segunda-feira, 9 de maio de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




Amanhece, preciso ir, meu caminho é sem volta e sem ninguém, eu vou pra onde a estrada levar, cantador, só sei cantar: eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor.” Antes de ir para a Europa, Edu tinha ouvido a música de Dory, ainda sem letra. Adorou, pediu para repetir várias vezes, cantava junto, não parava de elogiar. E tanto que Dory perguntou-lhe se não queria fazer a letra. Edu queria, claro, mas achava que não sabia e principalmente não devia: afinal, entre jovens compositores, as parcerias musicais tinham peso conjugal, e como
éramos todos amigos não ficava bem ninguém ciscar em quintal alheio. Edu decidiu que não faria, mas não conseguia tirar da cabeça os versos que tinha imaginado para o refrão: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar.” Quando voltou de Paris, a poucos dias do encerramento das inscrições, Edu musicou esses mesmos versos e transformou-os no poderoso refrão de sua música. Construiu uma primeira parte em ritmo tenso e agalopado, com uma melodia vigorosa, e deu-a para o jovem poeta baiano José Carlos Capinam, já com o refrão pronto e com uma ideia de letra, baseada no ponteado do violão, principal característica da música. No dia seguinte, Capinam apareceu com a letra: “Era dia, era claro, quase meio, era um canto calado sem ponteio, violência, viola, violeiro, era a morte em redor, mundo inteiro.” “Ponteio” era uma formidável concorrente. E ainda mais com o time musical que Edu chamou para defendê-la ao seu lado: o Quarteto Novo de Hermeto Paschoal, Theo de Barros, Airto Moreira e Heraldo do Monte, a jovem e bela cantora guerreira do Teatro de Arena, Marília Medalha, os afinados e animados vocalistas cariocas do Momento 4: Maurício Maestro, David Tygel, Ricardo Villas e Zé Rodrix. Certamente estaria entre as primeiras.

Duas semanas antes do festival, no Hotel Danúbio de São Paulo, encontrei Gilberto Gil e Nana Caymmi, recém-casados, e fui para o quarto deles tomar cerveja, bater papo e saber das novidades. Quando Gil pegou o violão e me mostrou a sua canção do festival, perplexo, ouvi uma música cinematográfica, com letra e melodia trabalhadas como um filme moderno e dinâmico, com sequências, planos, cortes, montagem: um crime passional no parque de diversões tratado com linguagem fragmentada e moderníssima. Fiquei chocado: de todas as
concorrentes que eu conhecia, inclusive a nossa, “Domingo no parque” era a mais moderna, mais audaciosa, a de que eu mais gostava. Caetano dividiu com Gal Costa um lindíssimo Lp na Philips, que achava que eles ainda não mereciam Lps individuais e deu meio disco, seis faixas para cada um. Mas em nenhuma eles cantavam juntos. Dori produziu e fez alguns arranjos, Francis Hime outros, conhecemos as novas músicas de Caetano como “Avarandado” e “Remelexo”, Gal gravou gilbertianamente músicas lindíssimas de Edu, Sidney Miller, Caetano e Gil. O disco não teve repercussão popular, mas entre nós foi um grande acontecimento de novidade e bom gosto. Para o povão e as torcidas da TV Record, Caetano começava a ficar conhecido e querido por sua memória e simpatia no “Esta noite se improvisa”. Uma tarde, no escritório de Guilherme Araújo, em Copacabana, ele me falou alegre e entusiasmado sobre a sua música do festival: “Alegria, alegria”. Mas a poderosa letra modernista de Caetano não falava em alegria em nenhum momento: era sobre liberdade.

“Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, no sol de quase dezembro eu vou.” Até Erasmo Carlos concorreu, com “Capoeirada”, uma tentativa nacionalista totalmente fora de seu estilo, impiedosamente vaiada nas eliminatórias, onde o nível das músicas era extraordinário: nunca um festival tinha reunido tantas músicas tão boas. E um público tão feroz. Um belíssimo samba-canção de Johnny Alf, “Eu e a brisa”, que se tornaria um grande clássico da MPB, foi vaiado e não chegou à final. Nem uma bonita canção de Gil e Nana, “Bom dia”, cantada impecavelmente por ela com um quarteto de cordas e arrasada pelas vaias. Nos bastidores, Wilson Simonal sabe que não tem chances e se diverte com o nervosismo dos concorrentes sérios, aterrorizados com o clima de guerra. De conjunto safari, botas militares e boina, se preparando para defender a marchinha “Belinha”, de Toquinho e Vitor Martins, o Simona beberica um uísque e explica seu bizarro figurino ao microfone da repórter Cidinha Campos: “É um modelo no estilo ‘guerrilheiro’”, faz uma pausa e uma expressão pilantra e completa: “Guerrilheiro Pierre Cardin, naturalmente.” Entra no palco vaiado e sorridente, manda beijos para o público, que se diverte com sua música inofensiva e com o ritmo de pilantragem do Som Três e sai aplaudido.

Com o sucesso de “Disparada”, Geraldo Vandré disparou para o sucesso e tornou-se o mais popular e festejado representante da esquerda musical no Brasil. Com seus olhos verdes e suas letras inflamadas, era um ídolo dos estudantes paulistas e encarnava os seus ideais revolucionários socialistas e nacionalistas. No festival, Vandré veio com “Ventania”, cantando em versos épicos as aventuras de um caminhoneiro. O boiadeiro se motorizava, mas a música estava longe da qualidade e do impacto de “Disparada”, soava antiga diante das novidades de Edu, Chico, Gil e Caetano. Para a apresentação, Vandré preparou uma grande produção, com vários participantes e a introdução da música tocada por várias buzinas de caminhão, em acordes. Em vão: nas eliminatórias, o público se dividiu entre vaias e aplausos e viu-se que aquele caminhão tinha pouca areia e não ia a lugar algum. Restava aos fanáticos vandresistas vaiar todas as outras. Na noite da grande final o ar estava elétrico e os ânimos exaltados, as torcidas gritavam sem parar, aplaudiam seus favoritos e vaiavam os adversários, num clima de final de campeonato: pelo menos metade das doze finalistas tinha chances reais de ser a vencedora.

Quando Caetano entrou no palco para cantar “Alegria, alegria” com os Beat Boys, uma banda de rock — e de argentinos —, foi uma gritaria infernal. Traição! Adesão! Oportunismo!, gritavam nacionalistas exaltados: Caetano estava trocando a “música brasileira” pela “música jovem”. Mas ele não estava trocando, estava tentando integrar. Sua música era só uma marcha leve e alegre, com uma letra caleidoscópica e libertária. Os três acordes da introdução gritados pelas guitarras eram quase tudo que tinha de rock. Mas eram mais do que suficientes. Somente a presença cabeluda e elétrica dos rockers argentinos já seria para caracterizar a provocação. Quando ele começou a cantar, mais gente vaiava do que aplaudia, o que era injusto mas de certa forma animador para os concorrentes, como eu. Eu jamais vaiaria um colega, mas no calor da competição não me incomodava muito que outros vaiassem. Longe das melhores de Caetano, a música era simples, tinha a sua graça, mas sua força era a letra e principalmente a atitude de Caetano, a potência e simpatia de sua performance, que foram aos poucos ganhando o público e transformando vaias em aplausos. Foi tão arrebatador esse ato de talento e de poder que comecei também a aplaudir entusiasticamente o concorrente, quase contra a minha vontade. Mas era irresistível. Caetano saiu do palco consagrado e a luta pelo “Berimbau de ouro” ficava mais dura. Chegamos à final entre as favoritas, credenciados por uma performance sensacional de Elis nas eliminatórias, dominando as tentativas de vaia com a potência de sua voz, impondo a beleza da música e saindo do palco sob aplausos consagradores. Já na noite final, com o ambiente muito mais carregado e agressivo, Elis se irritou com as vaias, se perturbou e, embora cantando bem, não brilhou tanto quanto na eliminatória e abalou minha certeza de que estaríamos entre os primeiros. Mas o pior ainda estava para acontecer.

Antes mesmo de Sérgio Ricardo entrar para cantar seu samba “Beto bom de bola”, o público começou a vaiar maciçamente. A música já tinha se classificado sob vaias nas eliminatórias, decididamente aquele público a detestava. E vaiava. Sérgio pedia para começar. Vaiavam mais alto. Alguns aplaudiam, o que atrapalhava ainda mais. Sérgio não conseguia ouvir a orquestra e nem a própria voz. Começa a cantar, sai do tom, procura a orquestra, pára. A vaia cresce selvagem. Tenta começar de novo, vai aos trancos e barrancos, dramaticamente misturando sua voz trêmula à confusão sonora da orquestra, os músicos param de tocar, ele segue em desesperador “a capella” no meio de uma vaia ensurdecedora, tentando contar a história de um jogador de futebol explorado. Pára de cantar e, com os olhos fuzilando de fogo e lágrimas,  arrebenta o violão contra o palco, no que se tornaria um número clássico de guitarristas de rock como Jimi Hendrix e Pete Townshend. “Vocês ganharam! Vocês ganharam! Isso é o Brasil subdesenvolvido! Vocês são uns animais!”, grita furioso no microfone e joga o violão despedaçado no público, antecipando em uma década o que seria um dos atos rebeldes favoritos de bandas punk como os Sex Pistols. Sérgio, nacionalista e socialista radical, não sabia que estava fazendo história. Do rock.

Assim que Sérgio saiu do palco, o apresentador Blota Júnior anunciou que a música tinha sido desclassificada e chamou a próxima concorrente. Nos bastidores do circo romano, Edu, Marília, o Momento 4 e os músicos, ainda chocados com os dramáticos acontecimentos, foram empurrados para o palco, enquanto o público ainda vaiava e o auditório parecia que ia explodir. Foram recebidos com aplausos ensurdecedores, o público estava aliviado e se sentia vitorioso na guerra contra “Beto bom de bola”. Fizeram uma apresentação empolgante e saíram do palco ovacionados e aos gritos de “já ganhou”. Apoiado pelo MPB 4, Chico faz uma sóbria mas poderosa apresentação de “Roda-viva” e também sai ovacionado. É adorado pelo público e vai pras cabeças, com certeza. Se ouvida só com violão a música de Gil já era um espanto, imaginem com um sensacional arranjo de orquestra de Rogério Duprat à maneira dos que George Martin fazia para os Beatles, com berimbaus e atabaques se misturando aos sons elétricos de Arnaldo, Sérgio e Rita Lee, Os Mutantes, pela primeira vez diante do grande público, recebidos com vaias estrepitosas e aplausos estrondosos. Com toda a polêmica que incendiou, com aquela música e aquela letra, aquele arranjo, aqueles meninos cabeludos que tocavam muito bem, aquela lourinha maravilhosa que balançava os cabelos de seda e tocava pratos, tudo conspirava a favor de “Domingo no parque”. Aplaudi entusiasticamente e achei que Gil ganharia. E merecia: tinha dado um grande, audacioso passo adiante, tinha virado a mesa e criado nova beleza.



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