sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*





53 - Adeus, minha Praça Onze, adeus

Na semana que antecedeu a morte de meu pai, tínhamos ido ao Rio assistir ao show de dois novos artistas, João Marcelo e José Carlos, lindas vozes masculinas que estavam fazendo uma homenagem a ele. Era o show Herivelto a gente canta assim. Fui com minha mulher, Ana, e combinamos de nos encontrar lá com Hélio, minha cunhada Sara, Yaçanã e meu pai. Tratava-se de uma síntese emocionante da obra de meu pai, e realmente desfrutamos muito do trabalho deles. Emocionado, com a homenagem Herivelto chegou às lágrimas. Sentado ao lado, vi a emoção tomar conta dele. Em determinado momento, pensei em lhe segurar a mão como prova de carinho. Para minha angústia, não consegui. Briguei comigo mesmo a noite inteira, travando uma batalha com meus pensamentos, mas não consegui segurar a mão de meu pai. Olhava para aquela mão envelhecida repousada sobre a perna, bem debaixo dos meus olhos, tão perto de mim . Mas tão longe. Por mais que quisesse, não conseguia levar minha mão até a dele. Dominado por essa sensação de impotência, aproveitando a semi-escuridão da casa noturna, chorei mansamente. Foi estúpido. Mas não consegui. Na verdade, uma barreira em nossa intimidade havia sido construída ao longo do tempo. E não foi possível transpô-la num momento tão decisivo. Pode parecer estranho, mas tenho um sentimento profundo de emoção quando falo de meu pai. A lembrança dele no palco, sozinho ou ao lado de minha mãe, leva-me muitas vezes a chorar. E, quando fico tomado dessa emoção, me vem sempre à mente minha mãe falando de sua “saudade de não sei o quê”… Hoje, acredito que essa mesma emoção tomava conta dela em seus momentos de entrega interior, levando-a às recordações de um tempo muito marcante e, consequentemente, às lágrimas. Meu pai teve esse poder. Ele foi muito forte. Ao lidar com minha mãe, ao lidar com a música e ao lidar com os filhos. Só que qualquer emoção em relação a ele que nos chegue à mente vem sempre acompanhada da vontade de tê-lo abraçado, ou ter tocado em suas mãos, ou sentido com mais intimidade sua presença. Isso jamais foi possível. Razão pela qual, lamentavelmente, uma semana antes de sua morte, eu não consegui segurar sua mão. Na morte de meu pai não houve a “pre-paração” que uma doença grave natural-mente traz aos parentes. Foi uma coisa repentina. E rápida. Havia estado quatro dias antes com ele no show Herivelto a gente canta assim, dirigido pela querida amiga e atriz Cristina Santos, com direção musical de Leandro Braga, outro grande talento e amigo. Nesse show, em 1992, fui surpreendido por facetas ainda desconhecidas para mim desse casal de amigos: a maturidade de Cristina no roteiro e na direção do show (convidei-a para dirigir um show meu, meses depois) e a inventividade musical de Leandro, que fez uma leitura maravilhosa da obra de meu pai, a ponto de ele ir cumprimentá-lo dizendo: “Maestro, muito obrigado pelo que fez com minhas músicas. Jamais pensei que eu fosse tão moderno”. Meu pai ficou tão impressionado com o show que resolveu apadrinhar o trabalho de todos e já no dia seguinte começou a ligar para os amigos importantes da área musical, como Ricardo Cravo Albin, Albino Pinheiro e Sérgio Cabral, convidando-os para assistir com ele ao show na semana seguinte. Ele me ligou contando que iria reunir esses amigos na quinta ou sexta-feira. Eu estava em São Paulo e me preparei para viajar para o Rio. Queria estar na reunião, só para compartilhar com ele a emoção daquela homenagem tão sensível e bonita, junto com seus amigos. Mas a semana seguinte não veio. Na noite de quarta-feira, logo depois do Jornal Nacional, recebi um telefonema de Bily dizendo que nosso pai havia passado mal pela manhã e fora levado em uma ambulância para o Hospital Samaritano. Essas palavras me deixaram assustado, além de muito bravo por estar sendo avisado tanto tempo depois. Discutimos, meu irmão disse que não me avisaram antes porque não havia motivo para me preocupar, era apenas um mal súbito, e que eu não precisaria vir ao Rio, a não ser que algo se complicasse. Apesar dessas palavras, não conseguia me tranquilizar. Na época, morava na Serra da Cantareira, em São Paulo, um verdadeiro paraíso em meio a uma reserva florestal, mas com o inconveniente de ser afastada da cidade e muito distante do aeroporto onde de-colava a ponte aérea para o Rio. Aprisionado em minha impossibilidade de estar perto de meu pai naquele momento, liguei para Hélio, mas não o encontrei em casa. Cada vez mais nervoso, liguei para o hospital e chamei a enfermeira-chefe, tentando saber o que real-mente estava se passando. Ela disse que meu pai já havia saído da UTI e estava em observação. Havia tido uma complicação nos pulmões. Ao ouvir a palavra UTI, meu coração disparou e pensei: “Meu Deus, então é grave!”. Minha cabeça rodava, cheia de suposições. Voltei a falar com Bily e ele disse que o médico também tinha dito que o mo-mento clínico de meu pai era de observação. Por volta das onze horas, no dia 16 de setembro de 1992, o telefone tocou pela ter-ceira vez: meu irmão Bily avisando que nosso pai havia morrido. Minha reação foi muito forte. Contou-me Ana (incrível, apaguei tudo da lembrança!) que comecei a chorar desesperadamente, enquanto socava as paredes e portas do nosso quarto, gritando que ficara sozinho no mundo. Assustada, Ana conseguiu aos poucos me acalmar. Ou, pelo menos, me tirar daquele transe em que mergulhara. Uma tristeza profunda tomou conta de mim, uma sensação estranha me comendo por dentro. Não me conformava de nessa hora estar tão longe de meu pai. Com minha mãe, houve uma longa pre-paração para o desfecho. Já se previa havia mais de um ano seu fim . Com meu pai, no entanto, estava sendo completamente diferente. Foi uma dor súbita. Uma dor imprevisível. Afinal, havia bem pouco tempo, ele fizera um check-up e os médicos disseram que tinha o organismo de um rapaz. Ele era muito saudável e não tinha nada de senil em seus 80 anos. Parecia um pesadelo: havíamos estado juntos fazia menos de uma semana, falamo-nos no dia anterior. Eu queria ir imediatamente para o Rio, mas não havia mais avião naquela hora da noite. Quis então ir de carro e Ana, com paciência, me fez ver que era bobagem, pois chegaria de carro na mesma hora do primeiro voo da ponte aérea. E, para me “convencer” melhor, deu-me um calmante forte e me fez dormir. Essa triste surpresa foi muito dolorida para todos. Em pleno ano de comemoração e homenagens aos seus 80 anos, Herivelto Martins morria repentinamente. Os amigos, a família, o público brasileiro choravam a perda de um de seus maiores poetas. Sei que ao longo de sua vida meu pai não cativou o carinho, a simpatia e a camaradagem necessários para que, em seu momento final, o povo rendesse uma homenagem efusiva e apaixonada. Mas o Brasil demonstrou que sabia estar perdendo um artista de envergadura. A imagem dele, quatro décadas depois, ainda era respingada por aquele Herivelto dos anos 50. Estava sem brilho, sem aber-tura para as novas ideias, e não se permitiu encaixar num contexto de vida mais leve e descontraído. Mantinha-se distante do povo, embora, de vez em quando, recebesse manifestações públicas de reconhecimento ao seu talento, surpreendendo-se pelo grande carinho demonstrado. Viajei para o Rio sentindo um grande vazio, a sensação de perda. Quando saltei do avião com meu filho Bernardo, que com apenas onze anos fizera questão de me acompanhar (Herivelto foi o único avô que meu filho conheceu, pois os pais de Ana faleceram prematuramente), e fui para a Câmara dos Vereadores, onde seu corpo estava sendo velado, ainda não acreditava no que estava vivendo. Perdia uma imagem que fora construída dentro de mim desde o berço, na casa de cômodos da rua do Senado. Perdia a palavra que emocionava o mundo à minha volta enquanto eu crescia. Perdia a inteligência que formou minha sensibilidade e meu gosto pela música. Não teria mais a contradição que meu pai representou: um poeta maior falando do amor e da beleza da vida, mas também o marido que bate e destrói tudo em sua volta. O homem que me mostrou as cores da vida — desde a mais escura até a mais clara e brilhante, em todas as tonalidades e forças. Não sei se todo adulto tem essa sensação desesperadora de desamparo ao perder um ente querido, como senti quando perdi meu pai. Uma criancinha sem pai. Creio que o tempo nos faz crescer, na marra! Mas num momento como esse aflora a nossa criança interior. Eu me senti órfão. Meu sentimento em relação a meu pai era de respeito e ad-miração. Se ele acertou ou errou como pai, já não importa mais. O que ficou de seus ensinamentos, da disciplina e do amor ao trabalho, isto sim é o que conta. Assim mesmo, só para mim, como filho. O restante, o tempo há de colocar em seu devido lugar. Como acontecera na morte de minha mãe, mais uma vez eu estava em cima de um carro do Corpo de Bombeiros, levando um dos meus pais para a morada final. No caminho da Câmara para o Cemitério São João Batista, algumas pessoas acompanhavam a passagem, acenando, outras até choravam o poeta que tinha dado tantas alegrias nas canções. A partir daquele momento, nada mais importaria, fosse para amar ou desprezar. Os pecados haviam morrido com ele. Tudo morrera com ele. Menos a sua música. Já não fazia a menor diferença como ele expressara sua personalidade ou sua conduta pela vida afora. A partir daí, restaria de Herivelto Martins a herança de sua obra maravilhosa. Tenho consciência de que o tempo já está se incumbindo de torná-lo um mito. Grande e forte. Indestrutível e respeitado. A eternidade se prepara para colocá-lo no mais alto grau de importância. Um verdadeiro ícone da música popular brasileira. 



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