Por Gilson Antunes
Mozart Bicalho é um dos heróis do violão instrumental brasileiro da primeira metade do século 20. Ele não apenas compôs algumas das páginas mais belas do repertório seresteiro nacional como também era um intérprete inspirado e poeta nato. Sua valsa Gotas de Lágrimas é seguramente um dos maiores hinos do violão brasileiro, ao lado de Abismo de Rosas, Sons de Carrilhões e Se Ela Perguntar. Há ainda músicas maravilhosas compostas pelo violonista, como Currupacospapacos e Tuim Tuim, que merecem fazer parte do repertório dos violonistas. Ele é um dos principais músicos de sua geração, ao lado de Américo Jacomino (Canhoto), Glauco Vianna, Henrique Brito, Benedito Chaves, Rogério Guimarães e outros.
Mozart do Nascimento Cruz Bicalho nasceu em Bom Jesus do Amparo, interior de Minas Gerais. Recebeu desde a mais tenra idade uma educação musical formal: seu pai, Virgílio Cruz Bicalho, tocava vários instrumentos musicais, entre eles violão, piston, piano e clarinete, além de reger bandas de músicas e coros sacros. A mãe Rita de Cássia Dias Bicalho também era musicista. O nome Mozart provém desse amor que os pais nutriam pela música.
Além da educação musical, Mozart Bicalho também aprendeu o ensino escolar normal dentro de casa com o pai. Depois aperfeiçou os estudos no Seminário do Caraça. Quando o jovem violonista recebeu o primeiro livro, recebeu também um manual de música. Esse fato o coloca em posição distinta de violonistas como Américo Jacomino (Canhoto) ou João Pernambuco, que nunca aprenderam a ler música.
O primeiro instrumento de menino Bicalho foi o pistão. Só escollhou o violão na adolescência, por influencia do irmão Antônio Raimundo, que lhe deu as primeiras lições. Paralelamente, Bicalho ia se desenvolvendo “de ouvido” através dos conhecimentos de música recebidos de seu pai.
Mudança para Belo Horizonte
Em 1912 sua família transferiu-se para Baldim (MG), onde seu pai morreu no ano seguinte. Isso fez com que cada irmão levasse um rumo diferente, decidindo-se cada um viver em alguma cidade diferente para tentar ganhar a vida. Com isso, Bicalho resolveu transferir-se para Belo Horizonte em 1920, tentando conciliar estudo e trabalho, nem sempre com a música, por causa do preconceito contra o violão naquela época e as dificuldades decorrentes dessa atitude. Como exemplo, basta dizer que Bicalho permaneceu solteiro por toda a vida, fato que relata o preconceito com que sofriam os violonistas no início do século 20. Ele teve pelo menos dois relacionamentos sérios, mas um deles não vingou porque o pai da moça não queria que ela se casasse com um violonista. O outro relacionamento também não teria dado certo, mesmo com o violonista tendo trabalhado durante quatro anos na empresa Belgo Mineira para satisfazer sua noiva.
Ainda na década de 1920 Mozart Bicalho assistiu a um recital de violão que mudou a sua vida para sempre: Américo Jacomino, o maior violonista brasileiro daquela época, apresentou-se no antigo Cinema Avenida, causando forte impacto no jovem músico mineiro, que daí em diante resolveu ser um violonista profissional, tal qual seu ídolo paulista, que ele chamava de “maior violonista de nosso tempo e de todos os tempos”. No dia da morte de Canhoto, em 1928, Bicalho fez um recital na cidade de Ferros, interior de Minas Gerais, e pediu um minuto de silêncio à plateia em memória do ídolo, tocando em seguida três das maiores obras de Canhoto em sua homenagem.
Nas emissoras do Rio
Após o período em Belo Horizonte, em 1923 Mozart Bicalho transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde dois de seus irmãos já se encontravam e onde ele pensava que poderia encontrar um ambiente mais propício para a carreira profissional como músico. O primeiro emprego na capital carioca foi tocando um instrumento de sopro na Banda da Polícia Militar, mas ainda naquele ano ele se apresentou na rádio Sociedade, no dia 23 de abril, tocando uma música ao violão. A partir daí, Bicalho passou a tocar com frequência em emissoras cariocas, como Rádio Clube, Rádio Sociedade Mayrink Veiga, Rádio Educadora do Brasil, Rádio Jornal do Brasil, Rádio Vera Cruz e Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Manteve contato com grandes nomes do instrumento, entre eles Oswaldo Soares, Quincas Laranjeiras, João Pernambuco e Rogério Guimarães.
Em 1932 Mozart Bicalho deixou a corporação militar, dedicando-se à carreira de violonista, aproveitando o espaço deixado pelas gravações elétricas que estavam surgindo. Com a morte de Américo Jacomino em 1928, o diretor artístico da gravadora Odeon, Eduardo Souto, escolheu Bicalho para suceder o violonista paulista. Bicalho ocupou a cobiçada vaga que surgira, gravando inicialmente a valsa Alma de Artista e o cateretê Tuim Tuim, sendo acompanhado em ambas as gravações pelo pianista Henrique Vogeler.
Escola de violão
Em 1943 o violonista decidiu voltar a Minas Gerais para continuar sua carreira musical. Apresentou-se em mais de 300 cidades mineiras, além de outras localidades do Brasil. Ele voltaria ao Rio de Janeiro entre 1953 e 1956 apenas para gravar outros discos. Antes disso, em 1952 resolveu fixar-se definitivamente em Belo Horizonte, onde abriu uma escola de violão na Avenida Amazonas. Anos mais tarde publicou o Método de Violão para auxiliar nas aulas. Entre seus alunos de destaque podemos citar Sara Kubitschek, esposa do então governador de Minas Gerais, Jucelino, que era também um grande apreciador de violão e fã de Dilermando Reis.
Em Belo Horizonte, além de dar aulas, Bicalho se apresentou por diversas vezes em rádios como Guarani, Inconfidência e Pampulha, além de seguir a carreira como concertista (mas em suas apresentações também chegava a cantar canções) e ser representante da fábrica de violões Di Giorgio, revendendo esses instrumentos. Um dos programas radiofônicos preferidos do violonista, onde ele se apresentou por diversas vezes, foi o Meu Amigo Violão, programa que passou por diversas rádios durante várias décadas.
Morte
Depois que fechou a escola, Bicalho passou a viver exclusivamente da revenda de violões. No final da vida, com sérias dificuldades financeiras, amigos tentaram conseguir uma pensão financeira para o músico, inclusive agendando uma audiência com o Secretario de Cultura de Minas Gerais. A tentativa foi em vão, pois Mozart Bicalho morreu de insuficiência cardíaca após 6 dias na UTI do Prontocor, esquecido e sem dinheiro. O velório foi no Palácio das Artes, um dos templos da música da capital mineira.
Mozart Bicalho é nome de uma rua em Belo Horizonte, nome de praça em Bom Jesus do Amparo. Existe um monumento em sua homenagem na cidade mineira de Dom Joaquim. São apenas três exemplos de manifestações raras oferecidas a músicos no Brasil, e que mostram a consideração e respeito que este violonista mineiro recebeu e vem recebendo por sua contribuição à música brasileira.
Recentemente o jovem violonista Reginaldo Martins escreveu uma excelente dissertação de mestrado a respeito da vida e obra de Bicalho, além de tocar de maneira primorosa várias de suas composições. É a nova geração ajudando a preservar a arte deste gigante do violão brasileiro.
Bibliografia específica:
-MARTINS, Reginaldo de Almeida. Muito além da valsa Gotas de Lágrimas: o violão seresteiro de Mozart Bicalho em transcrições e arranjos de seus álbuns Sonhando ao Luar e Um Senhor Violão. Dissertação de Mestrado. UFMG. 2013.
-SAMPAIO, Renato, PILÓ, Alexandre. O Violão Brasileiro de Mozart Bicalho. Belo Horizonte, Ed. Hematitas. 2002.
Discografia:
-Alma de Artista – Tuim Tuim (Odeon, 1929)
-Divagações – Currupacopapacos (Odeon, 1930)
-Festa de Itambé – Usca Moleque (193-)
-Odeon – Gotas de Lágrimas (Odeon, 1930)
-Cidade Cidadão – Toaia de Marambaia (Odeon, 1931)
-Dança das Pulgas – Reminiscências de Santa Alda (Odeon, 1930)
-Peba – Meditação (Odeon, 1930 – 1931)
-Piau Piau – Evocação (Victor, 1932)
-Coração de Mãe – Choro Sete (Odeon, 1941)
-Odeon – Gotas de Lágrimas (1953)
-Três Prantos (1954)
-Tulipa – Gritos D´Alma (1956)
-Sonhando ao Luar (1968)
-Bemol, Meteoro, Violao e Coração, Lágrimas Cadentes, Gaivota da Saudade, Sempre Você, Noites que não voltam mais, Corações Sensíveis,Nostalgias de um Coração (1968)
-Valsa da Amizade, Ao Di Giorgio, Cascata de Ilusões (1968)
0 comentários:
Postar um comentário