mostrarem a frase. Senti um imenso vazio ao lê-la. Guardei meu exemplar apenas porque traz uma dedicatória de meu pai, nada mais. O conteúdo jamais me interessou. Fui lê-lo somente agora, quando resolvi escrever sobre meu pai, na tentativa de entendê-lo melhor. Não ajudou muito, pois o relato está falseado por uma exagerada e tendenciosa postura de “bom moço”. Nesse mesmo livro, ele também faz uma referência desairosa a Nilo Chagas. Diz que Nilo era um bobalhão, um inútil. É um absurdo. Sei que sua contribuição ao trabalho de Herivelto foi imensa. Não era fácil segui-lo nas suas ideias inovadoras e Nilo fazia isso com rapidez e segurança. Sem falar na fidelidade que ofereceu a meu pai nos anos de efervescência do Trio de Ouro, além de ter ajudado a compor o visual do grupo com sua beleza negra e serena. Esse comportamento era muito próprio de Herivelto. Incapaz de reconhecer o valor dos mais próximos a ele, que dirá talento para a música. Aliás, em ninguém . Eu, por exemplo, mesmo tendo percorrido os caminhos que percorri, ter realizado tanto, jamais consegui receber um elogio dele. Nunca consegui ouvir de sua boca qualquer menção de reconhecimento ao meu trabalho. Sei que dizia aos amigos que tinha orgulho do meu trabalho. Mas, infelizmente, eu mesmo nunca tive o prazer de escutar um só elogio ou incentivo de sua boca. Ao contrário, vivi algumas passagens muito desmotivadoras. Sempre gostei de convidar meu pai ao estúdio quando eu iria gravar alguma música dele. Ele gostava de ir. Nessas ocasiões tornávamo-nos cúmplices do ofício. Ele até dava sugestões, sem elogios. Apenas uma vez, em 1991, recebi dele algo parecido com um elogio. Estava fazendo um disco com o Roupa Nova, e Ricardo Feghali, o produtor, sugeriu que fizéssemos um arranjo de “Ave Maria no morro” com um sabor sertanejo. O boom sertanejo estava apenas começando, e convidamos a dupla Chry stian & Ralf, meus amigos, para participar da faixa comigo. Quando meu pai chegou para assistir à colocação das vozes, qual não foi a minha surpresa ao vê-lo chorar. Emocionado, disse que era a mais bonita gravação de “Ave Maria no morro” que tinha ouvido. Ninguém presente naquele estúdio podia imaginar o prazer que eu senti ao ouvir isso de meu pai. Foi uma noite marcante para mim . De certa forma, compensava outras ocasiões do passado, em que sua crítica ferina me atingiu profundamente. Eu tinha em Flávio Cavalcanti, além de um amigo, um grande incentivador da minha carreira. Quando gostava de um disco que eu estava lançando — como o Pra tanto viver, de 1985, só de voz e piano, com o grande Luís Eça —, tocava e comentava todas as doze faixas durante um único programa. Por volta de 1963, no início da minha carreira, fui chamado por ele para receber um troféu em um dos seus programas na TV Tupi, diante de um grande júri. Era motivo de orgulho essa premiação e foi muito importante para mim . Nesse júri estava meu pai. No final do programa, chegou o mo-mento de entregar o lindo troféu dourado. Um craque em trabalhar as emoções ao vivo, Flávio pediu a meu pai que subisse ao palco para me premiar e dizer algumas palavras. Ao me entregar o troféu, ele disse: “Só espero que você nunca precise vender este troféu pra poder comer no futuro”. Surpreendido e sem -graça, Flávio chamou os comerciais no ato. E me poupou do vexame de ter de dar alguma resposta a meu pai. Não havia o que dizer diante de tanta grosseria. Chocado, com o coração apertado, precisei usar todo o meu controle para disfarçar a vergonha e a frustração que sentia. Apesar de o programa estar quase no fim, o tempo que se passou até o encerramento me pareceu uma eternidade. Estava a ponto de explodir, não aguentava mais segurar os sentimentos. Fui o primeiro a deixar o palco. Caminhei apressado até o camarim, me tranquei e aí chorei. Chorei muito. Chorei a humilhação, a vergonha. Chorei a falta de respeito e o desprezo que senti nas palavras de meu pai. Todas essas coisas me levaram a procurar, alguns anos depois, alguma forma de ajuda para as digerir melhor e curar as minhas feri-das. Muitos foram os caminhos percorridos: alguns religiosos, como a umbanda e o budismo, outros mais ortodoxos, como a psicanálise. No budismo, aprendi a importância da lei de causa e efeito. Na psicanálise, aprendi a enxergar todo o processo de fora dele e compreendi algumas coisas que me ajudaram a melhorar meu enfoque da vida. Numa das minhas últimas sessões de análise, ouvi do profissional que escutara toda a minha história com meus pais: Você corre demais. Você tem pressa em tudo. Para amar. Para fazer sucesso. Você deseja ardentemente jogar todo o sucesso que fizer nos pés do teu pai e dizer: “Toma, aí está o Pery que você dizia que ia ser um vagabundo!”. Mas lembro a você que tome cuidado, porque após fazer isso, virá um vazio maior que em qualquer outro período da tua vida! O sucesso eu já consegui colocar nos pés do meu pai. O vazio realmente veio, se instalou e me fez pensar muito e me trouxe muita tristeza e solidão. Doeu, mas me fez crescer, aprendi que o importante são as metas que pretendo me dar de presente, e só a mim, sem ter de jogar aos pés de ninguém. 




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