segunda-feira, 21 de março de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*





“Aldeia global” era um conceito muito recente e muito teórico de Marshall MacLuhan, formulado no livro The Media is the Massage, que não tinha a ver com massagem mas era um trocadilho com Mass Age, a idade da cultura de massa, a era das comunicações, o império da mídia, onde o veículo era a mensagem. As teses eram polêmicas e incendiaram discussões na ESDI, onde foram promovidas várias palestras sobre o palpitante tema. Chegaria mesmo o dia em que o mundo seria uma aldeia global? Em São Paulo, era guerra total. E a jovem guarda estava ganhando.

O festival da Record seria uma grande oportunidade para a “música brasileira” reagir e mostrar suas novidades e qualidades. O pessoal da jovem guarda nem ousou inscrever suas músicas. No auditório, desde as primeiras eliminatórias, se organizaram as torcidas, como as torcidas organizadas de futebol. Com faixas, bandeiras, gritos e palavras de ordem. Torciam mais por seus ídolos do que pelas músicas que eles cantavam: os torcedores de Elis odiavam Roberto e os de Roberto vaiavam Elis, os fãs de Nara vaiavam Jair Rodrigues, os de Vandré vaiavam todos os outros. Parecia que as torcidas tinham mais prazer em vaiar os adversários do que aplaudir seus ídolos. Dois anos de repressão política, prisões, cassações, censura levavam para os auditórios de televisão uma ânsia imensa de participar, de criticar e de escolher.

Nas eliminatórias, duas músicas saíram consagradas. A primeira era uma moda de viola estilizada, com uma letra de ritmo e sonoridade vibrantes, metaforizando as lutas de um boiadeiro contra o dono da boiada; a outra, uma marchinha lírica, na melhor tradição brasileira, feita de delicadeza e desencanto, sobre a magia de uma música que passa pela rua e sua alegria fugaz.

“Disparada”, de Theo de Barros e Geraldo Vandré, e “A banda”, de Chico Buarque, chegaram à final como Vasco e Flamengo, como Grêmio e Internacional, como Atlético e Cruzeiro. Chico tinha 22 anos e músicas como “Pedro pedreiro” (penseiro, esperando trem que já vem, que já vem, que já vem), “A Rita” (que levou seus planos, seus pobres enganos, os seus vinte anos e seu coração), “Morena dos olhos d’agua” e outras de uma primeira safra excepcional, que revelavam um extraordinário talento de compositor. Suas músicas tocavam no rádio, nas festas, nas ruas e ele aparecia com freqüência nos musicais da Record e nos shows nas universidades. As meninas iam à loucura. Nara foi a primeira a gravar várias músicas de Chico, tornouse sua intérprete e amiga, sua parceira de sucessos. Vandré era alguns anos mais velho, paraibano, ligado a Carlos Lyra (com quem fez “Quem quiser encontrar o amor”) e ao Centro Popular de Cultura do Rio. O grosso da torcida de Vandré era político, engajado, de participação; mas boa parte era de meninas que se encantavam com o seu charme agreste
e com os seus olhos, verdes como os de Chico. 
 
Pela primeira vez o festival foi transmitido direto de São Paulo para o Rio, onde também “A banda” e “Disparada” dividiam as opiniões e as paixões. E geravam até apostas em dinheiro. Na noite da final, o auditório explodia, como num estádio de futebol. Quando “A banda” e “Disparada” foram apresentadas e fizeram o público delirar com igual intensidade, todo mundo sabia que a vencedora seria uma das duas. As outras, como um belíssimo samba do
novo compositor carioca Paulinho da Viola com letra do baiano José Carlos Capinam, “Canção de Maria”, teriam que se contentar com os prêmios menores.

Irritada com as vaias e provocações das torcidas adversárias, Elis cantou mal nas eliminatórias, se descontrolou, ficou furiosa, desafiou o público, e não se classificou para a final com a música de Edu Lobo, “Jogo de roda”. A outra música que defendia, o samba “Ensaio geral”, de Gilberto Gil, um novo baiano talentoso, de quem ela já tinha gravado “Lunik 9”, terminou em quinto lugar. Roberto Carlos, de smoking, enfrentou as vaias com coragem e segurança e cantou maravilhosamente bem uma canção dificílima de Beto Rushel, construída com harmonias complexas e dissonantes, como era do gosto mais sofisticado. Roberto interpretou com emoção e precisão e valorizou uma letra apaixonada de Renato Teixeira, cheia de dubiedades amorosas: um rapaz declarando seu amor para sua bela madrasta.

Foi premiado pelo júri como “melhor intérprete”. Theo e Vandré montaram um poderoso trio para acompanhar o popularíssimo Jair Rodrigues em “Disparada”, com Airto Moreira na percussão, Heraldo do Monte na viola caipira, além do próprio Theo, uma fera no violão: o Trio Novo. Jair, parceiro de Elis em “O fino da bossa”, era um negro sorridente, sambista alegre e brincalhão, que  divertia o público plantando bananeira no palco e batendo palmas como uma foca. Jair cantava bem, tinha ótima voz, era bonito e simpático. Mas, até então, não era considerado “sério”. “Disparada” era sua oportunidade de se afirmar como um intérprete de primeira linha. De blazer vermelho e gravata, olhando duro nos olhos do público, Jair levou a sério: foi forte e empolgante em sua interpretação e levantou o auditório.

Chico e Nara eram muito tímidos, cantavam tensos e parados, pareciam pouco adequados para incendiar a jovem platéia. Mas provocaram uma reação explosiva quando apresentaram “A banda” pela primeira vez: era irresistível a combinação de música e letra, ritmo e melodia, simplicidade e sofisticação, passado e presente. Cheios de graça e juventude, acompanhados por uma bandinha e pelo auditório em coro, Chico e Nara saíram do palco consagrados: seria impossível derrotar tão poderosa paixão popular. Assim também pensavam os autores, intérpretes e fãs de “Disparada”. Paulinho Machado de Carvalho, dono da televisão, e Solano Ribeiro, diretor do festival, estavam felizes. Mas começaram a ficar preocupados. O júri também. Os ânimos estavam exaltados na platéia, nos bastidores e nos camarins. A temperatura esquentava enquanto o júri deliberava.



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