segunda-feira, 28 de março de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*





Diz a lenda que “A banda” ganhou por um voto na apuração do júri. Ou teria sido “Disparada”? E que Solano ficou furioso quando Paulinho Machado de Carvalho, o dono da casa, sabiamente decretou o empate oficial, dobrando o prêmio e fazendo explodir o auditório. Era o único resultado possível: dar o prêmio a qualquer das duas músicas enfureceria metade do público e provocaria um quebra-quebra. Afinal, não era uma guerra: era só um festival. “A banda” e “Disparada” se tornaram estrondosos sucessos nacionais, e Chico Buarque virou a estrela do momento. “Na boiada já fui boi, mas um dia me montei (...)
(...) agora sou cavaleiro, laço firme e braço forte, num reino que não tem rei.” “E cada qual no seu canto, em cada canto uma dor, depois da banda passar cantando coisas de amor.”

Uma moda de viola e uma marchinha, estilizadas, sofisticadas, populares, dividiam o gosto musical do país. Nos dias seguintes ao festival, discutia-se acaloradamente nas esquinas e nos botecos: “A banda” ou “Disparada”? Havia um jeito-banda de ser, como havia um jeito-disparada. Os mais líricos, mais românticos, as mulheres, os cariocas preferiam “A banda”, os mais políticos, mais agressivos, os homens, os paulistas gostavam mais de “Disparada”. “A banda” vendeu mais de 100 mil discos em uma semana, se transformou num dos maiores sucessos brasileiros de todos os tempos e foi gravada no mundo inteiro: Chico Buarque virou uma paixão nacional, uma unanimidade. Quase uma obsessão. O Brasil se apaixonou por suas músicas e letras, por seus olhos e sua timidez, por seu brilho seco e sua inteligência emocionada. Se encantou até com um certo desconforto de sua figura na tela da TV: o que para ele era pura tensão, inspirava tesão, tanto físico como intelectual em homens e mulheres de todas as idades. Jovem e bonito, culto e carismático, talentosíssimo, ele reunia
todas as qualidades certas, na pessoa certa, no momento certo: sua poesia ágil e moderna, com sólidas raízes no Brasil, unia o popular e o sofisticado em suas harmonias e melodias, avançava pelos caminhos abertos por Tom, Vinícius e João, ídolos máximos do novo ídolo brasileiro.

Era a resposta da “música brasileira” à “música jovem”. Seria ele, o cruzado de violão, a enfrentar as guitarras dos infiéis com seu talento e sua juventude. Só que ele não sabia. E nem queria. O “Seis em ponto” teve fim natural, rápido e indolor. Comecei a fazer letras para as belas e complexas melodias do amigo Dory Caymmi. De aparência muito séria, com bigode e óculos, cara fechada, Dory também era um falso rabugento, um baiano amoroso e desabusado que divertia a turma com seu espírito crítico e seu humor apimentado. Mas principalmente com o violão que tocava. Numa de nossas festinhas, Dory conheceu Ana Beatriz, prima de minha namorada Heleninha, que falava como uma metralhadora e era do tipo animada à beça. Discutiram a festa inteira. No dia seguinte e nos subseqüentes, Dory fez questão de reclamar de Ana Beatriz. Ela também se queixou dele para todas as amigas, incessantemente. Festa após festa, Dory e Ana Beatriz discutiam e brigavam e falavam mal um do outro. E tanto que começamos a desconfiar: pouco depois estavam apaixonados e casados. Como toda a turma, Dory e eu tínhamos inscrito nossas músicas no festival da Record e também no novo Festival Internacional da Canção.

Com a nossa boa e velha “Saveiros”, recusada no festival paulista, nos classificamos entre as 36 finalistas do festival carioca, que seriam apresentadas no Maracanãzinho em três eliminatórias e uma final. A novidade era que a música brasileira vencedora disputaria uma inalíssima com concorrentes do mundo inteiro em disputa do “Galo de ouro”. O prêmio era uma fortuna: dava para comprar um fusca e meio. Mas alguns não deram importância ao novo festival. Chico Buarque não inscreveu música mas, como a nova unanimidade nacional, não escapou: foi convocado para o júri. Roberto Menescal também. Edu Lobo inscreveu e classificou a melhor música que já tinha feito, “Canto triste”, com bela letra de Vinícius, que seria cantada por uma Elis Regina apaixonada e recém-saída das vaias e confrontos com o público no festival da Record. Nós já conhecíamos a música de Edu, era lindíssima, e ainda mais cantada por Elis, mordida pelas vaias paulistas. Dory escolheu sua irmã Nana, recém-chegada da Venezuela e recém-saída de um casamento, para cantar nossa música. Minha preferência inicial era Elis, mas gostei da idéia porque adorava a voz de Nana desde as primeiras vezes que, adolescente, a ouvi cantando nas festinhas de bossa nova no apartamento de meus pais. Os ensaios foram no auditório da TV Rio, no Posto Seis, em Copacabana. Grande orquestra, correria, nervosismo, concorrentes e imprensa teriam uma prévia das músicas. À medida que iam sendo ensaiadas as canções, aumentava a minha ansiedade, mas cresciam minhas esperanças: eram quase todas fraquíssimas, de um nível muito inferior às músicas que disputaram o festival da Record.

Elis estava séria, emburrada, pelos cantos, não queria falar com ninguém, me cumprimentou secamente e respondeu monossilabicamente às perguntas da imprensa. Dura e tensa, entrou no palco para ensaiar “Canto triste” com orquestra. O grandioso arranjo de cordas escrito por Luiz Eça, a beleza da linha melódica e das sequências harmônicas, a letra emocionada de Vinícius e a interpretação arrebatadora de Elis, mesmo num ensaio, me trouxeram a certeza de ser esta a nossa grande concorrente. Olhei para Dory e não falei nada. Nem precisava. Uma de minhas esperanças secretas era que, embora belíssima, a música era difícil às primeiras audições, era sofisticadíssima, dificílima de cantar. Mas principalmente, como seu título dizia, era triste. E essas coisas não combinavam muito com o clima dos festivais, principalmente depois do que tinha acontecido em São Paulo. E, afinal, Edu já tinha ganho com “Arrastão”. 

Minhas esperanças cresceram quando ouvi Nana cantando “Saveiros” na frente da orquestra regida pelo maestro Lindolpho Gaya, que tinha escrito um arranjo poderoso, reproduzindo com o naipe de metais da orquestra o balanço que Dory fazia nos baixos do violão e dando um ritmo ondulante à canção. A voz grave e marítima de Nana navegava por essas ondas sonoras, que iam e vinham e cresciam sempre, explodindo num final grandioso. Quando Nana terminou de cantar, todos que estavam ali, músicos, imprensa e concorrentes, explodiram em aplausos. Depois de algumas músicas, felizmente fracas, outra bonita, muito bonita, levemente ameaçadora: “Minha senhora”. Com letra lírica e amorosa de Torquato Neto, a música de Gilberto Gil era uma bossa nova ultracool, com sabor nordestino, que servia como uma luva para a voz afinadíssima de Maria da Graça, uma baianinha timidíssima, que morava no Solar da Fossa e cantava docemente, como um João Gilberto de seios. Tudo ali era bonito, a voz e as palavras, a melodia e o arranjo, tudo era suave, elegante, “gilbertiano”, delicado demais para as arenas em que estavam se transformando os festivais. E Gracinha, que já conhecíamos e admirávamos de festinhas e de um dueto com Bethânia em disco, com seu fio cristalino de voz e sua musicalidade intensa, por sugestão de seu empresário Guilherme Araújo, agora se chamava Gal Costa. Nos bares de Ipanema, diziam que a origem do nome era a sigla de Guilherme Araújo Limitada. Poucos no Rio sabiam que era o antigo apelido baiano da nova cantora.

“Minha senhora” era uma música talvez tão boa quanto a nossa, nossas cantoras eram ótimas, mas talvez “Canto triste”, música, letra e interpretação, fosse ainda melhor. As outras não davam medo. Na noite da grande final, Elis ficou isolada, concentrada, entrou pisando duro no palco, cantou com grande precisão e intensidade os versos apaixonados de Vinícius e a rica e triste melodia de Edu, impressionou os jurados mais sofisticados, mas a música passou praticamente despercebida pelo público. Elis entrou e saiu sem um sorriso.



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