terça-feira, 20 de junho de 2017

MARINÊS E SEU DISCO SUBVERSIVO DE 1967

Por José Teles 




A história da música popular brasileira é contada quase sempre por historiadores do Sudeste, a música que chamam de regional, ou seja, o que é produzido fora do Rio ou São Paulo, é quase inteiramente ignorada. Do forró, apenas Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, que formavam com Marinês o triunvirato mais influente do gênero.

Em listas dos grandes discos de determinado ano, forró nunca entra (assim como não entra música caipira). Na relação dos LPs importantes de 50 anos atrás, não se irá encontrar Marinês, estreia em LP da cantora na CBS (onde o marido, Abdias, era produtor do cast de forró). O álbum não é só uma mudança de gravadora mas a pioneira incursão de uma forrozeira, ou seja, uma artista popular, na excludente sigla MPB, surgida dois anos antes, com a era dos festivais.

Marinês, o disco, tem quatro composições de Gilberto Gil (uma delas a inédita Aboio, gravada no ano seguinte pelo MPB-4), Sérgio Ricardo (a também inédita Mutirão, que entraria na trilha de A Noite do Espantalho, o filme que ele roteirizou, musicou e dirigiu em 1974) , João do Vale com Abel Silva (Eu Chego Lá, gravada por João do Vale, no mesmo ano, em compacto duplo).

Italúcia e Anastácia, comparecem com Vivendo e Aprendendo (“Sorria feliz de contente/na hora que o tombo levar/porque cada vez que se cai/ aprende-se a se levantar”), João Silva e Geraldo Nunes assinam a toada, Triste Despedida. De Onildo Almeida e Agripino Aroeira é Assim Nasceu o Xaxado. Também de Onildo é Catingueira que fecha o álbum (com José Maria de Assis). Completa-se com Mãe Sertaneja (Reinaldo Costa/Juvenal Lopes), e Súplica Sertaneja (Ayrão Reis/ Genival Cassiano/Niquinho).

O Cassiano acima citado é o mesmo da soul musica brasileira. Um dos integrantes dos Diagonais, que fez os backing vocais de Marinês neste álbum, um trio formado ainda por Hyldon e Camarão. Súplica Sertaneja abre com um órgão, provavelmente tocado pelo acordeonista Orlando Silveira, que faz a sanfona no disco. O primeiro, e provavelmente, único órgão num forró nos anos 60.

Marinês é basicamente baiões, toadas, e xaxados, que a cantora dominava com maestria, e vinha sendo usado como veículo para autores da MPB cantarem suas diatribes contra a ditadura militar. Nenhuma intérprete da época cantava de forma tão autêntica estes ritmos. Marinês solta a voz em Procissão, Vento de Maio e Viramundo de Gilberto Gil (a segunda com Torquato Neto, a terceira com Capinam), como se desconhecesse a existência da comedida bossa nova, influência generalizada na geração dos festivais.

Os arranjos são enviesados para a MPB, com violões, fraseados levemente rebuscados no acordeom, mas a voz agreste de Marinês predomina, até contrasta com os vocais bem comportados de Os Diagonais. O trio de forró também é utilizado no disco, equilibrando a sonoridade do LP, que tem em Mutirão, de Sérgio Ricardo, um das faixas mais bem resolvidas, numa interpretação empolgante da cantora.

O LP é um dos menos conhecidos da longa obra de Marinês. Os jornalistas Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues, afirmam, no livro O Fole Roncou- Uma História do forró (Zahar, 2012) que a ideia de “modernizar” Marinês foi do diretor artístico da CBS, o lendário Evandro Ribeiro, que mandou na gravadora durante muitos anos (faleceu em 1993). A cantora entrara na CBS no final de 1966, e lançou, sem repercussão, um compacto com Disparada (Geraldo Vandré/Théo de Barros), que merecia ter entrado no LP.

Fizeram um disco moderno, começando pela capa, onde ela aparece maquiada, de laquê nos cabelos à moda da época, sem o chapéu nem os trajes de cangaceiros, que era sua marca registrada. Não se esperava, no entanto, que Abdias e Marinês enveredassem por terreno tão delicado. Em O Fole Roncou reproduz-se um diálogo de Evandro Ribeiro com a cantora:

“Dona Marinês eu quero saber duas coisas da senhora: qual a marca de cigarro que a senhora fuma, e qual o tipo de comida que a senhora gosta”. E Marinês: “Por que, seu Evandro?”. E o irascível diretor: “É pra eu mandar entregar na cadeia. Os homens estão espremendo a gente aqui dentro por causa desse repertório subversivo que a senhora gravou”.

A CBS não fez divulgação do LP, a autocensura, antes a vigilante censura federal tirasse de circulação aquele mau exemplo, que poderia contaminar o forró, até então lúdico e romântico. Mesmo quando os compositores cantavam a seca, a tratavam como uma fatalidade, poucas vezes em tom de protesto (Vozes da Seca, de Zé Dantas, é exceção à regra).

A mando de seu Evandro, Marinês partiu para gravar outro álbum, Mandacarú. LP lançado no início de 1968, sem nenhum vestígio do breve flerte da Rainha do Xaxado com a subversão. É praticamente uma mea culpa.Três faixas de mandacaru têm a palavra amor no título: O Sininho do Amor (Altamiro Carrinho/Ribeiro Valente), Tema de Amor (Venâncio/Geraldo Nunes), e Amor É Mais Amor (Jacinto Silva/Dílson Dória).

Confiram Marinês no áudio de Mutirão, de Sérgio Ricardo:

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