Após a morte do cantor em 30 de abril, aos 70 anos, ZH foi à cidade do Vale do Rio Pardo ouvir as pessoas que hospedaram o cearense
Por Juliana Bublitz
Ubiratan, Marina (C) e Ingrid Trindade acolheram Belchior e Edna por três meses em sítio da famíliaFoto: Carlos Macedo / Agencia RBS
A abadessa emérita Paula Ramos, 87 anos, não fazia ideia de quem era o hóspede no Mosteiro da Santíssima Trindade, no interior de Santa Cruz do Sul. Esguio, bigode farto e cabeleira preta, Belchior apareceu com sua companheira, a produtora cultural Edna Assunção de Araújo, e duas malas. Parecia feliz naquele outubro de 2013. Chegou com um amigo e passou quase despercebido. As demais monjas logo detectaram a presença ilustre. Belchior continuava o mesmo, exceto por algumas rugas a mais.
— Madre Paula, a senhora se deu conta de quem estamos hospedando? É um elefante branco! — disse uma das irmãs, que conhecia a história do cantor e a polêmica em torno de seu sumiço, noticiado na imprensa.
Com 65 anos de vida religiosa, a abadessa contabilizava seis décadas de clausura, sendo duas delas sem contato com o mundo externo. Não testemunhou o ápice da carreira do músico cearense e desconhecia suas canções.
Nos últimos dias, o episódio da visita foi relembrado pelas freiras com uma nota de tristeza, por conta da morte de Belchior, encontrado sem vida no domingo passado, em Santa Cruz. Ele tinha 70 anos e morreu dormindo, vítima de rompimento da aorta. Estava vivendo de favor, com Edna, 50 anos, na casa de um empresário local. Nem os vizinhos sabiam.
A notícia agitou a cidade de 125 mil habitantes, atraiu jornalistas do centro do país ao município do Vale do Rio Pardo e pegou de surpresa as beneditinas. Belchior e Edna passaram pelo mosteiro duas vezes nos quatro anos em que se esconderam em Santa Cruz, cidade dos últimos refúgios do criador de clássicos do repertório nacional, como Alucinação, de 1976.
Naquele primeiro contato com madre Paula, o cearense célebre agia como uma pessoa de hábitos simples, gestos delicados e poucas palavras. Quem pediu pouso para ele no monastério foi o radialista Dogival Duarte, 50 anos. Assim que Edna e Belchior se instalaram no local, situado no distrito de Rio Pardinho, a companheira do cantor chamou a abadessa para conversar. A octogenária foi informada, então, de que o artista era procurado pela Justiça. Por se negar a pagar pensão alimentícia para a ex-mulher, Ângela Belchior, ele teve mandado de prisão decretado e as contas bloqueadas. Edna tinha medo de que o companheiro fosse preso e considerava a cobrança injusta. Também dizia ser alvo de perseguição política, o que nunca foi bem explicado.
— Ficamos um pouco preocupadas com tudo aquilo, mas São Bento diz que, quando alguém procura acolhimento no mosteiro, é o próprio Cristo que vem ao nosso encontro. Não podemos negar ajuda — lembra a irmã Andréa Freire, 51.
A guinada na vida de Belchior, segundo relatos de amigos, começou em 2005, quando ele e Edna se conheceram, em São Paulo. Ele apaixonou-se pela produtora cultural e decidiu terminar o casamento de 35 anos.
Aos poucos, o autor de Como Nossos Pais cortou laços com os quatro filhos já crescidos, abandonou os palcos e deixou tudo para trás, sem dar explicações. Familiares até hoje não entendem a mudança repentina e culpam Edna pela reviravolta. Há quem diga que ele apenas se cansou dos holofotes e partiu em busca de aventura. Edna, nesse caso, seria o estopim.
A controvérsia foi parar nos jornais, e o mistério em torno da fuga de Belchior cresceu, principalmente depois da veiculação de reportagens no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2009 e 2012, que relataram a rotina de fuga e os problemas financeiros do casal. As irmãs beneditinas evitaram tocar no assunto.
— Temos algumas regras. Não ficamos perguntando coisas para as pessoas — explica irmã Andréa.
Nos pouco mais de 30 dias em que permaneceu no mosteiro, situado no topo de uma colina, Belchior cativou as oito beatas que lá viviam. A pedido das anfitriãs, cantava e tocava violão no intervalo das 19h às 20h, horário destinado à conversa e à troca de experiências. A música mais pedida era Paralelas, a preferida da irmã Teresa Paula, 60 anos. Segundo ela, Belchior mantinha a potência vocal de outrora e emocionava as religiosas. Edna nem sempre gostava. Temia que ele fosse descoberto, mas os apelos das freiras eram mais fortes. Ele nunca se negou a cantar para elas.
— Quase desmaiei de emoção quando o vi. Não era um artista qualquer. Ele era um patrimônio da música brasileira e estava ali, bem na nossa frente. Estava absolutamente lúcido e continuava genial, apesar de tudo — diz a irmã, que hoje vive em São Paulo.
No restante do dia, o autor de Medo de Avião ficava no quarto com Edna, lendo e escrevendo. Certa vez, ganhou de madre Paula penas e canetas de caligrafia e reproduziu um poema de Santa Teresa de Jesus. O objeto é guardado como relíquia pelas freiras.
Belchior também agradava as religiosas quando participava de missas e orações. Sete vezes ao dia, o silêncio do lugar é quebrado pelo ressoar do sino e pelos cantos religiosos. Ex-seminarista, ele conhecia a liturgia, admirava Santa Gertrudes e São Francisco de Assis e era apreciado por isso.
Na cerimônia do Ano-Novo, em 31 de dezembro de 2013, o bispo emérito de Santa Cruz, dom Sinésio Bohn, 82 anos, pediu para que o convidado cantasse Panis Angelicus, cântico católico escrito por São Tomás de Aquino. Belchior atendeu a solicitação com gosto.
— Foi um momento bonito, de muita intimidade. Ele era um gentleman — sintetiza o bispo.
Quando estavam todos juntos, conversando, o forasteiro gostava de falar sobre suas viagens a Portugal e contava piadas que faziam as freiras corar. Falava sobre os festivais de música do passado e sobre Elis Regina, de quem sentia saudade.
Comia o que todos comiam, com exceção de carne vermelha. Se não havia outra opção, bastava-lhe ovo frito. Tomava água e gostava de uma taça de vinho tinto.
Em janeiro de 2014, o casal teve de deixar a paz do mosteiro porque as normas internas impedem estadias longas. Na despedida, Belchior recebeu das beatas um anel de prata com a imagem de São Bento.
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