terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Para entender as especificidades estético-semânticas de uma canção, é preciso atentar às várias pontas (dimensões) que lhe compõem estrela. Tomando como principais dimensões letra, música e voz, podemos empreender a viagem no campo da significação.

A melodia precisa equilibrar o verbo-textual. A letra precisa "dizer" o ritmo-melódico. Mas é na dimensão vocoperformática que tudo (as intenções) se sustenta. É na unicidade que a gestualidade vocal (corporal - produção de presença) imprime à canção que esta se distingue. É aqui também que a canção ilumina a unicidade do ouvinte: oferecendo o calor (recanto e brilho) que ele precisa.

Mas há muitas outras dimensões. Entre elas, harmonia, preparo técnico, programação eletrônica, manipulação sonora, o uso da língua. E, assim, analisar canção vai se constituindo como um ato complexo que começa no ouvir e sentir, fruir e explicar os vários fatores semióticos produtores de sentido.

Com um texto em primeira pessoa, a canção "Roupa prateada", de Zé Rodrix, registra a ponte que facilita o trânsito entre o sujeito comum e o sujeito cantor. O título da canção diz muito: a roupa prateada e o cabelo comprido são as fantasias estéticas (e sociais) que o primeiro usa para acionar dispositivos acústicos no ouvinte e para chegar a ser o segundo.

Cantando a sua experiência subjetiva e singular, ancorado no figurino propício, o sujeito mostra a outra face: artística. Constrói-se "em sombra, em luz, em som magnífico" diante dos ouvidos e olhos do outro. Enquanto dura a canção, enquanto a roupa lhe cobre o corpo ele é e está no mundo: pulsa em cena. Tudo é presente: agora - estado febril do artista. Ao futuro a canção.

Nem antes, nem depois: o sujeito está no palco, brilha prateado sob a atenção luminosa do ouvinte. "Desde pequeno que eu tinha vontade de chegar aqui / E ficar na frente de uma banda como essa e cantar assim", diz. Cantar é o empenho e o privilégio de sua vida. "Meu coração não mente quando canta e diz / Eu faço exatamente o que sempre quis", diria o sujeito de outra canção.

Talvez lúcido de seu poder sirênico, mas sem querer ser expulso da República platônica (onde o logos está desvocalizado), o sujeito de "Roupa prateada" avisa: "Eu só preciso dizer pra vocês que eu não ofereço perigo / O que eu tenho pra lhes dizer é somente aquilo que eu digo", desdobrando os versos de uma outra canção: "Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim". Ou seja, como querer que o artista viva sem mentir, sem fazer uso de seu dom de iludir - na imitação da vida?

Dito de outro modo, ele parece ecoar o sujeito de "Sangrando", quando diz: "Quando eu soltar a minha voz / Por favor, entenda / É apenas o meu jeito de viver / O que é amar". Ele é pessoa se entregando, usando o poder da arte para existir com os homens - seus irmãos na terra.

Para o sujeito de "Roupa prateada" uma canção não acaba no derradeiro acorde. Ela reverbera no ouvinte atento à verdade da voz que canta por muito tempo. "Vocês só vão entender quando chegar em casa muito tempo depois", diz. E encanta e enreda o ouvinte:"E vocês vão voltar, / e vão escutar outra vez".

Marya Bravo é dona de uma das vozes mais privilegiadas do Brasil. Cheia de recursos, amplitudes de emissão e possibilidades. E ela sabe disso. Usa seu instrumento com lucidez e tesão. Sua voz amplia as especificidades estético-semânticas de toda canção. E não seria diferente com esta canção de seu pai, Zé Rodrix.

Guardada no disco De pai para filha - Marya Bravo canta Zé Rodrix (2011), "Roupa prateada" ganha em vigor e acento dramático. Talvez tomada pelas lembranças afetivas, Marya Bravo transmuta-se no sujeito cancional e este alça o vôo desejado e sugerido no texto da canção: "Eu só quero usar a roupa prateada e cantar pra vocês".

Mais do que descrever a cena, Marya Bravo dramatiza o discurso cancional do sujeito. Ou melhor, Bravo vive o sujeito. Letra, melodia e voz se conjugam para formar a teia cancional, a estrutura do percurso sonoro.

É no jogo entre o que o sujeito diz e os resíduos disso colados na pele da memória do ouvinte que a canção "Roupa prateada" trabalha. E para que a eficácia da canção ocorra a voz de Marya Bravo é o suporte mais do que certo para fazer a mensagem confessional dançar.


***

Roupa prateada
(Zé Rodrix)

Desde pequeno que eu tinha vontade de chegar aqui
E ficar na frente de uma banda como essa e cantar assim
E tudo o que eu fiz eu só fiz porque eu queria chegar no lugar onde estou
Pra poder usar as roupas prateadas e o cabelo comprido

Eu só preciso dizer pra vocês que eu não ofereço perigo
O que eu tenho pra lhes dizer é somente aquilo que eu digo
E o que eu preciso dizer pra vocês vai acabar ficando só entre nós
Vocês só vão entender quando chegar em casa muito tempo depois
E vocês vão voltar,
e vão escutar outra vez,
mas por enquanto eu só quero usar a roupa prateada e cantar pra vocês



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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