segunda-feira, 19 de junho de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




21 - Quiseste ofuscar minha fama só porque vivo a brilhar

Aos olhos dos compositores, até mesmo daqueles que eram amigos de Herivelto, minha mãe ficara acuada diante da investida covarde de meu pai. Como poderia responder? Procurar outro jornal? Exigir direito de resposta no Diário da Noite, alimentando toda aquela sujeira? Ela não era compositora. Como se defenderia? Como responderia a todos aqueles ataques? Dalva era muito querida por todos e não se tem conhecimento de alguém no meio artístico com alguma queixa em relação a ela. Sua doçura e alegria despertavam carinho em todos. Assim, os compositores, vendo-a tão desprotegida, começaram a produzir maciçamente para ela, oferecendo o que descrevesse o momento que vivia com Herivelto. Em princípio, não havia nenhuma intenção de polemizar, embora o sucesso de “Tudo acabado”, é claro, tenha despertado o interesse comercial na disputa. Mas os compositores também tinham um interesse real em ajudá-la a combater a guerra que meu pai declarara. Contratada da Rádio Nacional, gravando sozinha na Odeon, discos fazendo sucesso e o país inteiro só falando de Dalva e Herivelto, em meados de 1952, depois de eleita Rainha do Rádio, veio o convite para minha mãe ir à Inglaterra gravar um disco e fazer algumas apresentações na Europa. Ficou deslumbrada. Na época, era muito raro a ida de artistas brasileiros para o exterior, ainda mais alçando voo tão alto. Dalva seguiu em excursão para Lisboa, Madri, Barcelona e Londres, onde — glória maior! — cantou para a rainha Elizabeth no famoso Hotel Savoy. Conheceu grandes artistas nessa temporada e foi ouvida, entre outros, por Errol Fly nn, Deborah Kerr e Katherine Hepburn. A telefonia no Brasil ainda engatinhava em termos de ligação internacional, e minha mãe falava com a gente de Londres por inter-médio de radioamador. Quando batia a saudade, procurava algum rádio e pedia para ligar. Nós éramos chamados às pressas por um radioamador que morava perto de casa. E assim conversávamos um pouco, tudo muito rápido. Em Londres, ela gravou um disco com o pianista inglês Roberto Inglês, famoso na época. Esse maestro e músico chamava a atenção pelo jeito diferente de tocar — pro-curava mais as notas graves e fazia solos com a mão esquerda. Com ele, Dalva gravou o disco que impulsionaria definitivamente sua carreira-solo. Nesse disco, já no formato LP, estavam “Fim de comédia”, “Que será” e “Kalu”, canções que se tornaram verdadeiros hinos na música brasileira. Nem preciso dizer o barulho que aconteceu quando apareceu nas lojas de discos. Foi uma loucura! A Odeon era só felicidade, na base do “tapete vermelho” quando ela aparecia na sede, na avenida Rio Branco, centro do Rio. Festas, coquetéis, visitas na casa dos diretores, vis-itas à nossa casa, homenagens. O arsenal completo do sucesso. Para poder avaliar a extensão do êxito de Dalva, é importante saber que, no auge da polêmica musical, ela chegou a vender 300 mil cópias do disco 78 rotações com a música “Kalu” em 1951, fazendo com que a Odeon rodasse suas máquinas em turnos ininterruptos de 24 horas para abastecer o mercado. Se levarmos em conta que, nessa época, a população do Brasil era infinitamente menor, vamos poder dizer que minha mãe vendeu, proporcionalmente, mais discos que a Xuxa, que em 1989 atingiu a marca de 3 milhões de cópias. Dalva era lembrada para tudo o que fosse considerado importante no meio. Um dia, recebeu um convite muito especial: recepcionar um famoso cantor norte-americano que viria ao Brasil gravar um disco. Como campeã de vendas da gravadora, sua presença era indispensável. O coração de minha mãe disparou quando soube o nome do artista: Nat King Cole! Quando ela chegou em casa contando, fui logo pedindo para me levar junto. Lembro-me como se fosse hoje da ansiedade que nos dominava no caminho para o estúdio, na avenida Rio Branco. E da emoção que tomou conta da gente quando a porta se abriu e Nat King Cole surgiu diante de minha mãe. Ao ser apresentada a ele, Nat beijou sua mão. Eu, do lado, também apertei a mão dele, enquanto um diretor da Odeon, Mr. Morris, traduzia tudo. Ele foi muito simpático e afável. Eu nunca tinha visto ninguém tão escuro assim . Nat King Cole era azul-marinho. O disco foi produzido por Aloysio de Oliveira, na época diretor artístico da Odeon. Nat havia estourado nas paradas norte-americanas e começava a gravar uma série dedicada ao mundo latino, cantando em espanhol. Aqui, ele cantou em português, ao lado do Trio Irakitan e, naturalmente, de Sylvinha Telles, então mulher de Aloysio. Dalva ficou encantada ao ser convidada pela Odeon para assistir às gravações e disse que iria todos os dias. Para minha sorte, começavam à tarde e pude ir com minha mãe. Eu não podia perder essa chance. Assistia a tudo embevecido. O que mais me chamava a atenção era a quantidade de cerveja que Nat King Cole tomava no estúdio. Ele dizia que sua voz só ficava do jeito que queria — morna, pastosa, sussurrante — depois de quase meia dúzia de cervejas. Era assim que conseguia aquele grave maravilhoso. Na época em que minha mãe estava começando a preparar um novo disco, os produtores Aloysio de Oliveira e Milton Miranda sugeriram um músico e arranjador totalmente desconhecido. Disseram que ser-ia bom se ela pudesse dar essa chance a alguém novo com talento. Ela concordou, e um dos primeiros arranjos para disco desse novato surgiu aí. Era Antônio Carlos Jobim . A música, “Saia do caminho”, de Custódio Mesquita. Tom esteve algumas vezes em Jacarepaguá. Sentava a um piano Brasil de armário e tirava sons maravilhosos. Já naquela época podia se sentir o toque mágico de alguém que viria a revolucionar o mundo com sua música. A gravadora Odeon do Brasil investia em tudo o que pudesse fazer com que Dalva vendesse mais discos. Assim, criou, junto com a Odeon Argentina, a grande parceria que iria estourar novamente o mercado. Os tangos. Na Argentina da época, o mercado era dominado pelos maestros e arranjadores do tango mais tradicional. Minha mãe foi apresentada a Francisco Canaro e ele se apaixonou pelo trabalho dela. Gravaram um disco em Buenos Aires — um estouro. Aníbal Troillo também se curvou diante da arte de Dalva e fizeram um disco juntos. Os tangos se tornaram a febre do Brasil e um após o outro iam desencadeando o maior sucesso: “Lencinho branco”, “Gira gira”, “Che papusa”, “Oi, cristal”. A notoriedade e até o sucesso surgiam aos poucos para Dalva em países como Argentina, Uruguai e Chile. Passou a excursionar com frequência por esses países, tornando-se muito querida do público. Por volta de 1952, começava a despontar no mundo latino um grande cantor. Seu nome era Lucho Gatica. Minha mãe, já em contato direto com a Argentina e a música latina, se identificou muito com seu canto, sua sensibilidade. Ao saber que também gravava na Odeon, fez uma campanha enorme dentro da empresa para que seus discos fossem lançados aqui no Brasil. Resultado: o sucesso de Lucho Gatica foi estrondoso. Mais tarde, ele veio ao Brasil para conhecer sua grande incentivadora e ficaram amigos. Por causa de Lucho e sua música, minha mãe se tornou uma apaixonada pelo México, que só conseguiu conhecer muitos anos depois, quando eu estava vivendo lá e ela foi passar alguns meses comigo. Acredito que tenha sido nesse momento que comecei a perceber uma certa in-quietação em minha mãe. O sucesso se fazia presente — a loucura dos fãs, o aplauso, o brilho excessivo das luzes, a gritaria enorme em torno dela, a ausência total de privacidade foram minando-lhe a cabeça e o coração. Aquela febre era algo incontrolável e enorme. Eu a via chegar em casa exausta, completamente enfraquecida pela perda de tanta energia. Para relaxar e entrar no giro da casa e da vida particular, recorria ao conhaque, que passou a ser seu companheiro mais fiel. Essa relação com o conhaque já vinha desde o tempo de meu pai, mas era mais moderada, pois meu pai tinha total controle sobre ela e a segurava muito. O talento de Dalva era amado e reconhecido. Mas sua solidão foi começando a crescer, na medida em que o sucesso entrava por um lado e a realidade ia saindo pelo outro. Fui muitas vezes seu confidente, e sei perfeitamente o que ia dentro dela como ninguém poderá saber. A fragilidade de minha mãe era o mais formidável contraste que poderia existir num ser humano, ungida como estava pelo sucesso. Sua força e determinação brigavam dentro dela por um amparo emocional que a fizesse chegar em casa e encontrar um mundo real e verdadeiro. E não um cenário de filme, como Tito, seu segundo marido, passou a construir a sua volta.



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