segunda-feira, 26 de junho de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




22 - O casamento com Tito

Minha mãe conheceu o segundo marido quando ele veio ao Brasil se apresentar ao lado de Gôgo Andrews, com quem formava a dupla de comediantes Tito e Gôgo. Juntos, lotavam os teatros e levavam o público argentino ao delírio. Além de comediante, Tito Clemente era músico, excelente dançarino e coreógrafo (era conhecido como o Fred Astaire argentino) e diretor de programas na TV. Tito se apaixonou por minha mãe. Ela, romântica e carente, começou a curtir o clima do assédio com que ele a cercava. Jantares finos depois do show. Presentes. Convites para ir a Buenos Aires. Friozinho, vinho tinto, lareira. Ele era um homem re-finado, com educação europeia, oriundo de um tipo de família que minha mãe, até então, não havia conhecido. Uma família também de artistas. Seu pai era um conhecido tenor espanhol. A mãe, francesa, abandonou os mais finos colégios parisienses para se entregar à paixão pelo teatro. Elegância e finesse. Tudo isso contribuiu para que Dalva entrasse de cabeça em um novo relaciona-mento. Para uma mulher que veio do interior de São Paulo, pobre e tão maltratada pelo ex-marido, era algo novo, um conto de fadas, longe do cenário de tantas mágoas. Algum tempo depois que se conheceram, em meados de 1950, surgiu o convite para minha mãe gravar em Londres. Tito a acompanhou na viagem à Europa. Levou-a a museus, restaurantes, lojas finas. Demonstrando seu feeling comercial, foi o responsável pela excursão realizada por Dalva a outras cidades da Europa, conseguindo ótimos cachês para ela. Aproveitando o clima de lua de mel, casaram em Paris, na Igreja de Montmartre. No ano seguinte, 1951, oficializaram a união (por procuração) no Chile. Minha mãe começou a demorar cada vez mais em Buenos Aires. O sucesso de seus discos na Argentina facilitava esse vaivém . Tito também começou a vir ao Brasil, para a casa de Jacarepaguá. Que-ria estar perto dela. Ele nos tratava bem, mas não era carinhoso. A gente sentia que ele queria privacidade e que não gostava muito de dividi-la com os filhos. Numa das idas de minha mãe à Argentina, Tito a convenceu a viverem por lá. Ele havia acabado de receber um convite para dirigir uma emissora de TV de Buenos Aires. Combinaram que ela viria ao Brasil cumprir temporadas. Chegaram a montar uma casa, que não conhecemos — nosso pai não permitiu que vivêssemos com ela, longe dele. Era bem o que Tito queria: Dalva só para ele. Nossa única ida à Argentina foi antes de terem a casa. Ganhamos um enxoval novo para a viagem: terninhos, casacos pesados para o frio. Ficamos hospedados na casa da mãe dele, uma autêntica dama de rígida educação europeia. Era uma casa finamente decorada, com regras muito formais. Para nós, tudo parecia cenário de filme estrangeiro. A casa deles, que conhecemos apenas por fotografias, era realmente racée: decorada com móveis de estilo francês, objetos de arte, coleção de peças de marfim, tapetes caros. Um luxo só. Penso que, naqueles primeiros tempos, minha mãe se sentiu mesmo uma princesa vivendo um conto de fadas. No Brasil, uma cantora novata, Ângela Maria, começava a medir forças com Dalva. Principalmente depois de os jornais e revistas anunciarem que minha mãe, já casada com Tito e com casa em Buenos Aires, re-solvera viver na Argentina. Não era bem isso. Mas o fato de estar num país vizinho ao nosso, ser amada pelo povo argentino, fazendo sucesso com suas gravações com ídolos como Francisco Canaro, convivendo com outra família num clima tão diferente, contribuiu para ela se sentir bem e resolver que ficaria um pouco por lá. Longe dos dramas da sua vida. Aparentemente, estava feliz. Mas não sei até que ponto sentia falta do convívio com sua gente, das irmãs, de sua mãe e, principalmente, dos filhos. Estávamos definitiva-mente presos aqui, pois meu pai jamais permitiria que deixássemos o Brasil. Ela acabou voltando para o Rio. Junto veio Tito, que, numa declaração de amor mais do que explícita, deixou de lado uma carreira consagrada em seu país para acompanhá-la. Ele era uma pessoa finíssima e se empenhou em transformar a vida de minha mãe. Veio também com o intuito de gerenciar a carreira dela. Queria criar um cenário perfeito para que a grande dama da canção brasileira florescesse. Fazia tudo para que ela interpretasse sua vida como um papel dramático. Tito pretendia cuidar da imagem de Dalva. Queria que as revistas tivessem fotos dela, nos palcos ou em casa, sempre bem produzida. Queria dar dignidade a cada gesto de minha mãe. Se meu pai havia lapidado o diamante bruto, transformando-a de moça do interior em moça da capital, Tito terminou a metamorfose ao lhe dar um grande poli-mento, revelando toda a sua capacidade de brilhar. De moça da capital, meio brega, ele a transformou em mulher chique, elegante, com alguns requintes até. Na excursão à Europa, logo que se conheceram, ele lhe mostrou, de uma só vez, o mundo e o que havia de melhor nele. Apresentou-a aos grandes figurinistas, orientou-a com o cabelo rebelde, convenceu-a a deixar de usar biju-terias espalhafatosas e ensinou a importância das joias verdadeiras. Tito procurava afastar minha mãe das companhias que só se acercassem dela para beber ou tirar proveito e vantagens financeiras. Por causa desse afastamento, certas pessoas tinham ódio dele, diziam que era um cafetão de Dalva. Mas, na verdade, se alguém tentou oferecer uma conduta mais refinada à minha mãe, essa pessoa foi Tito. Ele dizia que a forma como ela vivia não era digna de uma estrela. Ela bem que tentou atendê-lo. Naquele momento, ele era o seu homem e, como tal, passou a ser mentor e organizador da grande festa que cercava Dalva no Brasil. Mas era muito difícil para ela. Não conseguia acompanhar a “cartilha” de Tito. Em sua espontaneidade, Dalva era um ser muito real — sentimento e verdade habitavam seu interior. Não se pode dizer que ela tivesse algum problema de disciplina. Ao contrário, fora treinada na intensa disciplina por Herivelto. A grande diferença é que meu pai criou para Dalva uma imagem no palco, à qual ela se empenhou em assimilar, mas nunca pretendeu moldá-la fora dos palcos. Ele não tolhia sua personalidade, deixava-a ser o que era. Tito, não. Na maioria das vezes, exigia que ela fosse uma lady, se comportasse como rainha e atuasse — esta é a palavra — o tempo inteiro. Até mesmo em casa, com a família e com os filhos. Ele queria trazer para nossa casa o clima de vida formal em que fora criado: horários rígidos, mesa muito bem -posta, roupas mais formais, mesmo em casa. Nada de penhoares ou pijamas circulando fora dos quartos. Não funcionou. Minha mãe era uma pessoa vibrante, alegre, descontraída, moleca até. Adorava uma brincadeira. E, por mais que gostasse do marido e quisesse acertar no casamento, aquele esquema fugia completamente de sua maneira de ser e de sua formação simplória de vida. Para piorar o choque cultural que pintou entre eles, a família de minha mãe, de pessoas muito simples, não suportava Tito e não conseguia absorver nada de sua nova proposta de vida para Dalva. Minha avó e meu avô foram os primeiros a gritar contra Tito, mesmo porque, ao ad-ministrar as finanças, ele não permitia que minha mãe fosse tão “aliviada” por eles dois. E assim veio o desgaste das brigas. A bem da verdade, as brigas de minha mãe com Tito, porque ele não era de encrenca. Não revidava, apenas saía para outro aposento ou para a rua. No início, devido a sua discrição, acontecia na intimidade do quarto. Mas minha mãe, muito irreverente, acabou trazendo essas discussões para a sala. Tito resistia sempre: “Dalvita, no hagas esto delante de la gente!”. Apesar dessas diferenças, minha mãe queria realmente fazer o casamento dar certo, a ponto de resolver com Tito adotar uma criança, já que ela não podia mais ter filhos. Desejosa de uma filha, eles adotaram uma linda menina, recém -nascida e moreninha, a quem passamos a amar como nossa irmã. A adoção de Gigi, batizada de Dalva Lúcia, em 1954, não trouxe nem para minha mãe nem para Tito a paz que eles esperavam . O mundo deles era muito diferente e os conflitos se sucediam . Ele tentava impor limites à minha mãe, controlar sua bebida, afastar as irmãs que a acompanhavam no conhaque e evitar que enchesse a casa de fãs, perdendo sua intimidade e a grande magia de estrela. O fantasma do ciúme também rondava o casamento — os dois morriam de ciúme um do outro. Tito tentou desenvolver algumas atividades no Brasil independentemente de Dalva. Chegou a fazer shows cômicos, mas o seu “portunhol” não o ajudava com o público. Maurício Sherman contou-me que minha mãe lhe pedira para aproveitar a experiência do marido nas suas produções, pois ele se sentia muito mal de ficar sem atuar e, pior ainda, por causa dela. Na época, Sherman era diretor da TV Tupi e o convidou para dirigir um programa infantil. De acordo com Sherman, Tito mostrou ser um profissional talentoso e se saiu muito bem no trabalho. Gigi recebeu uma atenção especial deles em sua educação, e foi se tornando uma espécie de menina-prodígio. Tocava piano e dançava balé. Minha mãe vivia exibindo-a na imprensa e levando-a aonde fosse sempre que possível. Quando conversei com Gigi sobre sua infância, ela lembrou que sofria muito com os pileques de Dalva. Ainda criança, não entendia como uma pessoa podia ser tão maravilhosa e depois ficar tão horrível. Recordamos como nossa mãe conseguia ser doce, mas também muito enérgica; como era organizada e histérica com a limpeza da casa e com a nossa higiene — ficávamos com as orelhas queimando quando resolvia limpá-las! Gigi lembrou uma coisa muito importante: quando Dalva sofreu uma operação para extirpar um tumor na área feminina, por volta de 1962, o médico a assustou muito afirmando que, se quisesse continuar a viver, teria de ficar longe até dos rótulos das bebidas. Dalva ficou aterrorizada; mesmo sendo espiritualista, morria de medo de morrer. Levou a sério as palavras por um bom tempo. Tito, aproveitando a trégua, tratou de colocá-la em tratamento médico para com - pensar os estragos da bebida. Emocionada, Gigi diz que esses dois anos, 1962 e 1963, em que ela se manteve afastada da bebida, foram os mais felizes de sua infância. Infelizmente, durou pouco e nossa mãe voltou a se descontrolar, a afogar as carências num copo, em vez de buscar dentro do ser humano que era o seu próprio alimento. Com o passar do tempo, quatorze anos juntos, Tito foi se cansando. Não conseguira mudar a trajetória da vida de Dalva e o relacionamento deles estava muito desgastado. É interessante observar que a vida amorosa de minha mãe acontecia em ciclos de quatorze anos ou, como podem preferir os estudiosos da cabala, em dois ciclos de sete anos… Convidado a dirigir um importante pro-grama de TV em Buenos Aires, Tito entregou os pontos e resolveu deixar minha mãe. Retornou à Argentina em março de 1965. Para complicar ainda mais, resolveu levar Gigi para viver com ele e sua mãe. Dalva, já chocada com a separação, aí sim ficou total-mente aturdida. Gigi, com quase onze anos, havia conquistado todos nós, principalmente minha mãe. Eram duas grandes perdas, num mesmo momento. Num gesto de desespero, minha mãe convenceu Tito a perguntar a Gigi com quem gostaria de ficar, na esperança de ser escolhida, creio eu. Para nossa surpresa e grande decepção de Dalva, ela declarou querer ir com o “papito” para a Argentina. Não gosto de recordar como minha mãe ficou transtornada — tentou de todas as formas dissuadi-lo. Propôs até uma reconciliação, mesmo sabendo que a situação entre os dois havia se tornado impossível. Ele não cedeu, e este foi mais um triste capítulo em sua vida. Minha mãe sofreu muito e o conhaque se tornou seu companheiro mais e mais frequente. Ela ligava para Buenos Aires, mas Tito não respondia. Notícias de Gigi, então, nem se fala. Ele realmente havia tomado uma decisão radical: cortar todos os vínculos com Dalva. Eu percebia que, devagarzinho, o sentimento de derrota tomava conta dela. Por mais que fizesse sucesso, não era o bastante. Ela havia jogado muitas fichas em Tito e no que ele representava — o sonho de um casamento feliz. Era insuportável assistir ao que se passava no coração de minha mãe. Mesmo procurando não dar o braço a torcer, ela se abatera muito. Não era fácil encarar o fim de um segundo casamento. E a perda do carinho de Gigi. Minha mãe ainda escreveu cartas para a filha adotiva durante muito tempo. As cartas eram rasgadas pela mãe de Tito, que não queria ligação nenhuma com Dalva. Gigi conta que a avó tinha ódio mortal de Dalva, pois considerava que ela havia destruído a importante carreira do seu filho na Argentina. Tito, infelizmente, com seu tempera-mento mais frio, permitiu esse tipo de desenlace para a relação deles. Durante o casamento, eu via que, apesar de tantas críticas da família, Tito estava real-mente empenhado em dar um novo sentido à vida de minha mãe. Lutou muito para livrá-la da bebida. Trabalhou com dedicação para dar-lhe grandeza, tanto pessoal como artística. Não foi entendido por quase ninguém . Era muito conveniente para todos — família, amigos e gravadora — considerá-lo um intruso. Sua tentativa de elevar o uni-verso de Dalva incomodava a todos, pois as-sim evitava que ela fosse tão facilmente manipulada. Passados esses anos, vejo que ele representou para mim um grande aprendizado. Os detalhes de sua elegância masculina me marcaram: ternos bem cortados, sapatos de qualidade, roupas muito bem passadas, colarinhos impecáveis, gravatas de bom gosto, vinhos finos. E suas maneiras aristocráticas me trouxeram referências muito diferentes das que conhecia: postura à mesa, discrição e delicadeza no trato com as pessoas. Embora sem perceber na época, posso dizer hoje que Tito foi meu professor de boas maneiras, cavalheirismo e civilidade.



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