Por Ronaldo Jacobina
O radialista Perfilino Neto tem mais de 25 mil vinis e 18 mil CDs em seu acervo
Perfilino Neto começou a trabalhar em rádio há 54 anos. Hoje, aos 74, continua produzindo, no estúdio que montou em casa, dois programas que apresenta na Educadora FM: Memória do rádio, que está no ar de segunda a sexta-feira, às 22 horas, e Encontro com o chorinho, aos domingos, às nove da manhã. Ambos criados e apresentados por ele. É em casa também que guarda o importante acervo dos programas e entrevistas que realizou com personalidades, como o papa João Paulo II e grandes nomes da música popular brasileira. Parte deste material está em fitas cassete que Perfilino, diariamente, está digitalizando. Crítico voraz do desprezo que acredita terem os dirigentes de emissoras na Bahia com a memória do rádio, está cuidando para que o acervo que construiu não vá parar no lixo, como aconteceu com muito desse material em emissoras locais, inclusive públicas. Ele planeja transformá-lo numa fundação. "Já nomeei um herdeiro em testamento para que cuide dessa memória", diz. Autor dos livros Memória do rádio (editado por ele mesmo) e Curiosidades e pitorescos do rádio e da MPB (Editora Matarazzo), já está trabalhando numa terceira obra, que conta as suas memórias. Para ele, a música que se produz hoje na Bahia é barulho: "Estamos no buraco negro da criatividade". Dono de um acervo de 25 mil vinis, 18 mil CDs e milhares de fitas cassete, o jornalista, que trocou o curso de direito pelo rádio, diz que essa foi a melhor escolha que fez na vida. No ar, Perfilino Neto e as memórias do rádio baiano.
O senhor diz que os diretores das emissoras de rádio são predadores. Por quê?
É uma realidade. A maioria dos dirigentes que chega ao rádio é com o propósito de inovar, sem ter qualquer embasamento, qualquer conhecimento do veículo. O rádio é predestinado a ser dirigido por quem nada tem a ver com ele. Recentemente, fiz um programa de memória do rádio e trouxe o Paulo Tapajós (pai de Paulinho Tapajós), que foi um homem que trabalhou 55 anos em rádio sob a direção de um general. E ele me perguntou: "Por que uma rádio pode ser dirigida por um general e um radialista não pode comandar uma unidade militar?".
E por que são predadores?
Porque essas pessoas, que não entendem nada, vêm e destroem a memória, destroem a história, os acervos, os documentos sonoros. Um exemplo foi na Rádio Educadora, onde uma antiga dirigente, uma tresloucada, que era advogada, jogou fora fitas de rolo com entrevistas históricas, feitas pelo professor Cid Teixeira, no programa Bahia: onde começou o Brasil, com grandes nomes, como Mãe Menininha do Gantois, Glauber Rocha, Jorge Amado, Cosme de Farias, etc. Foram 16 mil fitas jogadas no lixo.
Já o senhor, ao contrário, tem aqui na sua casa um rico acervo. O que pensa fazer para que tudo isso seja preservado?
Temeroso de que isso possa acontecer, já fiz meu testamento, com firma reconhecida em cartório, para que os filhos não destruam e procurem encontrar uma alternativa, como a criação de uma fundação. Eu sinto que, no momento em que eu sair de cena, esses documentos sonoros poderão sofrer o mesmo destino que tiveram os da Rádio Educadora. Para evitar isso, fiz o testamento onde nomeio o herdeiro do acervo que manterá isso aqui.
O senhor diz que é de uma época que para ser radialista era preciso ter, dentre outras coisas, muita cultura. Acha que a qualidade dos profissionais caiu muito?
Muito. Até porque, quando entrei no rádio, tive que ter noções de inglês, francês, italiano e até esperanto. E para ter acesso ao microfone, você tinha que fazer o teste do quebra-língua, que era aquela coisa de colocar um lápis na boca e falar. Hoje qualquer um faz rádio, principalmente por causa da praga das faculdades de jornalismo, que agora tem uma em cada esquina.
Então o problema está na formação?
É a formação. Como também eu acho que você não pode hoje encarar o rádio somente para usar seu título. Rádio é dedicação, eu vejo nessa profissão um sacerdócio. Eu vivo rádio o tempo inteiro.
Nessa mudança de perfil, o rádio perdeu sua função social?
Não. Acho que perdeu qualidade. De informação, de programação e de conteúdo. Mas eu continuo acreditando no rádio, enquanto houver imaginação, o rádio sobreviverá. Porque as pessoas ouvem você e ficam imaginando como você é. Isso aguça a curiosidade do ouvinte.
O rádio tem tirado bom proveito das novas tecnologias?
Sim, mas acho que poderia ter tirado um proveito maior, fazendo um tipo de rádio melhor. Por exemplo, por que o rádio hoje não faz novela?
E o senhor acha que teríamos público hoje para as radionovelas?
E muito. Até porque o rádio é um veículo de imaginação, que você pode ouvir em qualquer lugar. Acho que tem que ser novela boa, usando todos os recursos da tecnologia.
Então a internet não ameaça o rádio como tem acontecido com outros veículos?
Muito pelo contrário. Costumo dizer que o rádio é um velhinho que está na sua plenitude, no seu pleno vigor físico, porque ele tem na internet o seu viagra. A internet é o viagra do rádio. O rádio chega aos confins do mundo, ele está no celular, no computador, no carro, no campo, em todos os lugares. Durmo e acordo com rádio. Ele está na vida de todo mundo, dos políticos... Qual o político que abre mão do rádio? Nenhum.
Aliás, o rádio, assim como os demais veículos de comunicação, sempre foram dominados por políticos.
E depois tem as igrejas, que também não abrem mão do rádio. Para eles, assim como para os políticos também, a vantagem do rádio é o seu alcance. Os católicos e os evangélicos têm suas emissoras. O rádio caiu nas mãos de Deus.
No seu segundo livro, Curiosidades e pitorescos do rádio e da MPB, lançado no mês passado, o senhor diz que os contatos que fez com artistas foi uma das melhores coisas que lhe aconteceram na vida. O que o senhor aprendeu com eles?
Se tivesse seguido uma outra carreira, não teria encontrado as possibilidades que encontrei de abrigar tanto conhecimento. Eu não entrevistei só o cantor, o compositor, entrevistei também o político, personalidades como o papa João Paulo II...
Os artistas de hoje são mais acessíveis do que os de antigamente? O senhor diria que ainda dependem do rádio para divulgar seus trabalhos ou não?
Dependem sim, só que os artistas atuais, especialmente os baianos, com algumas exceções, não pisam no chão. Digo isso porque tenho quatro horas de entrevista com Luiz Gonzaga. Fiz a primeira e, toda vez que ele vinha aqui, me procurava, fizemos uma amizade. Assim como ocorreu com outros artistas. Tem artistas baianos que eu tento fazer entrevista e não consigo. Se acham acima do bem e do mal. Eu entrevistei Elizeth Cardoso, Ângela Maria...
É por isso que, no seu livro, o senhor foca mais nos artistas do sul do que nos artistas baianos?
É porque, além de encontrar mais facilidade no acesso ao artista de lá, você há de convir que hoje, nós aqui na Bahia, no caso da televisão, por exemplo, temos o foco em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tudo que se faz lá, se imita aqui. Até a questão da violência. Se tem um determinado tipo de delito por lá, logo acontece aqui. Então, a Bahia e todo o Norte e Nordeste sempre tomaram como mira esses dois estados. Imagine o que não era isso 70 anos atrás? Dirigi a área de jornalismo da Rádio Cultura e lia muito os jornais do sul, que tinham colunas de música. Foi nelas que pesquisei para o livro.
O senhor está há muitos anos em rádio pública. Acha que essas rádios cumprem a função de educadoras?
Hoje eu fico sem entender o que é jornalismo de utilidade pública, porque todo jornalismo é de utilidade pública, não existe jornalismo privado. Agora, acho que o rádio público poderia melhorar o nível de informação, de programação, ser mais cultural, educativo, e isso não é o que tem acontecido.
Como o senhor vê a música que é produzida na Bahia hoje?
A história da música brasileira começa e termina na Bahia. Digo que começa aqui porque vultos como Manuel Pedro dos Santos, Humberto Porto, José de Barros e muitos nomes de peso da MPB começaram na Bahia. Quando eu digo que termina aqui é porque hoje estamos no buraco negro da criatividade, porque você não pode confundir barulho com música. O que estamos produzindo hoje é um tipo de música que envergonha essa criatividade do baiano. Uma terra que deu artistas como Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gordurinha, Moraes Moreira, Gilberto Gil, hoje tem que conviver com "abaixa a bundinha". Poxa, não dá para dizer que isso é música, isso é barulho. E o pior é que as pessoas hoje não têm mais educação, elas obrigam você a escutar o que elas estão ouvindo, porque colocam o som nas alturas nos carros e você é obrigado a escutar.
No seu livro, o senhor narra episódios de brigas com ex-dirigentes da Rádio Educadora. Por que resolveu lavar a roupa suja em público depois de tantos anos?
Isso é natural, fazemos amigos e inimigos. Resolvi contar essas coisas porque seria antiético fazer no microfone. Foram pessoas que fizeram atrocidades no comando da rádio e, para mim, não interessa se o governador é de Chico ou de Francisco. O meu compromisso é com o rádio.
Quem o senhor considera hoje um grande radialista na Bahia?
Mário Kertész. Ele faz um trabalho diferente dos outros. Saiu do lugar-comum, porque o tipo rádio que temos hoje é de blá-blá-blá, de gritos, até na propaganda.
Qual a rádio que o senhor escuta?
As do exterior. Eu tenho um rádio alemão, de 1939, e através dele escuto a BBC de Londres, a Nacional de Lisboa, a Rádio de Pequim e várias outras emissoras, que, inclusive, têm programação em português.
Se o senhor prefere as do exterior é porque as daqui estão mal?
Pois é, hoje não temos uma rádio como as que fazíamos antigamente.
Mas isso não é saudosismo?
Não, eu trabalho com pen drive, com tecnologias que me permitem digitalizar o acervo, então não sou saudosista. Sou atualíssimo, acompanho o progresso.
Então é porque está ruim mesmo?
Sim. O rádio hoje não leva cultura, é só sensacionalismo. Meu rádio não é de mandar beijinho para dona não sei quem que tem barraca não sei onde. O meu rádio é de cultura.
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