terça-feira, 22 de março de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




O aboio é um chamamento que guia, ou quer guiar. Prática usada especialmente na cultura do sertão nordestino, dos vaqueiros que tangem (tocam) o gado, o aboio tem origens diversas. Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro) e Mário de Andrade (As melodias do boi e outras peças) concordam na analogia do aboio com a jubilação melismática do cantochão, por exemplo.

O fato é que o aboio compõe a mítica sonora sertaneja. Salvo engano, a apropriação mais conhecida do aboio pela canção popular está guardada em "Admirável gado novo", de Zé Ramalho. O cancionista une a vocalização sem palavras com a frase-desabafo: "Êh, oô, vida de gado" - ditas com os alongamentos vocálicos e com as inflexões da voz do cantor. Aqui, a voz do cantor toca "vocês que fazem parte dessa massa / Que passa nos projetos do futuro".

O significado do aboio é oferecido não pelo que é dito, mas pelo gesto da voz. Há aqui um logos sonoro rico de desejos e sensações captados pelo ouvinte cansado de "dar muito mais do que receber". O aboio estimula a coragem para seguir em frente: seguir o rumo (certo).

O aboio (sem palavras) condensa e apresenta uma vocalidade pura, remete o ouvinte a um tempo/espaço original, primário, em que a phoné encapsula o conhecimento: o todo-humano. Há uma poética da vocalidade: a experiência sonora suplanta o sentido das palavras. "Rio que não é rio: imagens", como canta o sujeito de "O nome da cidade", de Caetano Veloso.

Nesta canção não há uma cidade Rio definida, pronta, mas uma movência de imagens "Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos") que faz o sujeito da canção chegar ao nome da cidade, nunca à cidade em si. O aboio "Ôôôôôôô ê boi! ê bus!" mescla rural e urbano, antigo e presente, arcaico e civilizado: plasma uma cidade perspectivizada - da expectativa e da presença.

A aliteração "boi bus" rompe a fronteira entre a palavra e o som, anima a historiografia da cidade cantada: do povo (e seus projetos de futuro) que ergueu a megalópole: vida de gado na mobilidade via ônibus.

Em geral, melancólico, apontando o sertão que está em toda parte, o sofrimento do vaqueiro que vê o padecimento do gado e compara com o próprio sofrer, na lida diária, o aboio lança uma melodia "terna e apaixonada" (M. de Andrade) no ar, jubilando o aboiador e o aboiado.

Em "O nome da cidade" o aboio funciona no desejo que o sujeito tem em confrontar o sofrimento de ver o padecimento da cidade, do Rio cantado ("Letras demais, tudo mentindo") e do Rio que ele experimenta ("Ruas voando sobre ruas"). Daí as perguntas: "Será que tudo me interessa? / Cada coisa é demais e tantas / Quais eram minhas esperanças? / O que é ameaça e o que é promessa?".

Cantadas por Adriana Calcanhotto (Senhas, 1992) que, assim como Caetano Veloso, não é carioca, mas assumiu a cidade, essas perguntas guardam o segredo do estrangeiro posicionado entre o deslumbre, a confirmação (daquilo que se diz - canta - sobre a cidade) e a realidade.

Os versos "Cheguei ao nome da cidade / Não à cidade mesma, espessa" são exemplos daquilo que Severo Sarduy ("O barroco e o neobarroco") destaca como um artifício de substituição do objeto poético. Ou seja, sem poder chegar à cidade, o sujeito atravessado pela ideia-da-cidade prolifera signos que "dizem" aquilo que ela é.

"Quem vê, do Vidigal, o mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal?". Aboiar o mato ("Sertão, sertão!") e aboiar o litoral ("ê mar!") equilibra o sujeito, dá júbilo (nem alegre, nem triste): localiza-o na cidade - "A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio": toca em esperanças e anuncia cada coisa.

O diálogo intercancional de "O nome da cidade" é com "Corcovado" - "O Redentor, que horror! Que lindo!". E mais tarde, em "Meu rio" (2000), Caetano transcria o verso "Meninos maus, mulheres nuas", em "Rapazes maus, moças nuas".

"Letras demais, todas mentindo". O Rio - a cidade espessa - é inalcançável, está fragmentado, proliferado nos vários versos que cantam - ameaças e promessas - a cidade sem dizer aquilo que ela verdadeiramente é.

Caetano faz uso semelhante do aboio em pelo menos mais uma canção: "Épico" (1972) - "ê, saudade (...) ê, João". Além de dar o nome de "Aboio" a uma canção que fala de uma "urbe imensa" que precisa "tocar/cantar" seus meninos, no disco Tropicália 2 (1993).

O aboio só tem sentido na voz, assim como o Rio parece ser mais e melhor nas "letras demais": mantenedoras da mitologia da cidade. Aboiar purifica, sagra o aboiador. O aboio é a ponte de integração entre aboiador e aboiado. A voz se mistura com o espaço espesso.

"A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio" promove o rito de inserção do sujeito na cidade. E vice-versa: quem aboia torna-se (sem dualidades) a coisa aboiada. Em "O nome da cidade", o aboio recria, dentro do emissor, a cidade estranha e linda.


***

O nome da cidade
(Caetano Veloso)

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

Onde será que isso começa
A correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa

Cheguei ao nome da cidade
Não à cidade mesma, espessa
Rio que não é rio: imagens
Essa cidade me atravessa

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

Será que tudo me interessa?
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças?
O que é ameaça e o que é promessa?

Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor, que horror! Que lindo!
Meninos maus, mulheres nuas

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!

A gente chega sem chegar
Não há meada, é só o fio
Será que pra meu próprio rio
Este rio é mais mar que o mar?

Ôôôôôôô ê boi! ê bus!
Sertão, sertão! ê mar!




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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