Por Leonardo Davino*
terça-feira, 8 de março de 2016
LENDO A CANÇÃO
Empunhando pente (domando os cabelos desgrenhados, animalizados, geniais) e espelho (vaidades, ilusão, ficção), as sereias se forjam sensuais. Com os signos do mito já deslocados por certa ideologia urdida na Idade Média que tem a mulher como a portadora do dom de iludir, as iaras se distanciam das tenebrosas sereias homéricas. Ou melhor, agregam ao canto irresistível, a beleza física sedutora.
Esse percurso traz consequências: a mais negativa é a desvocalização do logos - um processo amparado pela "surdez" da filosofia, de Platão a Derrida, que teme os efeitos da mistura da palavra com o som, com a voz inimitável.
A sereia passa a ser sinônimo de mulher muito bonita, encantadora e fatal. Mas não perde sua ligação com mitos fundadores de criação e de proteção. É o caso de Iemanjá, Iara, Dona Janaína.
Mas a sereia é, antes de tudo, a voz que relata aquilo que ouviu da musa. Para o cancionista (neosereia), a canção é a musa. Assim como a poesia é a musa do poeta. Musa "libérrima e audaz" a inspirar o canto, o poema. O cancionista é a sereia da sereia e, de viés, do ouvinte.
No disco Caravana sereia bloom (2012), a cantora Céu reposiciona o mito: desenha no imaginário do ouvinte aquilo que tenho chamado de neosereia. Primeiro porque Céu é o nome sirênico (artístico, performático) de Maria Poças, um nome a serviço do cantar, uma persona cancional. Maria Poças é e não é Céu - preserva e revela intimidades de uma e da outra. Ela morre para viver com Iemanjá - arquétipo de anima.
Segundo porque a cantora está atenta à itinerância das canções. Sabe que em tempos de mobilidade pode ter seu canto acessado ao prazer do desejo do ouvinte e quer ir indo: "O vento é um menino bulindo com a gente", canta.
E terceiro porque na canção "Sereia", de Céu, o sujeito diz: "Sereia do mar / Me conta o teu segredo / Do teu canto tão bonito / Prometo não espalhar". Ora, é na sereia do mar - na poesia, na canção - que Céu busca os elementos de seu canto. Ao evocar a musa-sereia, Céu é aedo de acontecimentos, é neosereia.
É interessante notar que "Sereia" entra no disco como uma vinheta atravessando as canções e se revelando como o núcleo luminoso da proposta de Caravana sereia bloom. Tocado pela sereia do mar, por dona Janaína, pela poesia, pela canção, o sujeito canta: "Sereia do mar / Também sou fruto d'água / Vim do rio doce aprender / O tal do canto que traz / Pra bem perto nosso bem-querer".
A sereia conta aquilo que a musa viu e lhe contou. Ela traduz a história para os ouvidos humanos. A musa guarda o segredo (do acontecimento) sussurrado apenas ao ouvido privilegiado do poeta (do cancionista, da sereia), que compõe um canto sirênico audível ao ouvinte comum. E assim ouvimos o inaudível.
Portanto, nunca é demais distinguir Sereias e Musas. A fim de curiosidade, vale lembrar que, como está registrado em uma das versões do mito (ver Las Sirenas, de MeriLao), ao se atreverem a competir com as Musas, as Sereias tiveram suas penas arrancadas e usadas como coroas.
Filha de Mnemósine, a musa conserva o acontecimento que presenciou e que precisa ser traduzido em canção pelo poeta, cancionista, sereia. A sereia atua tanto na nossa incompetência humana no uso das palavras, quanto na nossa necessidade por canção: palavra cantada na voz de alguém.
A sereia nos fornece verbo, melodia e voz. E, no caso da neosereia, sendo também humana, com seu ouvinte, exposta a semelhantes afetos (agrados e desagrados), é nossa cúmplice e nosso álibi. Iara irmã do indivíduo-ouvinte na existência.
A canção "Sereia" tem letra e programação da própria Céu. Os recursos técnicos auxiliam a cancionista no ato de entoar o canto sirênico. Ecos e reverberações melódicas e vocais criam o clima sedutor, embriagante e propício ao despertar do impulso lúdico.
Tais elucubrações se adensam quando obtemos a informação de que "Sereia" é dedicada a Rosa Nena, filha de Maria Poças. Rosa é a musa (a canção) que canta Céu (a cancionista) que, por sua vez, canta a musa. E são as dobras desse canto que faz Céu ser ainda menina, aproximando-se do desejo do ouvinte.
"Pro ser humano, viver é pouco". Neosereia, Céu se enfeita com batom vermelho, porém, diferente da grande-sereia, não precisa "do espelho do retrovisor para não [se] borrar". Errante, não-divina, ela canta adornada num vestido de paetês-escamas de muitos azuis suas memórias conservadas "no sal do [meu] mar", trazendo para perto o [seu, o nosso] bem-querer.
***
Sereia
(Céu)
Sereia do mar
Me conta o teu segredo
Do teu canto tão bonito
Prometo não espalhar
Sereia do mar
Também sou fruto d'água
Vim do rio doce aprender
O tal do canto que traz
Pra bem perto nosso bem-querer
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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