segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*
Lennie não tinha grande voz, mas como todo artista americano aspirante à Broadway, cantava dançava-representava com competência. E tinha ouvido musisal, sentido rítmico, musicalidade e sentido de espetáculo. Sabia reconhecer em poucas notas um grande talento: ficou louco quando ouviu Elis. Tomou-a sob sua proteção, encantou-se com a sua agressividade e determinação, tão parecidas com ele, ensinou à garota ingênua e provinciana o que tinha aprendido sobre show business em Nova York, ante(ou)viu o brilho fulgurante da estrela. Com Lennie, Elis aprendeu outras divisões rítmicas, outros fraseados, outras maneiras de cantar, muito diferentes de Ângela Maria. Aprendeu a ensaiar exaustivamente e buscar sempre mais, melhor, mais uma vez.
As festas continuavam no Rio. Depois de uma noite de uísque e violão com Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri se empolgou e convidou-o a escrever um musical em parceria, para ser encenado pelo Teatro de Arena de São Paulo, que tinha grande prestígio e fazia montagens de temas brasileiros com leitura política. Era uma espécie de CPC profissional, onde brilhavam os atores Paulo José, Dina Sfat e Lima Duarte. Edu, que tinha só três ou quatro músicas, em parceria com Vinícius, achou um pouco exagerada mas muito bem-vinda a empolgação de Guarnieri e acreditou: uma semana depois pegou um ônibus e estava em São Paulo, de violão na mão, tocando a campainha da casa de Guarnieri: tinha vindo para fazer com ele o tal “musical brasileiro” que tinham sonhado naquela já remota noite carioca. Mas Guarnieri não tinha nenhum tema ou idéia ou talvez não se lembrasse bem da proposta que tinha feito a Edu. Mas um musical sobre o que mesmo?
Uma das músicas que Edu tinha mostrado a ele no Rio era a tal “Zambi”, que Vinícius imaginara na selva, entre pios de pássaros e onomatopeias noturnas, um líder organizando seus guerreiros para a luta pela liberdade. Era perfeito para o Arena, que já tinha encenado “Castro Alves pede passagem” com grande sucesso e agora contaria e cantaria a história de Zumbi dos Palmares, o herói popular, o rebelde, o
mártir da liberdade, uma metáfora de resistência ao golpe militar, oportunidade para driblar a censura e dar uma visão brasileira da luta contra a opressão. Edu e Guarnieri saíram imediatamente para comprar os livros e iniciar as pesquisas, começaram a trabalhar naquele mesmo dia, viraram a noite e foram dormir às 11 da manhã. Mergulharam no trabalho e produziram grande volume de texto e músicas em pouquíssimo tempo: estavam entusiasmados, inspirados, num outro mundo e num outro tempo, lutando pela liberdade na Serra da Barriga. No boteco Redondo, na esquina do Teatro de Arena, numa noite fria de abril, bebendo com Guarnieri, Edu acompanhava pelo telefone a final do festival no Rio. Não havia transmissão direta pela TV e do outro lado da linha Fernando Lobo ia narrando os eletrizantes acontecimentos. Quando foi anunciado que o segundo lugar era “Valsa do amor que não vem”, de Vinícius e Baden, Edu achou que estava fora, por causa de Vinícius: não iriam dar também o primeiro lugar para o poeta, seu parceiro em “Arrastão”.
Passou o telefone para Guarnieri e voltou cabisbaixo para o teatro.No meio do caminho, foi chamado de volta aos gritos: “Você ganhou! Você ganhou!” Com “Arrastão”, uma melodia bem construída e de forte apelo popular, e com a letra de Vinícius engendrando uma fantástica história em que Iemanjá em pessoa vem na rede dos pescadores, Elis passou como um trator sobre as finalistas do I Festival da Música Brasileira no palco da TV Excelsior, em Ipanema, ganhando também o prêmio de “melhor intérprete”. Apoiada por empolgante arranjo de Luiz Eça, com uma levada rítmica rápida e agalopada no início e o refrão cantado com o ritmo desdobrado, Elis explodia na entrada da massa de cordas e sopros, o aplauso era unânime e entusiástico.
Na maneira que Elis cantou, na exuberância de seus gestos, na utilização que fez das mudanças de ritmo, em seu fraseado, em sua vitória havia muito de Lennie Dale. E o início de uma grande parceria com Edu. Levado de roldão no arrastão, “Sonho de um carnaval” passou quase despercebido pelo público. Era um belo e sombrio samba de Chico Buarque em tom menor, cantado por um paraibano do Rio, parceiro de Carlos Lyra, um moreno bonitão de olhos verdes que estava nervosíssimo durante toda a música. Com uma expressão dramática intensa, ao mesmo tempo desafiadora e sofrida, Geraldo Vandré cantava com voz trêmula: “Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando, e brinquei e gritei e fui vestido de rei, quarta-feira sempre desce o pano...”
Depois do festival, Elis foi a São Paulo para fazer mais um show de Walter Silva, ao lado de Jair Rodrigues e do Jongo Trio, no Teatro Paramount: “O fino da bossa”. A lotação para as duas noites esgotou em poucas horas e foi acrescentado um terceiro show, que também superlotou os dois mil lugares, escadas e corredores do teatro. Elis e Jair foram eleitos os melhores cantores do ano no “Prêmio Roquete Pinto”, o mais prestigiado evento da TV Record. Na noite da premiação, transmitida ao vivo, o auditório foi à loucura com Elis e Jair e eles foram contratados pela emissora para comandar um novo programa musical, que não podia se chamar “O fino da bossa” porque os direitos do nome eram de Walter Silva, e seria somente “O fino”, dirigido por Manoel Carlos. Com a fina flor da nova música brasileira, como Baden Powell, Edu Lobo, Marcos Valle, Os Cariocas, Wilson Simonal, Geraldo Vandré, Nara Leão, Tamba Trio, Zimbo Trio e, naturalmente, Lennie Dale.
Graças a uma manobra de seu empresário Marcos Lázaro, que fez um leilão entre Cassiano Gabus Mendes, da TV Tupi, e Manoel Carlos, da TV Record, que disputavam seu passe, Elis assinou um contrato para fazer “O fino” ganhando um salário de US$ 17 mil, astronômico numa época em que o cantor mais bem pago da casa, Agostinho dos Santos, ganhava US$ 2 mil. Era tanto dinheiro que com seus dois primeiros salários, descontados os 20% de comissão de Marcos, Elis comprou, à vista, um apartamento no mesmo prédio onde morava há três meses com a família Lázaro, na esquina das avenidas Ipiranga e Rio Branco, no Centro da cidade. E ainda sobrou o suficiente para comprar uma infinidade de roupas, perfumes e principalmente sapatos, muitos, tamanho 35.
O sucesso de “O fino” foi imediato e contagiante. Filas imensas se formavam na calçada horas antes do programa. Moças com os cabelos duros de laquê e vestidas para festa e muitos homens de paletó e gravata disputavam o privilégio de ver um show com 15 artistas do primeiro time por uma entrada um pouco mais cara que um cinema. O programa era gravado às segundas-feiras e exibido na quarta às nove da noite na Record, líder absoluto de audiência em todo o Brasil. A dupla Elis e Jair se completava e excedia: um negro e uma branca, jovens e talentosos, animados e cheios de ritmo, alegres e populares. Juntos eles lançaram um dos maiores sucessos populares da história do disco brasileiro, Dois na bossa, acompanhados pelo Jongo Trio. O forte do disco eram sucessos do momento reunidos em pot-pourris, junto com sambas extrovertidos e novidades da nova geração: a dupla se tornou
um estrondoso sucesso nacional. Muito maior do que Elis e Jair separados. Mas Elis não pensava em fazer uma carreira em dupla com Jair. Ou com quem quer que fosse.
Com 21 anos, Elis tinha recursos vocais e ambições artísticas que pareciam ilimitados e uma paixão secreta por Rubinho, baterista do Zimbo, mais velho e experiente do que ela, um músico de jazz prestigiado que tinha aderido à nova onda. Uma das grandes influências de Elis nesse início de estrelato foi o núcleo jazzístico do Zimbo (Rubinho e o baixista Luiz Chaves), já que o pianista, Amilton Godoy, era de formação erudita. O calor e exuberância de Elis somavam-se aos solos virtuosísticos e harmonizações jazzísticas do Zimbo e produziam o popular e o sofisticado, ampliavam o público do trio e da cantora. Até João Gilberto fez “O fino”. Mas foi como se não tivesse feito. Primeiro foi difícil convencer Elis, que não queria saber da sofisticação cool de João Gilberto e Tom Jobim. Elis detestava bossa nova. Depois de árduas negociações, Marcos Lázaro conseguiu trazer João de Nova York para participar do programa. Trancado no hotel, concentrado, João não quis falar com ninguém, não participou do ensaio e chegou em cima da hora da gravação. Para seu intimismo cool não havia ambiente menos favorável que a animação efervescente das jovens plateias barulhentas do “O fino”, onde tudo era feito para excitar e levantar o público. João cantou seus sambas quase em segredo e foi ouvido como um objeto sonoro não-identificado, algo de um passado remoto. Ou de um futuro distante. A hora era de refrões poderosos, para serem cantados junto com o público, a hora era para letras fortes e palavras duras, para ritmos desdobrados e sambas animados, a hora era para fora.
O esperto Marcos Lázaro deu outra grande tacada quando conseguiu que a Record dobrasse a proposta da TV Tupi para Wilson Simonal comandar um musical. Simonal saiu direto da assinatura do contrato para uma agência de automóveis e comprou um Impala cor de vinho no ato. Com seu mentor Carlos Imperial na produção e com o trio de César Mariano, agora chamado Som Três, Simonal se tornou um dos maiores salários — e sucessos — da Record com o seu “Show em Si... monal”. Contava piadas, brincava com o público e fazia-o cantar, tocava instrumentos, fazia imitações, como um entertainer americano. Apresentava números musicais com os contratados da Record e duetos divertidos com artistas populares, como o genial Jackson do Pandeiro ou o megabrega Orlando Dias.
Simpático e irreverente, Simonal não só sabia como poucos sentir e interagir com o público, como estava criando um gênero musical próprio, um estilo, uma batida, uma levada, uma atitude: a “pilantragem”. Uma jogada dele e de Imperial com a ajuda musical de César Mariano, que adaptava temas populares como “Meu limão, meu limoeiro” para o ritmo dos hits de Chris Montez, uma espécie de samba americano com sabor latino, muito gostoso.
O público adorou, acompanhava com palmas, todo mundo dançava: finalmente Imperial acertava no milhar. Bem que o gordo tentou chamar a nova onda de “samba jovem” em vez do duvidoso “pilantragem”. Mas Simonal gostava e usava a palavra como atualização da antiga malandragem, como sinônimo de esperteza, de vivacidade, de criatividade, sem qualquer sentido pejorativo: era uma qualidade. Era impossível sobreviver sem uma certa pilantragem: ele mesmo se considerava um bom pilantra.
Num fim de noite no Beco das Garrafas, naquela afetuosidade alcoólica que estimula confissões, ele suspirou e me disse: “Veja você, até pouco tempo atrás eu era secretário do Imperial, um crioulo filho de uma lavadeira, e hoje... tenho um dos carros mais bonitos da cidade.” Como a velha Hollywood e a antiga Rádio Nacional, a TV Record tinha um imenso elenco de artistas contratados, que ganhavam salários mensais e eram escalados para participar dos diversos programas da casa. A Record também não acreditava em cheques: todo mundo era pago em dinheiro vivo.
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