segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




47 - Amor enrustido

O amor pregara uma peça em meu pai e, por que não dizer, em minha mãe também . Não era a separação o que eles queriam . O que mais desejavam, com igual intensidade, era que nada tivesse acontecido como aconteceu. No entanto, lá estavam os dois, soltos no mundo, tratando de recompor suas vidas, em direções opostas, colando seus cacos. Sempre tive dentro de mim a nítida sensação de que, se pudessem ter voltado no tempo, os dois teriam capitulado diante da separação. Com meu pai, vou mais longe: tenho certeza de que ele teria apagado a atitude infeliz de expor sua vida em desairosos capítulos no Diário da Noite. O que inicialmente me parecia romantismo de filho se confirmou. Ao tentar buscar uma certeza nas pessoas que fizeram parte da vida e da intimidade de meus pais, confirmei (surpreso!) a minha percepção interior do drama que eles passaram a viver. Nessa busca da verdade, fui ao encontro de Nelson Gonçalves, grande companheiro de meu pai. Encontrei-o meio magro e abatido, se recompondo de um problema de saúde, mas o mesmo brilhante e sincero Nelson Gonçalves. Perguntei sobre todas as coisas que queria saber — seu tempo na Urca, quando morava na Cândido Gaffrée, as histórias do Cassino. Ele confirmou tudo: a boêmia na Lapa, sempre ao lado de Herivelto, como frequentava a nossa casa e a camaradagem existente entre ele e meus pais. Conversamos sobre a fase negra que meu pai viveu depois da separação de minha mãe. Nelson comentou: “Rapaz, eu estava sempre com Herivelto, e ele chegou a tomar alguns porres em nome do arrependimento que sentia!”. “Será que é sobre aquele assunto do Diário que eu estou pensando, Nelson?” “Olha, menino, a gente já tinha tomado algumas quando ele me disse um dia: ‘Nelson, reconheço que fiz uma tremenda cagada! Acho que cavei um buraco pra eu mesmo cair!’”. De Nelson ainda ouvi: “Sua mãe era apaixonada por seu pai, e assim permaneceu até morrer”. “E meu pai, Nelson?” “O caso do seu pai é diferente. Era um apaixonado enrustido. Sem dúvida, o amor de sua vida foi a Dalva, mas ele não permitiria jamais que soubessem ou que percebessem . Depois de tomar uma atitude, Herivelto não daria o braço a torcer jamais!” “E a Lurdes?” “Ela foi a mulher que o aguentou. O que não era fácil, você sabe. E com quem ele teve de sossegar, afinal não era mais criança, já tava nos quarentinha. Mas o Herivelto não tinha muito chamego com ela. Sabe como é, não havia paixão. Além do quê, sem briga, falando baixinho como ela falava, a Lurdes trazia ele num cortado.” Nesse papo, tive o insight do que sempre esteve em minha cabeça e tinha dificuldade de verbalizar. Sem querer, Nelson encontrou as palavras certas: meu pai manteve um amor enrustido por minha mãe! Essa constatação, feita como filho atento desde criança à trajetória do pai e que o acompanhou pela vida e pelos palcos, vem da minha observação do quanto ele produziu e da envergadura de sua obra enquanto esteve ao lado de Dalva de Oliveira. Seus mais consolidados sucessos foram escritos ao lado de minha mãe: “Caminhemos”, “Segredo”, “Praça Onze”, “Bom dia”, “Vem, a Bahia te espera”, “Bom dia, avenida”, “Isaura”, “Lá em Mangueira” e a consagrada “Ave Maria no morro”, só para citar alguns. Num levantamento rápido de sua discografia, pude verificar que mais de 150 das canções que escreveu ao lado dela foram lançadas com muito sucesso. Ao me aprofundar nas pesquisas sobre a obra de meu pai e ao entrevistar alguns amigos da época, fui encontrando ainda mais subsídios para esta “tese”. E também to-mando conhecimento de muitas obras com - postas por ele em decorrência da saudade e da tristeza que amargava por minha mãe. Deixo então que fale por si a obra legada para o mundo e que os historiadores se encarreguem de fixar para a posteridade o que digo. Sou apenas um filho que os amou, acima de qualquer análise. Quando minha mãe lançou o “Zum -zum” no Carnaval de 1950, de autoria de Paulo Soledade, o povo pensou que ela estava se referindo a meu pai, mas não estava. Era uma homenagem ao falecido Comandante Edu, do Clube dos Cafajestes. Paulo, grande compositor, era um dos seus companheiros de clube e escreveu a música para ele. Como tinha verdadeira adoração por minha mãe, pediu que a gravasse. Foi um tremendo sucesso:

Oi, zum-zum-zum-zum-zum-zum-zum Tá faltando um
Oi, zum-zum-zum-zum-zum-zum-zum Tá faltando um
Ele que era o porta-estandarte E que fazia laúza e zum-zum
Hoje o bloco sai mais triste sem ele Tá faltando um

Ao ouvir a música e ficar sabendo que as pessoas achavam que Dalva estaria se refer-indo a ele, Herivelto compôs com Benedito Lacerda “Ai, morena”:

Ai, morena
Seria meu maior prazer
Passar o Carnaval contigo
Beijar a tua boca
E depois morrer
Morena, tem pena
Se um dia isto acontecer
Serás minha rainha
Mais rainha do que és
E o Rei Momo beijará teus pés
Reparem no verso
Mais rainha do que és

— naquele ano, minha mãe foi eleita a Rainha do Rádio.

No mesmo ano de 1950, ele também escreveu com Benedito “Quando a idade chegar”, uma inspirada profecia dirigida apaixonadamente à minha mãe. Referia-se aos amigos (Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Marino Pinto, Paulo Soledade) que compunham as canções com que ela se de-fendia durante a briga:

Quando a idade chegar
E o espelho mostrar
O estado em que estás
Hás de lembrar dos amigos
Que já não te conhecem mais
Orgulho, vaidade
Sempre foi seu bem-estar
Não adiantou aconselhar
Não sou feiticeiro
Mas prevejo o teu fracasso
Cairás muito cedo de cansaço

Uma das mais belas músicas que meu pai compôs, “Quando o tempo passar”, em parceria com David Nasser, em 1951, é dessa fase:

Sei, quando o tempo passar
Ninguém mais vai lembrar
Que nós dois existimos
Sei, nosso amor foi um sonho
Um pássaro risonho
Que nós dois destruímos
Partirei
Mas sei que não irei sozinho
A noite vai no meu caminho
A noite e mais ninguém
Partirás
Serás feliz na tua estrada
Por outro amor iluminada
Pois não te quero mal nem bem

O mundo parecia cair sobre a cabeça de meu pai, ao mesmo tempo que martelava o sentimento de perda da mulher que ainda amava e de quem sentia muita falta. Nesse momento crítico, José Messias foi o amigo que esteve profundamente ligado a ele. Era seu grande confidente e com ele Herivelto podia se abrir de verdade. Assim, Messias assistiu a muitos porres, tomados em nome da saudade de minha mãe.  Numa tarde em 1950, vendo o amigo deprimido, propôs saírem para espairecer um pouco. Sentaram na praça Tiradentes e meu pai começou a beber um chope atrás do outro. Messias, que jamais bebeu, lembra que esta foi mais uma das muitas tardes e noites em que ficou sentado com Herivelto nos bares, horas a fio, apenas com um copo de leite na frente. Meu pai ficava louco ao ver o amigo e confidente bebendo “aquilo”, enquanto ele tomava cerveja ou uísque com gelo. Nesse dia, Herivelto estava muito per-turbado com os próprios pensamentos. O assunto girava e voltava ao nome de Dalva. Tanto falaram nela que meu pai começou a cantarolar:

Nem o chope que eu bebi
Nem o chope
Conseguiu me libertar dessa mulher
Nem o chope, meu Deus
Nem o chope
Meu sofrimento é o que ela quer

Mas como não conseguia sair desses versos, ligou para o parceiro Benedito Lacerda pedindo que viesse rápido, pois tinham de terminar uma marcha para ganhar o Carnaval daquele ano. Benedito chegou com o compositor Evaldo Rui. Escutaram a música, mas nada de pintar a continuação. Acabou que a melodia da segunda parte foi sugestão de Messias, que teve a ideia de “chupar” um trecho de conhecida canção russa (não lembro mais o nome). Em cima dessa sugestão, já completamente de porre, eles encaixaram o resto da música, que foi lançada por Nelson Gonçalves no Carnaval de 1951, com o nome de “Nem o chope”: 

Já bebi demais Já sofri demais
Eu já fiz o que um homem não faz
Bebo pra esquecer meu sofrimento
E ela não me sai do pensamento

Ao me descrever essa tarde, Messias também recordou que foi nessa época que meu pai adquiriu o hábito de passar o copo gelado na fronte. Vi esse gesto muitas vezes, um hábito que ele manteve até o fim . Diz Messias que a sensação era que o gelo esfriava-lhe a cabeça — e as saudades de minha mãe. Ele passava a noite girando na testa, de um lado para o outro, um copo gelado ou cheio de gelo dentro. E o papo, o porre e as confidências eram sempre: “Dalva! Que falta ela faz”. Como Herivelto não podia se referir explicitamente a Dalva (ou a outras mulheres), ELA era uma imagem muito forte e usada com frequência por ele. Para lhe agradar, Messias se valia da mesma imagem em suas composições. Assim, conseguia fazê-lo se identificar com o tema e atraí-lo para a parceria. “Era a única maneira de me fazer notar: criar em cima da paixão do Herivelto.” Uma passagem de 1957 retrata bem o vulcão de sentimentos ocultos que ainda dominavam meu pai. É o momento em que foi composta a música “Pensando em ti”. Estavam os dois na varanda do sítio em Bananal, ao cair da noite. Messias cantou para meu pai os versos iniciais de uma música inspirada em Dalva e Herivelto:

Pode o céu
Cair por cima de mim Pode o sol
Deixar de me iluminar
Pode tudo Neste mundo Me acontecer
Só não quero é perdê-la Pois sem ela, meu Deus
Eu não posso viver Eu adormeço Pensando nela
Eu amanheço
Pensando nela Eu passo o dia
A pensar na vida dela Viver sem ela
É pintar
Sem aquarela

Herivelto gostou da ideia e trabalhou com ele na primeira parte da música, que ficou assim:

Eu adormeço
Pensando em ti
Eu anoiteço
Pensando em ti
Eu não te esqueço
É dia e noite
Pensando em ti
Eu vejo a vida
Pela luz dos olhos teus
Me deixa ao menos
Por favor pensar em Deus

De volta ao Rio, meu pai foi se encontrar com David Nasser, que, num momento muito inspirado, escreveu a belíssima segunda parte:

Nos cigarros que eu fumo
Te vejo nas espirais
Nos livros que eu tento ler
Em cada frase tu estás
Nas orações que eu faço
Eu encontro os olhos teus
Me deixa ao menos
Por favor pensar em Deus

Enquanto isso acontecia, Messias, no seu cargo de secretário, permanecia do lado de fora da casa, esperando por Herivelto, enquanto ouvia sua ideia e seus versos serem desenvolvidos por David. Quando ele me contou essa história e disse que tinha a letra que fizera (e batizara de “Pensando nela”) guardada em algum lugar, não o deixei em paz até me mandar um fax com essa letra original de “Pensando em ti”, que transcrevi para vocês. Junto recebi esse recadinho dele: “Feito na varanda de pedra do sítio em Bananal, que foi meu e acabou sendo do Herivelto… Na hora, falávamos de Dalva. Herivelto falando com o ódio de quem ama e sente saudade!”. Messias explica também que o tema que propusera tinha tal identificação com Herivelto que acabou rendendo duas parcerias dele com David. Além de “Pensando em ti”, gravada por Nelson Gonçalves, compuseram no mesmo clima “Se adormeço”, gravada por Gilberto Milfont:

Se adormeço
O teu vulto invisível
A meu lado se deita
E a noite é mais noite
O sonho é mais sonho
A teu lado e sem ti
Se acordo e te vejo distante
Mergulhada nas sombras
Na noite de uns braços estranhos
Já fartos de ti
Contigo e sozinho
Sonhando no sonho
Na noite da noite
No frio silêncio
De todo abandono
Eu me lembro de ti
E te aperto nos braços
Te beijo na boca
Enxugo teu pranto
Mas acordo abraçando
Meus braços vazios
Vazios de ti

Outra música para a minha mãe composta em parceria com José Messias foi “Jurei”, também de 1957: 

Jurei, tantas vezes jurei
Jurei, nunca mais perdoar
Porém, toda vez que ela vem
Meu perdão implorar
Não sei negar
Ela faz de mim
O que bem quer
Me acostumei a essa mulher
Quem muito apanha
Termina perdendo a vergonha

Conta Messias que todos esses versos foram compostos exclusivamente porque meu pai não conseguia parar de pensar em minha mãe. Mas é claro que nada disso podia trans-parecer. E, para não dar nenhuma bandeira, essas músicas eram mostradas para Lurdes como sendo a manifestação de algum amor de Messias.Para todos os efeitos, era Messias quem es-tava sentindo aquilo tudo. Ele confirmava e segurava todas as barras. Somente agora, passados quase cinquenta anos, com todos os envolvidos já mortos (Dalva, Herivelto e Lurdes), é que Messias se sentiu liberado para me confidenciar essas experiências com meu pai, o amigo e mestre dos primeiros tempos. Quando conversamos, perguntei também por que na parceria de “Pensando em ti” não saiu seu nome, mas apenas o de David. Com a generosidade que lhe é peculiar, respondeu: “Porque, na época, teu pai amargava um período terrível de desprestígio e ódio do grande público. Por onde passava, era desprezado e teve até o carro apedrejado. E como o David Nasser tinha um prestígio enorme como jornalista, foi obrigado a se segurar nele para tentar minorar seu drama e melhorar sua imagem . Por isso, essa minha homenagem a Dalva ficou embutida numa parceria só com o nome dele e do David”. Todas essas obras e confidências vêm realmente reforçar minha análise sobre o comportamento e os sentimentos de meu pai em relação à minha mãe. Vejo que o homem Herivelto, à parte seus compromissos com a casa, os filhos e os assuntos mais corriqueiros, ficava sempre subjugado pelo artista Herivelto. Este tinha mais desenvoltura, sentido criativo e encontrava mais prazer e amplitude ao mostrar sua verdadeira razão de viver. A música e sua obra determinavam-lhe os passos. Até mais que o coração. Pelo menos enquanto ele não se permitiu morrer por dentro. Nos meses em que minha mãe esteve in-ternada, durante todo o tempo no leito do hospital, antes de morrer, o que mais ela desejou foi que meu pai a visitasse. Devido a meu trabalho, ficava muito com ela nas madrugadas. E, naquele silêncio aterrador do hospital, ela me fez prometer que pediria a ele para ir vê-la. Nunca foi. Quando falei com ele, me oferecendo para acompanhá-lo numa visita durante a madrugada, horário em que não havia fãs nem a imprensa, ele me deu umas desculpas esfarrapadas, alegou que não queria mais ter seu nome envolvido nos jornais, blá-blá-blá. Como filho (e minha sensibilidade me autoriza a dizer), acho que ele não foi lá por medo. Medo de constatar que ali falecia o amor maior de Herivelto Martins, a mulher-inspiração da sua vida. A companheira de uma época brilhante, do seu momento mais fértil, quando a sua melhor obra aconteceu para o mundo e era ovacionado ao lado de minha mãe com o verdadeiro Trio de Ouro. Já vimos como a grande explosão de cri-atividade de meu pai aconteceu ao lado de Dalva. E o auge de sua realização artística também . Em minha percepção, acredito que tudo isso tenha influenciado sua posição de não ir ver minha mãe no hospital. Aquela era uma realidade muito forte para ser vivida por ele tanto tempo depois. Iria mexer demais com o seu mundo interior, e anterior. Qualquer outra explicação oferecida por quem quer que seja será pura especulação ou tentativa de encobrir a razão verdadeira. Medo, covardia. Medo dos fãs de Dalva. Sentimentos que até compreendo, mas que levaram muita gente que acompanhou esses fatos a condenar meu pai. Sem necessidade. Embora a história deles já fizesse parte do inconsciente coletivo, haviam se passado mais de duas décadas da separação, e mesmo que visitá-la fosse apenas uma atitude política para o público que os observava, teria ajudado muito a humanizar a imagem de meu pai. Ele perdeu a grande chance de se redimir de todo o acontecido não fazendo esse gesto da visita à minha mãe no leito de morte. Tentei dizer isso, mas ele não me entendeu. Preferiu ouvir outras vozes, que o aconselharam a não ir, mas que não pagaram o preço que ele teve de pagar: o julgamento da história.



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