terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




O conto "Caso na roça", de Amador Ribeiro Neto, transcria o conto "Saparalha" de João Guimarãres Rosa. Os protagonistas Primo Ribeiro e Primo Argemiro agora tremem reagindo à febre da "maldita". Ambos soropositivos e isolados "ali, na beira do Rio Sanhauá, pras bandas da Paraíba" - ligados pelo sangue parental e "envenenado", como diria o sujeito da canção "O gosto do azedo", de Beto Lee.

Assim como as personagens rosianas, porém deslizados esteticamente para outras (novas) situações narrativas, os dois parecem ser o desenho nítido do trecho - "mais alegre" - da cantiga que Rosa usou como epígrafe de seu conto: "Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... / Não cantes fora da hora, ai, ai, ai... / A barra do dia aí vem, ai, ai, ai... / Coitado de quem namora!...".

Cuidando um do outro, os primos repassam os (des)caminhos que os separaram do grande amor, apaixonados que são pelo mesmo moço bonito que fugiu com um vaqueiro "vestido com roupa de dia-de-domingo". "Não sei, não... Só sei é que se ele, por um falar, desse de chegar aqui de repente, até a febre sumia...", diz Primo Ribeiro. "É... Se ele chegasse, até as manchas desapareciam", completa Primo Argemiro.

Tanto em "Sarapalha", quanto em "Caso na roça", Primo Argemiro ama e sofre em silêncio, sem nunca ter consumado sexualmente o amor. "Eu também gostei dele, Primo... Mas respeitei sempre... respeitei você... sua casa... Nós somos parentes", diz Primo Argemiro. Aliás, está na revelação do desejo o ápice dos dois contos. Tudo se fragmenta. Laços e cuidados são rompidos. "Fui picado de cobra", diz Primo Ribeiro antes de expulsar o outro.

Guardado no livro Quartas histórias, organizado por Rinaldo de Fernandes, "Caso na roça" tematiza o mergulho febril das personagens pelas veredas e emboscadas do enamoramento - "Coitado de quem namora!". E é na construção formal que o conto trabalha tais questões. Ou melhor, faz da forma conteúdo.

"Primo Ribeiro escolhe cedês pra rodar enquanto desce novas músicas da Internet", anota o narrador. E aqui está o punctum do conto: títulos de canções e/ou cancionistas são citados aqui e ali, ao logo do texto, tecendo uma trilha sonora ao acontecimento. "Os discos de Caetano Veloso vão tocando: Eu não peço desculpa, Noites do Norte", "Cazuza começa a rolar: O tempo não pára, Só se for a dois", anota o narrador.

Este artifício latino-americano e neobarroco de experimentar e colar referências e ícones de diversas artes constitui a estrutura e o conteúdo do conto de Amador Ribeiro Neto. Caetano Veloso, Cazuza, U2, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis se aproximam e dançam ao ritmo da narrativa, da montagem artística.

É por esta entrada que chego à canção "Cinema americano", de Rodrigo Bittencourt. Gravada por Thaís Gulin, no disco ôÔÔôôÔôÔ (2011), o sujeito transita entre a primeira, a segunda e a terceira pessoas enunciativas. Pode se ouvir a voz de alguém diante do espelho, ou a voz de alguém que aponta o outro, por vezes, incluindo-se.

Isso porque o termo "nego" (fresta da canção), do primeiro verso - "Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll" - pode estar fazendo menção a outra personagem, ou a si (ao sujeito que fala). Afinal, como anota o sujeito de outra canção: "Neguinho que eu falo é nós".
Cheia de si - o sujeito ou de quem ele fala, nós -, a personagem é confrontada com suas certezas. Supostas conquistas e verdades contrastam com as afirmativas da canção: "É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme / É preciso seu amor seu feminino seu suíngue / Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande / É preciso ser macho ser fêmea ser elegante", canta uma Thaís Gulin tranquila e segura na transmissão da mensagem.

E é assim que, noutro plano de interpretação, o sujeito de "Cinema americano" parece ter como interlocutor o sujeito de "Eu sou melhor que você", de Moreno Veloso, em especial quando este destaca: "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande, / E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá / Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor / Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos / (...) / Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém". A voz cancional criada por Rodrigo Bittencourt elenca, mistura e revela inúmeros símbolos e ícones de consagração no universo pop a fim de destroná-los em suas qualidades (significantes) e promessas de felicidade, reposicionando-os dentro da canção. E, claro, não poderiam faltam as referências cancionais: "Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao / Não que Slayer não seja legal e visceral / A expressão do desespero do macho americano é normal / Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural".

"O cinema falado é o grande culpado da transformação / (...) / Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição / Não entende que o samba não tem tradução", sugere a canção "Não tem tradução", de Noel Rosa. Por outro lado, a expressão "Prefiro os nossos sambistas" é o único trecho que se repete na letra da canção "Cinema americano": ecos e diálogos atemporais.

Personagem de "Cinema americano" e de "Caso na roça", a canção popular atravessa e é marcada no projeto mesmo de existir na América Latina. Por aqui, tudo é singular e dói e é absorvido, tecido à vida. O narrador do conto e o sujeito da canção são observadores da nossa vida urbana e incorporam organicamente as observações na produção ficcional: no conto e na canção.

"Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta", diz a canção de Moreno. "Coitado de quem namora", diz a cantiga recolhida por Guimarães Rosa. "A si mesmo", poderia completar o sujeito de "Cinema americano", em seu destaque do "tão narciso", da admissão da coexistência do orgulho e do amor.


***

Cinema americano
(Rodrigo Bittencourt)

Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll
Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado
Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus
Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus
Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel
Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel
Tão hot dog tão câncer social tão narciso
Tão quadrado tão fundamental
Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York
Tão grana tão macho tão western tão Ibope
Racistas paternalistas acionistas
Prefiro os nossos sambistas

A ponte de safena Hollywood e o sucesso
O cinema a Casa Branca a frigideira e o sucesso
A Barra da Tijuca Hollywood e o sucesso
Prefiro os nossos sambistas

Prefiro o poeta pálido anti-homem que ri e que chora
Que lê Rimbaud, Verlaine, que é frágil e que te adora
Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol
Mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol

Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao
Não que Slayer não seja legal e visceral
A expressão do desespero do macho americano é normal
Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural

É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme
É preciso seu amor seu feminino seu suíngue
Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande
É preciso ser macho ser fêmea ser elegante

Prefiro os nossos sambistas

* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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