quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*






54 - O amor é o ridículo da vida

As pessoas que amam de verdade, sem condições ou medos, são as que enxergam o ser amado como ele é, sem censuras, culpas ou julgamentos. As que não amam de verdade são as que procuram encobrir os defeitos, as falhas ou as atitudes que possam “manchar” a imagem — principalmente dos que morreram — e assim tiram das pessoas o direito de serem autênticas, isentas de hipocrisia e, acima de tudo, de serem humanas. É nesse contexto de humanidade que coloco o meu amor por meus pais. Sem críticas ou condenação. Apenas relato a história de amor e dor que vivi com eles, com a humildade de ser humano que também erra, com o amor de filho e com a admiração de artista que sou. Se tudo for analisado com os olhos de hoje, com a filosofia minimalista atual, com o comportamento desprovido de emoção de agora, talvez alguém diga — como já disse um jornalista numa matéria sobre Francisco Alves, publicada na Folha de S.Paulo — que a separação de meus pais foi forjada e comercialmente planejada, que era somente uma discussão feita para levantar dinheiro. Mas, se mergulharmos no universo deles, veremos que havia dentro dos dois uma verdade maior do que o dinheiro ou as vantagens advindas da separação pudessem oferecer. Havia nos dois um sentimento de fidelidade à sua grande verdade. Havia em meu pai, que foi quem primeiro colocou a história nos jornais. Era um grito verdadeiro. Não havia farsa nem mentira. Foi cruel, foi estúpida e irresponsável toda a separação, mas ninguém poderá dizer que foi mentirosa. Acredito que brigas e desavenças sempre existirão entre os casais. E, por causa delas, o mundo troca ou modifica seus aspectos, senão seria tudo igual, tudo como começou. Com meus pais não foi diferente. E hoje, passados tantos anos, procuro colocar toda a história mais perto de mim, mais próxima da análise que amigos, parentes e, por que não, o grande público passaram a me oferecer como subsídio. Nessa busca da verdade — avaliando o comportamento de ambos, a razão das brigas e o drama que os vitimou, antes de consider-ar qualquer um deles como o “grande culpado” — reafirmo que tudo poderia ter sido bem diferente para ambos se meu pai tivesse conduzido tudo de maneira total-mente diferente do que fez. Ele construiu um abismo enorme do qual não conseguiu mais sair, mergulhando no cenário frágil que construiu a sua volta. Por outro lado, arrisco dizer que minha mãe teria preferido jamais ter ficado sozinha — mesmo com todo o sucesso — e ter continuado a viver ao lado do homem que a fez conhecer tanta beleza. O único amor que experimentou verdadeiramente. Lamento muito que tenham se destruído tão profundamente, em igual proporção, e seguido caminhos tão adversos dos que sonharam nos tempos do Teatro da Pátria, nos idos de 1936 para 1937. Assim, revendo a forma de meu pai levar sua vida amorosa, observo que ele nunca encerrou um relacionamento para começar outro. Foi assim com Dalva, que surgiu quando ainda estava com Mariazinha; foi as-sim com Lurdes, que entrou em sua vida ainda casado com Dalva. Enquanto o dinheiro e o sucesso não chegavam, meu pai foi um marido atencioso e dedicado. Quando o trabalho do Trio es-tourou, ninguém o segurou mais. Jamais preservou minha mãe de suas infidelidades, ao contrário: parecia querer que ela soubesse quem ele estava namorando, fosse uma garota do cassino ou uma cabrocha da escola. E mais grave: transou com Isaurinha Garcia na cama onde dormia com Dalva. Quando minha mãe reclamava, exigindo outro comportamento, ele encerrava a discussão com porradas. Mesmo com minha mãe já sabendo de seu caso com Lurdes, meu pai impôs um casamento de aparências a ela, antes da ida para a Venezuela, para dar continuidade aos contratos do Trio. Morando com Lurdes, continuava sua carreira de conquistador e chegou a ter um filho, que não conheceu, com uma componente do trio da sua irmã Nazinha (Hedinar). Na época em que vivia com minha mãe, colocava dentro de casa um montão de homens para comer e beber, a qualquer hora do dia ou da madrugada. Nunca houve privacidade na vida deles. Ele mesmo declarou em sua biografia: “Dalva era uma pessoa muito recatada, tranquila e não esboçava sentimentos agressivos. Depois, transformou-se. Aprendeu a ser agressiva, primeiro com insultos e depois descendo ao terreno físico”. Ora, como ele poderia esperar que uma mulher permanecesse recatada e tranquila nessa situação? Será que era esse seu desejo? Acho que minha mãe até tentou, ao permanecer tanto tempo na formação do Trio. Como mulher e profissional, suportou o que advinha dessa atitude. Tentou, ao achar que o conhaque poderia apagar as dores e decepções que o amor por aquele homem estavam causando. A partir daí, a bebida foi tendo um papel fortíssimo em sua vida, a ponto de ser a razão maior de sua destruição. Não se pode esquecer que a bebida entrou em sua vida ainda no início, quando estava com meu pai. E também não podemos esquecer que os traumas advindos de sua vida a dois não terminaram com a separação. Ainda permaneceram nas canções e nas ofensas públicas. Ele a acusou nos jornais de traí-lo. Pode até ter acontecido… Uma mulher ferida em seu amor é capaz de muita coisa, certa ou errada. Mas o pior de tudo foi que “o segredo deles não ficou entre quatro paredes”. Meu pai, movido pela raiva, e também para se defender, atacou-a publicamente. A polêmica musical talvez tenha começado quando Dalva gravou “Tudo acabado”, que era um desabafo sutil, sem in-tenção de provocar. Ao responder à gravação com o infeliz samba “Caminho certo” , meu pai angariou um ódio indescritível entre as pessoas. Ao começar esse processo com David Nasser, as opiniões a respeito dele se tornaram péssimas e, a partir daí, passaram a governar — ou desgovernar — o seu mundo. Mas existe também o lado dele, o homem que tomou algumas atitudes impensada-mente, em rompantes de mágoa, dor e até vingança, quando o que se esperava era que não se importasse mais com minha mãe. Afinal, não saíra de casa porque havia se apaixonado por outra mulher? Uma mulher que já existia muito tempo antes em sua vida e de quem disse — até ditou para seu livro — que “havia encontrado o grande amor da sua vida”? Ora, por que então a tentativa de atingir tão profundamente minha mãe, tornando pública a vida de casados em capítulos de jornal e musicando de forma tão violenta a relação que havia terminado? Ele não pensou, não ponderou as consequências e pagou um preço altíssimo. Sofreu muito, em que pese toda a sua atitude nascida do rancor. Meu pai passou a ter uma reação interior de mágoa e dor. Sei que sofreu muito e se agarrou à nova mulher. Também sei que ela o ajudou muito. Começava uma nova vida com Lurdes em Santa Teresa. Com sua personalidade pragmática, ela se tornou o refúgio que ele precisava naquele contexto. Mas não foi o bastante para ele. O mais importante para o artista Herivelto, o seu Trio de Ouro, o verdadeiro, já não existia; os momentos de brilho se apagaram e os aplausos do público silenciaram para ele. Seu interior estava arrasado e o grande júri popular passou a execrá-lo. Naquela época, me lembro, era frequente ele beber muito mais do que o habitual. Lurdes não tinha a personalidade alegre e receptiva de minha mãe com os amigos que ele acostumara a acolher em casa. Aos poucos, meu pai descobria que ela se preocupava mais com o status social das visitas do que com seu talento musical. O que foi deixando Herivelto sem aquele caldeirão de criatividade ao qual estava acostumado. Com a briga, os compositores importantes ficaram com Dalva. Suas aparições não despertavam tanto interesse no público como antes. E ele absorvia tudo tristemente, sem dar o braço a torcer. Meu pai sempre foi duro na queda. Sofria bastante. Penso que ali ele começou a morrer um pouco por dentro. Enfim, um período rico e feliz havia terminado. Criou-se um antagonismo enorme ao seu nome e a sua pessoa. Ele agora precisava ter muito cuidado com “onde” e “como” aparecer para o público. Foi uma barra cruel e pesada, pois estava mais exposto do que nunca ao julgamento de quem lia o Diário da Noite, ouvia as canções que compunha e presenciava as suas atitudes impensadas. Atitudes de quem queria se livrar de um grande problema e cada vez mais se afogava nele. Mas garanto: meu pai amargou muito toda essa situação. Ficou desnorteado e sem chão. Quando minha mãe lançou “Tudo acabado”, foi uma surpresa enorme para ele, pois ficou frente a frente com uma realidade: Dalva de Oliveira podia seguir sem Herivelto Martins. Continua-ria a existir sem ele, com mais brilho e sucesso. Foi apenas uma pequena amostra do que estava por vir. Meu pai apelou, respondendo com uma pro-vocação de baixo nível. A constatação da perda não era apenas em relação ao amor ou à mulher. A grande perda era em relação ao Trio, à sua realização artística. Sem Dalva, seu alcance artístico ficava esvaziado. Sei que a grandeza do compositor o segurou — e vai eternizá-lo —, mas, após a separação, o artista Herivelto nunca mais teve a mesma glória, nem acesso aos grandes palcos, nunca mais recebeu a mesma sublime ovação dos tempos com minha mãe. Ao contrário de Dalva. Ela cresceu infinitamente com seu canto, a ponto de colocar sua gravadora trabalhando 24 horas por dia para atender ao fabuloso sucesso. Ela atravessou fronteiras, ganhou o mundo. E o coração das pessoas. A briga deles ficou presente demais na vida das pessoas, na época. Se hoje, passados tantos anos, ainda desperta paixão, imaginem quando o incêndio total era diário. No entanto, não se deve pensar que todos to-maram o partido de minha mãe. Havia pessoas que acreditavam que a razão estava com meu pai. E era natural que assim fosse. Afinal, o julgamento de suas vidas estava nas mãos de quem lesse o Diário da Noite ou mesmo ouvisse as canções. E isso abria es-paço para qualquer sorte de análise. O que favorecia muito a minha mãe era o fato de que jamais escreveu uma linha se-quer nem ditou ou afirmou nada em entrevistas que revidasse as declarações ou condenasse as atitudes de meu pai. Mesmo que fosse para se defender. Essa atitude, consciente ou inconsciente, deu a ela uma condição espetacular de desfavorecida, de vítima. Só suas canções falavam em sua defesa. Até hoje, dentro da minha busca da neutralidade, não sei o que fez minha mãe tomar tais atitudes: se foi medo de meu pai ou uma postura de sabedoria numa hora tão crítica e decisiva. Ninguém vai poder saber se ela se sentiu pequena para superar um ataque tão grande ou se foi muito superior à pequenez do ataque de Herivelto. Mas isso já não tem a menor importância, transcorrido mais de meio século… O que ficou de tanta vida, a própria vida já arquitetou o tamanho que passaram a ter, por terem construído tanto para um país saborear suas emoções através de tanta música bonita, numa explosão de arte sincera, autêntica e sensível. Engraçado foi ver que o tempo conduziu as coisas à sua própria maneira, escreveu seu próprio enredo e os reuniu numa última canção. Nunca mais haviam se falado, pouco se viram, desde então. Mas, em 1970, quando retornei dos Estados Unidos, meu pai me mostrou uma música nova. Era “Fracassam - os”. Na época, ele poderia ter dado essa música para muitas cantoras: Ângela Maria, Clara Nunes, Maria Bethânia e outras. Mas, ao saber que Bily estava produzindo um compacto para Dalva na Odeon, fez questão de que minha mãe a gravasse, mesmo estando rompido com ela. Bily lhe mostrou a música e ela adorou. Essa atitude rompia um silêncio de quase vinte anos entre eles. Para meu pai, Dalva era a intérprete ideal para “Fracassamos”, pois a letra é uma verdadeira síntese do que viveram em suas vidas: Nosso alicerce está ruindo Fragorosamente está ruindo E quanta coisa juntos nós realizamos Porém agora reconheço, fracassamos Nosso alicerce é igual à torre de Babel Só não conseguiu chegar ao céu Já não nos entendemos mais Nossos carinhos são banais O nosso amor já não tem gosto de amor Vivemos juntos, nada mais Era como se Herivelto, pressentindo faltar pouco para a luz de Dalva se apagar, sentisse a urgência de encerrar um ciclo. Fechar a mandala criada entre eles. A gravação dessa música, uma das últimas composições de meu pai e uma das últimas gravações de minha mãe, reuniu novamente o compositor e sua intérprete maior. Duas décadas depois da separação, esse episódio tem sabor de uma grande peça pregada pela vida, nossa grande “produtora”. Soava como despedida. Uma triste e amorosa despedida.



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