Por Maria Cristina Aguiar
O nosso sentido de sintaxe musical depende da afinidade entre os sons. Ouvir música é
um processo cognitivo, em que todos os dados se relacionam com a estrutura em si. Nas nossas atividades cognitivas, agrupamos sons, tempos fortes e harmonias e ouvimo-los como
um todo. Este fenômeno é essencial para perceber a música e remete-nos para uma
comparação com a linguagem, onde se agrupam palavras em frases, elaborando um discurso
coerente.
Na nossa memória retemos algumas peças musicais no seu todo, mas quando as
ouvimos somos capazes de descodificar as suas partes e a sua estrutura. Isto é algo de
fundamental na música, pois é o que nos faz perceber a perfeição da forma em Bach ou em
Mozart, por exemplo.
Não são muitas as pessoas que conseguem captar, em termos puramente musicais, o
que se expressa a través da música. Em todas as outras artes há uma liberdade de fruição que
se detém perante os efeitos dos elementos artísticos; na música não há um objecto de arte
palpável ou material, pelo que a sua apreciação terá de ser realizada segundo outros
parâmetros.
Há músicas que se encontram ligadas à palavra, ao texto, o que torna a sua percepção
mais acessível. É o caso da canção – Lied, da ópera ou da música programática.
Hofmannsthal e Strauss não necessitam de promover grandes justificações
sobre o que é uma obra de arte musical ou de como se conjugam a palavra e a música,
porque cada obra que criam em conjunto é a circunstância específica dessas discussões.
É em cada obra nova que o tema da ligação da palavra com o som é abordado,
como se se tratasse da primeira vez.
Ambos desejam que cada obra seja conseguida e, com esse objectivo,
conseguem conciliar a presença da arte em que são mestres
com a presença forte da alteridade.
Unia-os, contudo, um mesmo universo estético, de que não precisam de falar,
porque se lhes tornou natural a partir de Der Rosenkavalier.
Por vezes o tema (musical) principal aparece revestido e transformado de muitas
maneiras. Não será apenas uma questão de variação de carácter, mas, também, uma estratégia
relativamente ao texto, uma técnica da narração com cariz dramático. Quanto mais clara for a
narração, quanto mais os acontecimentos se basearem no seu próprio significado, se houver
semelhança e repetição de determinados fragmentos musicais, mais o ouvinte se apercebe da
estratégia do texto.
Depois de clarificar a estrutura de uma canção ou de uma melodia, poder-se-á realizar
o estudo do enunciado musical. Há várias interpretações do Adágio de Samuel Barber. Tendo
em conta a versão original, para quarteto de cordas e a versão posterior, para voz, há alguns
pontos a considerar. A melodia, em si, resulta quer nas cordas quer na versão para voz. Em
termos de respiração, esta resulta manifestamente diferente, não se podendo comparar uma
respiração de quarteto de cordas, que tem uma articulação puramente instrumental, com uma
respiração de um coro, a qual confere à linha melódica a sua própria articulação, podendo vir
a desencadear uma momento de rara beleza e expressividade.
As vogais representam o som e as consoantes o ruído. O ruído é uma parte muito
importante da linguagem e também da música. As consoantes dão uma riqueza tímbrica muito
grande ao som e o seu ruído intrínseco não pode ser imitado por qualquer outro instrumento.
Durante séculos, os poetas não foram capazes de extrair a riqueza subjacente a esta fonte de
expressão patente na nossa linguagem. Apenas os poetas futuristas nas suas free words foram
capazes de lhe reconhecer o valor e utilizar, na poesia, o ruído das consoantes. Procurando o
uso de onomatopeias de ruídos, revelaram a enorme importância deste elemento para a
linguagem, que esteve quase sempre subjugado ao valor das vogais. Este recurso contribui
para multiplicar os elementos expressivos e emotivos.
A articulação da música e da palavra sempre foi objecto de grande reflexão, não
apenas por músicos mas também por linguístas e poetas. Richard Strauss condensa toda esta
problemática numa pequena frase: “A luta entre a palavra e a música é o problema
presente,...” Na sua definição tradicional, canção é uma forma de síntese. É a arte que reune música
e poesia, entoação e discurso, como meios de expressão e que se reveste de um carácter de
criação divina.
A música de uma canção é, antes de mais, uma composição que não abandona a sua riqueza
ou particularidade enquanto música em si mesma (sem palavras). No entanto, o texto da
canção conduz, de facto, a uma responsabilização no sentido de aproximar a expressividade
musical ao dramatismo e à afectividade patentes no poema.
Há quem defenda que a poesia, para o compositor, não passa de mais um elemento de
trabalho, daí que algumas grandes canções tenham textos fracos: o poema, uma vez tratado
musicalmente, perde a sua identidade e passa a ser simplesmente parte de uma canção, daí que
não haja a necessidade de escrever grandes textos para canções, ou de recorrer a textos de
autores consagrados.
Edward T. Cone argumenta que uma canção não é mais do que a interacção de várias
personagens dramáticas: cantores, acompanhadores e compositores; mas nunca do poeta.
Continuando, diz ainda que uma canção é acima de tudo uma nova criação da qual o poema é
uma componente. Não é só uma recitação melódica, uma interpretação musical ou a crítica de
um poema, embora possa ser tudo isto.
O compositor não se serve do poema, mas sim da interpretação que faz do poema após a sua
leitura. Apropria-se dele e torna-o seu ao transformá-lo em música. O que depois se ouve na
canção não é a pessoa do poeta mas sim a pessoa do compositor. Se há partes que o
compositor não consegue deslindar na sua leitura, estas ficarão alheias à canção uma vez que
não as reconhece para as considerar. Um poema nunca é verdadeiramente assimilado numa
composição, mas sim incorporado nela, onde continua com a sua vida própria dentro do corpo
da música. Esta apropria-se do poema com toda a sua carga fonética, dramática, sintáctica e
semântica.
Compositores e poetas têm reconhecido que a canção é uma forma arbitrária, a expressão de
uma vontade.
(A) song has a few rights, the same as other ordinary citizens.
If it feels like walking along the left-hand side of the street,
passing the door of the physiology or sitting on the curb, why not let it?
If it feels like kicking over an ash can, a poet's castle, or the prosodic law, will you stop it?
Must it always be a polite triad, a "breve gaudium," a ribbon to match the voice?
3 Charles Ives, Essays Before a Sonata, The Majority, and Other Writings
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