terça-feira, 24 de maio de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




"O mais importante do bordado é o avesso", diz o sujeito da canção "O que eu não conheço", de J. Velloso e Jorge Vercilo, na voz de Maria Bethânia, ressignificando as perspectivas entre profundidade e superfície, interno e externo, dentro e fora, ser e aparência. 

Aquilo que não vemos, sequer pensamos, mas supomos existir como suporte daquilo que podemos ver, um avesso mal realizado pode inutilizar o bordado. As bordadeiras e os artesãos sabem disso: a trama interna de fios não pode ser feita de qualquer forma, o capricho com o avesso é fundamental no resultado da beleza do aparente no bordado.

Chamo atenção para isso a fim de registrar a beleza rara do projeto gráfico do encarte do disco Dorival (2011), do Quarteto Primo, com fotos feitas a partir dos bordados de Maria Esther Lacerda von Krüger sobre pinturas de Dorival Caymmi. 

Atento para isso porque o bordado fotografado no encarte é a tradução imagética perfeita para a malha das vozes de Eliza Lacerda (soprano), Malu von Krüger (contralto), Matheus von Krüger (baixo) e Rogério von Krüger (tenor) ao longo das 13 canções do disco. Sob os arranjos vocais de Muri Costa, tais vozes tensionam artesania e mediatização, sutileza e técnica.

É preciso registrar que outro belo trabalho pictórico artesanal feito a partir da obra de Caymmi é a mandala O que é que a baiana tem?, de Demóstenes Vargas. Fazendo os signos de feminina baianidade circularem entre o óbvio e o exótico, a mandala (150 x 150 cm) com pontos variados é o abrigo que faz esses signos se encontrem com eles mesmos e, assim, dialogarem na sustentação do mito. Em tempo: um detalhe da mandala de Demóstenes foi utilizado para ilustrar a capa do disco Pirata (2006), de Maria Bethânia.

Voltando ao Quarteto Primo. Como sabemos, a polifonia é uma chave de leitura proposta por Bakhtin para a obra de Dostoiévski (ler Problemas da poética de Dostoiévski). A polifonia de um texto vem da coexistência e da interação de várias camadas sociais e suas vozes, com a expansão do capitalismo. E Bakhtin aponta semelhanças entre o artifício polifônico e as sátiras menipeias, na ironia e no modo complexo e pretensamente "relaxado" com que planos diversos passam a dialogar.

Por nossa vez, fincados na análise das poéticas vocais, identificamos em algumas canções de Dorival Caymmi o mesmo engenho em equalizar e misturar vozes, por vezes, diversas e contrastantes, gerando o que podemos chamar de efeito polifônico. Em Caymmi, mestre em estetizar o domínio público e traduzi-lo em canção popular mediatizada, isso acontece quando, ao mesmo tempo em que observamos um sujeito cancional individual, há o indício de outras vozes, fragmentos de relatos, rastros de histórias e acontecimentos distantes do sujeito que "fala".

No disco Dorival, o Quarteto Primo, exatamente por ser um grupo vocal, os desenhos das muitas vozes que cada canção de Caymmi contém estão inflamados, expostos na voz de cada um dos componentes: vozes enredadas em uma colcha de retalhos, ora de sujeitos diversos, ora de fragmentos do acontecimento - "O povo de Iemanjá tem muito que contar", anota o narrador de Mar morto, de Jorge Amado. E são as vozes desse povo o que temos aqui.

"Sargaço mar", de Dorival Caymmi, é um exemplo disso. Na versão do Quarteto Primo, a polifonia vocal imprime o encantamento sirênico - descrito na letra - em que o sujeito da canção se enreda para se entregar à Iemanjá. A doida canção que ele ouve, e que não foi feita por ele, arrasta o sujeito-cantor a misturar com o seu um canto "de fora": o cantar da mãe d'água. 

Ou seja, o sujeito de "Sargaço mar" canta enfeitiçado e, na versão do quarteto, a polifonia vocal (sim, aqui a redundância faz-se necessária) é o efeito encantatório: eco e ressonância da voz de Iemanjá a embriagar o juízo do sujeito-cantor.

A melodia complexa e estranha à letra de "Sargaço mar" quer figurativizar o instante exato em que, semelhante ao que o personagem Guma afirma no livro acima citado, o sujeito "talvez tenha inveja do pai e do filho que morreram na tempestade e que agora correrão os mundos que só os marinheiros dos grandes navios conhecem". Dito de outro modo, O "fim de som" equivale ao desejo de "Me atirar, beber o mar / Alucinado; desesperar / Querer morrer para viver com Iemanjá".

"Deusa do amor, deusa do mar", Iemanjá é a cantora. "Ela é a mãe-d'água, é a dona do mar, e, por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens, a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus preferidos. (...) Para ver a mãe-d’água, muitos já se jogaram no mar sorrindo e não mais apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas?", o sujeito da canção quer dissipar a dúvida lançada em Mar morto. E faz, pois o canto "Iemanjá, Odoiá, Iemanjá, Odoiá" final é a entrega derradeira.

Por falar nela, é em conformidade com a descrição feita no livro Mar morto - "a mãe-d'água é loira e tem cabelos compridos e anda nua debaixo das ondas, vestida somente com os cabelos que a gente vê quando a Lua passa sobre o mar" - que ela aparece na capa do disco do Quarteto Primo.

Não podemos deixar de mencionar que o sargaço é uma alga marinha típica dos trópicos e que o Mar de sargaço, lugar geograficamente localizado, aprisionou muitas embarcações europeias do período dos descobrimentos. Ao inverter para "Sargaço mar", Caymmi dissemina o espaço localizado. Enquanto o Mar de sargaço está no Caribe, próximo ao triângulo das bermudas - outro lugar cheio de narrativas e mistérios -, o "Sargaço mar" está em toda parte: é o instante-já de dor e prazer individual; o querer mais que bem querer morrer para viver.

O jogo entre rimas abertas - mar, ar, desesperar, Iemanjá - e rimas fechadas - for, som, cor, amor - reforça internamente à canção o argumento daquilo que se arrebenta e alucina dentro do sujeito, reforçando seu impulso de trans-suicídio. A sugestão de eternidade nos braços da deusa do amor se sobrepõe à racionalidade. Cantor e canoeiro, o sujeito segue seu destino: é assim que se morre.

"Noite da festa de Iemanjá. Nessas noites o mar fica de uma cor entre azul e verde, a Lua está sempre no céu, as estrelas acompanham as lanternas dos saveiros, Iemanjá estira preguiçosamente os cabelos pelo mar e não há no mundo nada mais bonito (os marinheiros dos grandes navios que viajam todas as terras sempre dizem) que a cor que sai da mistura dos cabelos de Iemanjá com o mar". A narrativa de Mar morto parece ser o cenário ideal para o canto-ação, o eixo da canção - "Vou me atirar, beber o mar / alucinado, desesperar / Querer morrer para viver" - do sujeito de "Sargaço mar".

As trocas de turnos vocais que o Quarteto Primo empreende entre seus integrantes vai desenhando o mar que inaugura um verde novinho em folha, sedutor a cada instante, a cada nova voz, bonito quando quebra na praia convidando o sujeito ao mergulho fatal na fonte primeira da vida.

"Sargaço mar" já ganhou versões irretocáveis - de Calcanhotto a Bethânia, passando por Olívia e Nana -, mas na versão do Quarteto Primo ganha pela polifonia vocal (redundância, creio, justificada pelo objeto analisado). A sobreposição e a justaposição das vozes, aliadas aos contra-cantos em rendado vocálico, segredam a beleza da versão do Quarteto Primo, ampliam as possibilidades do encantamento porque passa o sujeito da canção. Tudo diante "desse fim de som, doida canção" (a vida?) que quando se for - findar - abrirá caminho para o "querer morrer para viver com Iemanjá". 

O que ouvimos na versão do Quarteto Primo para "Sargaço mar" é o bordado e seu avesso. O plano da letra e o plano da melodia encontram sentido no arranjo vocal polifônico. O Quarteto Primo toca ali onde o "comum" e o "simples" se transmutam em estrelas na obra de Caymmi: na mescla entre artesania da tradição e releitura da cultura.


***

Sargaço mar
(Dorival Caymmi)

Quando se for esse fim de som
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz; verde cor de arrebentação
Sargaço mar, sargaço ar
Deusa do amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar
Alucinado; desesperar
Querer morrer para viver com Iemanjá

Iemanjá, Odoiá, Iemanjá, Odoiá




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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