Por Leonardo Davino*
A canção existe na experiência de todo humano. Isso revela sua força e poder de disseminação, tanto pelo modo simples (natural) e fundamental (determinação cultural) de se apresentar no mundo, quanto pela capacidade sofisticada (porque individual em sua produção de sentido) de dizer da unicidade de quem canta (o cantor) e de quem é cantado (o ouvinte).
"Há sempre uma canção para contar / aquela velha história de um desejo / que todas as canções tem pra contar", diz o sujeito de "Fotografia", de Antonio Carlos Jobim. Escaninhos do desejo, a canção - do canto de mitos ao canto mediatizado e comercial - equilibra texto, música e performance em tempo e espaço simultâneos. Sempre no presente (atualizado) à simpatia do corpo irradiado do ouvinte. "As canções / só são canções / quando não são / promessas", diz o sujeito de "Nossa canção", de Zé Miguel Wisnik e Muro Aguiar.
"De onde vem a canção / Quando se materializa / No instante que se encanta", versos da canção "De onde vem a canção", de Lenine, diz com precisão o espanto diante do instante mágico da canção: quando aquelas palavras parecem ter sido feitas para serem cantadas daquele modo.
Todo o trabalho de acomodação, adequação e equilíbrio entre as dimensões da canção (texto, música e voz) feito pelo cancionista visa alcançar a eficácia da canção: o encanto, o mergulho no mar sonoro das sereias, a dança da história do desejo. E é no conjunto operatório que tudo isso se realiza. Mas é na voz que se transmuta em prisma.
Basicamente, se a palavra escrita diz coisas de um modo que a música não pode fazer, a música, por sua vez, tende a exprimir as emoções daquilo que é dito. Mas nada é tão genérico assim. É na performance vocal que as dimensões se afetam mutuamente.
Isso foi historicamente rejeitado pela análise acadêmica de canção que sempre privilegiou o texto. O que é facilmente compreensível já que ainda persiste a ideia de que aquilo que não pode ser isolado (e a palavra escrita pode, e as notas musicais em partitura também) não serve à análise e à transmissão. "No texto está a verdade, a realidade", dizem alguns.
Só na performance vocal é que o logos efetivamente sai pela boca (depois de atravessar o corpo do cantor) e entra pelo ouvido (para atravessar o corpo do ouvinte). Aqui reside a fisicalidade, a concretude da canção. É este logos vocalizado, promovedor de outros e novos sensos e pulsões, o que assusta a certa crítica.
As ações e emoções que teremos diante de cada gesto de cantar e de cada escuta dependem do instante-já cancional. É assim que uma mesma canção pode ganhar sonoridades e práticas diversas quando performatizadas por cantores distintos. É assim também que uma mesma canção, cantada por um mesmo cantor, ganha novos sentidos quando confrontada com momentos temporais diversos.
Não podemos, deste modo, negar o treinamento e os estilos vocais diversos. Muito menos a relação que cada cantor tem com equipamentos e tecnologias. Tudo age sobre a performance e, consequentemente, sobre a recepção e a produção de sentido.
Quando o sujeito da canção "Eu não existo sem você", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, diz que "a canção só tem razão se se cantar" está sintetizando as questões que tratamos aqui. Cantadas por Elizeth Cardoso (Canção do amor demais, 1958) tais palavras tem um sentido. Gravada por Rosa Passos (Rosa, 2006), a canção percorre outros caminhos.
Enquanto Elizeth investe na figurativização e concretude de um sujeito que não se concebe longe do outro, através de alongamentos vocálicos, textura passional e envolvimento somático, a performance vocal de Rosa Passos, mais cool, cheia de economias de vogais e de elegância parece contrastar com aquilo que é dito.
Dito de outro modo, há em "Eu não existo sem você" uma angústia intrínseca irrefreável: "todo grande amor só é bem grande se for triste", diz o sujeito. O título da canção aponta para isso. Aqui, o sujeito é exagerado em sua entrega e na afirmação da dependência afetiva. "Eu nunca mais vou respirar / se você não me notar", parece dizer. Ou "Porque é que tem que ser assim? / Se o meu desejo não tem fim".
O desejo. Eis a diferença entre a performance de Elizeth e a de Rosa. Com mil rosas roubadas, a primeira sente e diz: "Eu não existo longe de você / E a solidão é o meu pior castigo". A segunda investe na recriação técnica e estrutural do modo de cantar a canção: mais contido, sem bandeiras.
Elizeth canta em uníssono com a tristeza do sujeito que ela performatiza. Rosa canta lúcida de cada palavra, cada gesto. Não há uma versão melhor, muito menos pior, do que a outra. Há diferenças, intenções, motivos, caminhos que promovem a ponte entre o cantor e o ouvinte. E nada nesse mundo levará um do outro. Um existe no outro. Afinal, "viver sem ter amor não é viver" e toda forma de amar (e cantar o amor) vale a pena.
***
Eu não existo sem você
(Antônio Carlos Jobim / Vinícius de Moraes)
Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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