Por Leonardo Davino*
Rainha do mar, Iemanjá é a grande mãe dos orixás. Seus mitemas se hibridizam com os de algumas santas católicas e ela recebe homenagens em diferentes datas durante o ano. No Brasil, sincretizada com Maria, mãe do Cristianismo, Iemanjá é uma das entidades não-católicas mais reverenciada, comentada, cantada.
Senhora de muitos nomes - "Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria" -, podemos dizer que, dentro da história de nossa canção popular, Iemanjá é a musa inspiradora dos cancionistas: cantada e evocada em muitas canções. Musa e sereia.
Importa registrar que nem todos os devotos e admiradores de Iemanjá, em especial os de descendêncianagô, reconhecem a mistura da imagem do orixá ligada às figuras das sereias, tidas como europeias e/ou ameríndias.
Enquanto as sereias atrairiam para a morte, Iemanjá protege, ilumina - eis o principal argumento. Deste modo, o rabo de peixe e os longos cabelos são elementos da sereia europeia - e da Iaraamazônica - e estariam distantes da deusa africana, nagô. Na verdade, é difícil encontrar a representação de Iemanjá-sereia nas casas.
No entanto, mesmo entendendo e respeitando a crença e a cultura, para fins estéticos e teóricos, aqui, Iemanjá é a grande sereia, por ajudar seu ouvinte a matar o homem velho (de antes do contato com o canto sedutor e cheio de ânima) e por deixar vir à tona o homem novo: consciente-de-si.
E aqui a frase de João Guimarães Rosa em Tutameia ganha importante sentido, pois revela este sujeito lúcido: "O que um dia eu vou saber não sabendo eu já sabia". Ou seja, na canção sirênica - e aqui Iemanjá pode envaidecer-se de sua voz - há a revelação, o espanto do óbvio ocultado o tempo todo dentro do sujeito, do indivíduo.
Resultado da mistura ameríndia, africana e europeia, a Iemanjá brasileira é doce e justa. Alodê, Odofiaba, Minha-mãe, Mãe-d'água, Odoyá é evocada (cantada) para cantar o ouvinte localizado entre as fontes de vida (das novidades) e de morte (do em desuso).
É deste lugar entranhado de maresia que surge o sujeito da canção "Entre o amor e o mar", de NáOzzetti e LuizTatit, consciente de que entre o amor e o mar há a canção, o canto, a voz de alguém cantando - mantendo memórias conservadas no sal marinho, nas águas doces. Eis Iemanjá: a portadora do canto-beijo-luz.
O sujeito da canção se instala neste lugar sonoro, engendrado em sua própria voz, a fim de criar, ficcionalizar a vida que deseja. "Eu que inventei esta ocasião / de contemplar o mar", diz. E se emociona e se entrega: "Quem vê meus olhos a marejar / sabe que vejo Iemanjá / que estou ouvindo a voz do mar / e que estou indo jajá", quando o canto acabar.
Há que se comentar duas versões diferentes e complementares desta canção: a de Jussara Silveira (Entre o amor e o mar, 2006) e a de Ná Ozzetti (Meu quintal, 2011). Ambas, duas sereias espantadas com as potências do próprio canto, com a epifania que o canto promove.
Na versão de Ná, o som de vassourinhas arranhando a bateria cria a sensação do marulho e figurativiza o som marítimo, enquanto que na versão de Jussara, o som da harpa remete o ouvinte às cordas de Orfeu e ao silêncio das sereias.
Como sabemos, Orfeu usava a lira que ganhou de Apolo, entre outras coisas, para acalmar brigas. Fez isso entre os argonautas. E, na viagem de volta da trupe de Jasão em busca do tosão de ouro, Orfeu salvou os tripulantes quando silenciou as sereias com o som da lira.
Ou seja, na versão de Jussara, a voz sirênica não se cala diante do som das cordas, pelo contrário: cria um diálogo cancional encantador, ancorado na base de piano. Para isso, Jussara precisa "dizer" nota por nota e sustentar as frases no vibrato: acelerando e desacelerando a paixão na voz.
Ná Ozzetti, em contrapartida, entoa um canto fluido, mais livre para diluir algumas marcações da harmonia. Ela escolhe por valorizar silêncios e dramatizar a cena descrita na letra da canção. E as terminações curtas das frases auxiliam isso.
Extasiado e passional, o sujeito criado no gesto vocal de Ná Ozzetti evidencia o discurso da canção, aproximando-se do ouvinte que lhe vê com olhos a marejar diante de Iemanjá, ouvindo a voz do mar - que Ná traduz na seleção dos instrumentos usados.
É no gesto de cantar, na produção da presença-de-si que o sujeito desta canção investe. Ele faz um elogio aos cancionistas, seus irmãos. O sujeito é todo entrega à sua função no mundo, no mar sonoro circularmente ficcionalizado e inventado - "como se fosse um lar" - a cada (re)canto. A sua lei, a sua questão de cantor é saber que "o que um dia eu vou saber não sabendo eu já sabia".
"Onda pára na pedra / Pedra não segura mar / Quem segura mar é lua / Num agrado pra Iemanjá", canta o rapperCriolo, acompanhado pelo bloco afro IlêAiyê. Neosereia, o sujeito de "Entre o amor e o mar" também é "almirante de nossa Senhora Iemanjá", como diz o samba-enredo da Portela (2012): "... e o povo na rua cantando. É feito uma reza, um ritual".
***
Entre o amor e o mar
(Ná Ozzetti / Luiz Tatit)
eu que inventei este lugar
entre o amor e o mar
como se fosse um lar
pra eu me instalar
eu que inventei esta ocasião
de contemplar o mar
até a espuma brilhar
e a visão embaralhar
antes da gota pingar
meu jeito de amar o mar
modulando o olhar ondulando
deixando o corpo molhar
quem vê meus olhos a marejar
sabe que vejo iemanjá
que estou ouvindo a voz do mar
e que estou indo jajá
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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