segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*





46 - Lurdes, a Rainha-mãe

A personalidade calma e firme de Lurdes, além de conquistar meu pai, aos poucos foi conquistando também a confiança de um grupo seleto de frequentadores do centro espírita. Além de conselheira espiritual, fizeram dela sua confidente. Dessa forma, essas pessoas também passaram a ter acesso à casa na Urca, onde seus conselhos eram oferecidos num clima de mais intimidade. Ou até uma sessão espírita particular. Era um entra e sai, a qualquer hora do dia e da noite. Chegavam querendo logo subir para falar com Lurdes. Em cima, no quarto de casal, se desenvolvia a continuidade do centro. Ela os recebia e eles falavam, falavam … a ponto de Lurdes saber a vida completa de cada pessoa que subisse aquelas escadas. Muita gente da família também buscava sua palavra. Assim, ela passou a centralizar muita informação em suas mãos. E, é claro, isso lhe deu um poder fantástico. Tornou-se fácil ter o controle da família, pois todo e qualquer assunto passava por ela. Era o domínio total. Como acontece com frequência em torno de líderes espirituais, aos poucos foi se formando em volta de Lurdes uma grande corte, composta de artistas da Globo, políticos importantes, empresários influentes. E lá em - baixo, meu pai, que sempre tivera na vida espiritual uma forma de expiação do passado e uma busca de aprimoramento de sua conduta, foi ficando num papel de coadjuvante. A ele, que sempre havia sido o centro das atenções, restava apenas recepcionar quem ia procurar Lurdes. Ao mesmo tempo, via tantas pessoas importantes se mostrarem dependentes e obedientes da palavra e da orientação de Lurdes que experimentava certa sensação de superioridade. Fazia meu pai experimentar também seu quinhão de poder por meio da esposa. As muitas pessoas que transitavam entre o centro e a casa da Urca eram poder-osas, tinham força no mundo artístico, na política, tinham força financeira. Mas é claro que muita gente humilde e pobre também recorria a eles no centro. Nesses casos, meu pai e Lurdes ajudavam nas “obrigações” pedidas por algum guia do centro, bancando todo o material necessário. Como já disse, ele era muito sincero, muito honesto em sua conduta no centro espírita. O crédito que desenvolveu ao longo dos anos à frente do seu centro foi enorme. No entanto, esse esquema full time de mãe de santo da Lurdes foi trazendo consequências para a vida do casal. Primeiro, ela foi ficando muito fraca de saúde. A energia gasta para receber as entidades no centro, a continuidade desse trabalho dentro de casa, tudo isso era desgastante ao extremo. Mas, mesmo com a saúde debilitada (colocou ponte de safena duas vezes), continuava a fazer de seu quarto o ponto de reunião de pessoas especiais, além de ir ao centro em alguns sábados. Consequentemente, já não tinha mais tempo nem disposição para acompanhar meu pai no trabalho ou em passeios. Com o entra e sai das pessoas em casa, suas vidas foram perdendo a privacidade e intimidade tão necessárias. Acho que Lurdes ficou tão carregada com os problemas dos outros, noite e dia nessa posição de guia espiritual, que foi perdendo a capacidade de se desligar. Daí veio o problema da insônia. Eram tantas histórias, dramas, tristezas que não conseguia parar de pensar. Dormir tornou-se um sacrifício. Algumas vezes, como hóspede da casa, eu chegava de madrugada e ia até a cozinha comer algo. Ouvindo barulho, ela descia, completamente grogue, e sentava comigo para conversar. Eu quase não conseguia entender o que dizia. Tomava altíssimas doses de soníferos e mesmo assim só pegava no sono lá pelas cinco ou seis horas da manhã. Enquanto isso, meu pai, que dormia cedo, não a encontrava na cama no meio da noite e ia buscá-la na cozinha. Ela subia cambaleando e, claro, não conseguia dormir antes de o dia amanhecer. Isso deve ter sido um grande sofrimento para ela. Lurdes foi perdendo os limites entre o real e o espiritual, adotando uma posição de dona da verdade, em nome de seu dom . Não questiono o dom espiritual, mesmo porque presenciei muita gente ser confortada por esse dom, nem falo do trabalho de Lurdes junto aos estranhos. O que questiono é ela querer controlar a vida de todos na família em nome de suas privilegiadas informações do além . Passou a ser a rainha-mãe, a quem todos tinham de bater cabeça e submeter à sua análise seus problemas, recebendo soluções nem sempre tão condizentes com o que o assunto pedia. Sem querer julgar, apenas constatando sua forma de ser e levar a vida, posso dizer que Lurdes não permitia que nada acontecesse à sua volta sem que antes passasse pelo seu crivo e conhecimento. Fazia questão de dominar totalmente os fatos, assumindo uma superpostura: de aprovação ou não do que acontecia perto de si. Era assim com o centro, com os filhos, era assim com os “angustiados” que a procuravam e com meu pai. Pelo fato de não ter essa ascendência sobre mim ou sobre meus irmãos Hélio e Hélcio, sua atitude conosco era cordial, mas sem profundidade. Porém, no que pudesse exercer algum controle sobre nós, não pedia licença ou consentimento. Recordo quando tive um problema sério de saúde, uma pericardite aguda, e comecei a ser tratado em São Paulo, onde morava. Assim que tive uma melhora, resolvi passar o Natal com meu pai, no Rio. No dia 31 de dezembro, tive uma recaída e fui levado às pressas para o hospital. Fiquei na UTI algum tempo, antes de ir para o quarto. Todos ficaram preocupados comigo, parentes, amigos e fãs, e queriam me ver. Recebia muitas visitas e gostava disso. Me sentia querido e importante. Certo dia, apareceu Lurdes dando ordens e determinando quem deveria ou não me ver. A que horas eu podia ter visitas. Tentei ponderar, pedindo para ela não agir assim, pois, dentro do possível em minha recuperação, não fazia restrição a quem fosse me visitar. Todos mereciam minha consideração — aprendi isso com minha mãe. Não houve jeito. Ela desconversou um pouco e começou disfarçadamente a pro-mover uma escala das visitas. Ao perceber sua insistência, dei um grito no quarto e comecei a dizer, da forma mais calma possível, meio entre os dentes, que se ela quisesse me visitar seria um prazer enorme, mas que não se metesse no assunto das minhas visitas. Ela saiu pisando duro, contou para meu pai (do seu jeito, com certeza), e a partir daí não recebi mais a visita de ninguém da Urca. Fiquei chateado, pois, é claro, fazia questão da presença do meu pai. Não havia limites para Lurdes… Sua sede de comando era tão desmedida que atingiu minha mãe, numa situação inusitada e distorcida. E erradamente alimentada pela imprensa na época de sua morte, criando até hoje uma falsa ideia na cabeça das pessoas. Meu pai menciona em sua biografia que nos últimos tempos Lurdes se tornara confidente, conselheira e amiga da minha mãe. Para mim, e só para mim, isso retrata uma posição bastante confortável dele. Vejamos: ao ter a própria mulher empenhada em ser uma possível amiga de Dalva e em solucionar alguns de seus problemas, ele nos dá a impressão de que estaria aplacando cer-tos sentimentos. Que não teriam chance jamais de serem aplacados se não tivesse uma pessoa como Lurdes para substituí-lo ou fazendo o que ele deveria ter feito. Na verdade, deveria é um tempo de verbo ridículo, mas o que quero dizer é que meu pai, de forma cômoda, permitiu que Lurdes se comunicasse com minha mãe a ponto de oferecer ajuda espiritual. Por que não? Ela fazia isso com muita gente, alguém poderá dizer. Se minha mãe estivesse querendo o conforto de alguma mãe de santo, poderia ter lançado mão das mais respeitadas do país, que nos procuravam a toda hora oferecendo apoio espiritual. Lurdes não era a opção mais conveniente para ela. Porém, em sua carência e fragilidade, minha mãe aceitou esse assédio, se deixando enredar por tanta generosidade. Não era pessoa de colocar nenhuma malícia na atitude dos outros. Era muito aberta e, mais importante ainda, não cultivava ódios. Mágoas, sim. E, em sua ingenuidade, penso que também acreditava que, ao permitir a aproximação de Lurdes, teria mais chance de rever meu pai. Quem poderia impedi-lo de ir (sua atual esposa) não o faria, pois já haviam se confraternizado e colocado uma pedra em cima de tudo. Ledo engano. Acho que, ao ir com frequência visitar minha mãe no hospital, como que procurando substituir meu pai, Lurdes espelhava na realidade apenas uma postura arraigada de quem queria manter até o último instante controle total dos acontecimentos. Nada mais. Afinal, era meu pai que minha mãe queria ver, e não ela. Se quisesse realmente ser generosa, em vez de apenas posar, bem que poderia ter aproveitado seu domínio sobre meu pai intercedendo a favor de Dalva e, com seu apoio, dar a coragem necessária a ele para vê-la nos momentos finais. Vou mais longe ainda. Acredito que para Lurdes, que tão bem conhecia o interior de meu pai, Dalva sempre representou a grande rival. Aquela que reinava em sua emoção. A mulher-inspiração que nunca saiu de suas veias e de suas rimas. Ela devia considerar muito arriscado deixá-lo ficar frente a frente com um passado que não morrera em seu coração. E ter depois de colar os cacos novamente. Posando de boazinha para o mundo, como confidente e amiga de Dalva, Lurdes procurava apagar o próprio papel na separação deles. Por ela, meu pai largou tudo: a esposa, os filhos e o Trio de Ouro, seu grande oxigênio. Sua postura era regida pelo peso da consciência, sabendo em seu íntimo que o processo que se finalizava, agonizante, naquele hospital, havia começado num voo da Real havia mais de 25 anos. Acredito que foi uma tentativa extremada de atenuar sua responsabilidade em toda a história, mas daí a se tornar amiga de minha mãe vai uma distância enorme. Tiro meu chapéu para a sagacidade da “rainha-mãe”, mas ela não conseguiu me convencer. 



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