Por Leonardo Davino*
Na canção "Mulher de Música", de Tom Zé e Arnaldo Antunes, o sujeito diz: "Mulher de música / melhor ficar na música / porque mulher de música / é coisa de utilidade pública. / E além disso, sinhá de iáiá, / musa é musa e mulher de carne e osso / vem a ser hipotenusa / que me usa, / parafusa, / me recusa / e ainda me acusa".
A distinção entre a "mulher de música" e a "mulher de carne e osso" quer persuadir esta a fazer os dengos que iôiô deseja. Ele sabe que, "hipotenusa", lado oposto de seu ângulo reto (e teso), a mulher é bússola e desorientação: parafusa, recusa e acusa. Assonância e aliteração que reiteram a potência da mulher: da sinhá diante do sujeito (in)voluntariamente submisso.
A expressão "sinhá de iaiá" diz com quem o sujeito da canção está falando: ela é ela, "mulher de carne e osso", "mulher, martírio meu", como canta o sujeito de outra canção. "Você me abraça, me beija, me xinga / Me bota mandinga / Depois faz a briga / Só pra ver quebrar" ("Mulher, sempre mulher", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes). Menos idealizada (musa) e mais próxima (visceral).
Diferente da "mulher de música", da musa habitante do lugar da ficção, ele quer falar de uma mulher à sua frente, acessível ao toque, real. No entanto, a comparação, no fundo, esconde uma justaposição de signos. Emancipada em muitos países, a mulher - musa ou real - colocou em xeque a utilidade do homem. Ou seja, a consciência de também poder fazer, e não simplesmente só ser, fez a mulher trincar o signo homem.
Distante da deusa, da mãe de deus, a "mulher de carne e osso" por, supostamente, ser só do sujeito, é muito mais interessante e desejável. Até porque, de tanto ser acusada, ela assume o "gozar com a própria mão". Tamanha independência assusta e faz o sujeito desejar, ratificando a dicotomia fêmea-macho.
Mas afinal, para que servem os homens em um mundo cada vez mais assumidamente matriarcal? A pergunta que tem atravessado teorias feministas e femininas, desde a mítica greve de sexo das mulheres de Atenas, é resolvida esteticamente por Arnaldo Antunes quando ele se coloca na capa do disco Paradeiro (2001) representado em um boneco de pano pendurado em um varal. É como se os papéis se invertessem. Ou, pior, em seu grito de liberdade, a mulher denegasse a existência do homem. Aliás, no clipe da canção, a atriz, simbolicamente, "fecha" um livro de Balzac.
Na canção "Essa mulher", o sujeito criado por Arnaldo Antunes sintetiza a imagem da capa. "Ela tem um travesseiro mais macio / do que o seu braço / e um acolchoado muito mais / quente que o seu abraço", diz o sujeito cancional. Ou seja, é do lugar do incômodo de não mais saber qual é seu papel na História que o sujeito de "Essa mulher" canta.
Essa mulher não é (não quer ser) musa, nem sereia. Independente para viver seu desejo, ela rejeita o homem até como objeto disso: de desejo. Ela cansou de procurar: "Todos são iguais / Eu sou apenas aquela que lava os seus pratos / Homens, eu sempre pensei ou são reis ou são ratos / Mas são todos reis e ratos", canta subcancionalmente a mulher. Ela se basta: sempre se bastou.
Com o discurso em segunda pessoa, o sujeito não só tenta se desvencilhar deste jogo terrível para ele, como deixa tudo à cargo do outro, a quem tenta persuadir a não querer mais (essa) mulher - "e você ainda quer / essa mulher" - abstendo-se das consequências. Mas sentimos que ele está falando de um coletivo - quando a "sua" é igual à "nossa".
Diferente do sujeito de "Mulher de música", que consegue distinguir a mulher utilidade pública, já que, quando cantada, a mulher da canção é de todo e qualquer ouvinte, da mulher de carne e osso, o sujeito de "Essa mulher" parece ter perdido de vez qualquer lugar na vida da mulher de verdade: "que não sente a sua falta / e quando você chega em casa / ela não sente a sua presença", canta.
Com moldura melódica pop, feito para brincar com o dissabor daquilo que é experimentado, o sujeito da canção "Essa mulher" sugere que o elogio às semelhanças entre homem e mulher, muito aquém de promover uma posição horizontal para todos, muitas vezes esconde o (falso) apagamento das diferenças: das potências de cada parte envolvida. Dando voz ao homem ressentido com as posições psico-sociais perdidas, o sujeito parece dizer que a luta pela igualdade destruiu semelhanças e conciliações possíveis. Ou não.
***
Essa mulher
(Arnaldo Antunes)
ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher
ela goza com o sabonete
não precisa de você
ela goza com a mão
não precisa do seu pau
ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher
que não sente a sua falta
e quando você chega em casa
ela não sente a sua presença
ela tem um travesseiro mais macio
do que o seu braço
e um acolchoado muito mais
quente que o seu abraço
ela quer viver sozinha
sem a sua companhia
e você ainda quer
essa mulher
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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