segunda-feira, 23 de maio de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Cada programa tinha sua ideologia musical e sua equipe de criação, todos competiam com todos — e todos juntos contra a jovem guarda, que resistia, revigorada pelo apoio dos baianos. A tentativa de Solano de incluir Gil e Caetano em um programa “Jovem guarda” não funcionou: apesar das identidades de visão, para a audição (e para a audiência) eram muito diferentes os sons vanguardistas dos baianos e dos jovem-guardistas, no palco ninguém ficou à vontade e o público percebeu. Mas para Gil e Caetano foi importante, para marcar uma posição. Um dos programas “Frente ampla”, comandado por Geraldo Vandré, teve um número surpreendente, que marcou a amplidão da Frente: ele cantava a guerreira “Cipó de aroeira” com punhos cerrados e o rosto crispado em desafio, e Lennie Dale, que era seu grande amigo, dançava: “Madeira de dar em doido, “vai descer até quebrar, é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar.” Cantava Vandré pelo “grande amanhã”, pela hora da virada e da revanche. Todo de couro negro, estalando um chicote no chão e no ar, Lennie dançava à sua volta uma coreografia agressiva e sexy, que dava um estranho e imprevisto caráter sadomasoquista à canção política, que achei hilariante.

Na cobertura do “Véio”, ouvi pela primeira vez o disco que Sérgio Mendes tinha feito nos Estados Unidos com seu grupo Brazil 66. Era tão bom que até Ronaldo gostou. Duas sensacionais cantoras americanas cantando em português com um mínimo de sotaque, o que até dava um charme, e um grupo instrumental poderoso de músicos brasileiros, grandes arranjos, com o piano de Sérgio propondo uma jogada rítmica que integrava o samba-jazz com o pop americano e um grande repertório brasileiro. O disco estourou nos Estados Unidos com os hits “Mas que nada” e “Chove chuva”, de Jorge Ben, e uma versão de “Daytripper”, dos Beatles, em ritmo brasileiro. Sérgio acertou a mão: criou uma sonoridade coletiva original, uma jogada rítmica própria, que fazia cada música soar como se tivesse sido feita para o Brazil 66. Na verdade, as duas cantoras sensacionais eram uma: Lani Hall, baixinha e magrinha, com muito charme e uma voz poderosa, cheia de ritmo e sentido harmônico, uma grande cantora. A outra era linda, uma gatona, a louraça americana Karen Philip. 

Não que cantasse mal, Karen era afinada e tinha ritmo, e nos shows ao vivo, de microssaia, fazia uma grande dupla com Lani. Mas não era uma solista. Então, na maioria das faixas, as vozes eram de Lani, dobradas em estúdio. A de Karen entrava só para dar um sabor. Sérgio virou um superstar nos Estados Unidos. No Brasil, agradou a gregos e baianos, jazzistas e sambistas, era popular e sofisticado, e sobretudo tinha uma qualidade técnica de gravação impensável, inaudível no Brasil. Mesmo os que o diziam americanizado e vendido a Tio Sam reconheciam a sua qualidade, o ritmo irresistível da banda, a qualidade do repertório, a potência das vozes e a gostosura das cantoras.

Quando voltou vitorioso ao Rio para se apresentar pela primeira vez com o Brazil 66, Sérgio me convidou para ser o mestre-decerimônias do seu show, que superlotou o Teatro Municipal numa tarde de domingo, e terminou com uma ovação consagradora. Apesar do nervosismo, me senti honrado pela escolha: era o primeiro grupo brasileiro a invadir o pop americano, tinha prestígio e popularidade, era um orgulho nacional. Ser gravado por Sérgio Mendes e o Brazil 66 passou a ser meta prioritária de todos os jovens compositores e ele levou várias de Edu, Dory e Jorge Ben. No fim do ano, no início do verão carioca, Elis e Ronaldo se casaram na Capela Mayrink, que era mínima, um pequeno forno no meio da Floresta da Tijuca. Um caos, com fotógrafos, convidados e populares se atropelando e Elis entrando na igreja de véu e grinalda e abrindo caminho no meio da massa. Foi quando a ouvi gritar nervosa porque alguém tinha pisado na cauda do seu vestido: “Solta o meu rabo, porra!”

Depois foi o casamento civil, na nova casa que Elis tinha comprado na Avenida Niemeyer e onde eles já estavam morando. E brigando. Era toda branca, imensa, de estilo mediterrâneo, incrustada na montanha, de frente para o Atlântico. A casa encheu de convidados e jornalistas e meu pai e minha mãe estavam entre os padrinhos de Elis. Os noivos passaram três dias de lua-de-mel em Petrópolis e voltaram para o Rio no domingo para o clássico Fluminense e Botafogo. Na semana seguinte, Miele e Ronaldo inauguraram uma nova boate em São Paulo, o Blow Up, na Rua Augusta. Com um show de Elis.

Uma das maiores mudanças de Elis a partir de seu encontro com Ronaldo foi na sua música: logo que começaram a namorar, chamou Roberto Menescal, parceiro do “Véio”, e Luiz Carlos Vinhas, bossanovistas de primeira hora, para formar um grupo para acompanhá-la em temporada na boate Sucata, recém-aberta por Ricardo Amaral na Lagoa, com direção de Miele e Ronaldo. O repertório ficou mais leve, menos político, menos paulista, mais carioca, e surpreendentemente Elis cantou no show o que para ela e seu público seria impensável há pouco tempo: duas músicas de Menescal e Bôscoli, “A volta” e “Carta ao mar”. Porque Elis detestava bossa nova, gostava de jazz, samba e boleros. Tom Jobim era um caso à parte. Depois do festival do Rio, lançou um compacto com uma grande gravação da segunda colocada, “Travessia”, que tinha adorado (já conhecia Milton, de quem tinha gravado “Canção do sal”).

No outro lado, “Manifesto”, uma sátira engraçada de Guto Graça Mello e Mariozinho Rocha que misturava os desencontros do amor com os da política, dando grande impulso ao Grupo Manifesto. No seu primeiro Lp dessa nova fase, Elis gravou duas de Edu, quatro de Tom Jobim, uma de Gil, uma de Chico, um medley de sambas homenageando a Mangueira, um clássico de Bororó e “De onde vens”, uma letra minha que Dory musicou em vinte minutos e que se tornou um sucesso romântico, um hit de fim de noite e de corações solitários: “só quem partiu pode voltar e eu voltei pra te contar dos caminhos onde andei...”

Eu tinha 22 anos e não sabia bem o que estava escrevendo, mas com a mesma idade Elis sabia muito bem o que estava cantando e só aí entendi o que eu mesmo estava querendo dizer. O triunfo internacional de Roberto Carlos no Festival de San Remo com “Canzone per te” acabou com o “Jovem guarda”. Cantando a balada de Sergio Endrigo em impecável italiano, Roberto levantou o auditório e o júri e conquistou inédita vitória para as nossas cores. E sons. Roberto saiu consagrado do mais popular festival de música da Europa, virou uma estrela na Itália, ficou maior do que “Jovem guarda” e “O fino”. Juntos.

No aeroporto de Congonhas, uma multidão de fãs esperava, gritando, pela chegada do grande vencedor de San Remo. Quando subiram a escada do avião para abraçar Roberto, o empresário Marcos Lázaro, Paulinho Machado de Carvalho e Erasmo sabiam que a jovem guarda estava com os dias, as tardes de domingo, contados. No início, nada mudou: Roberto vitorioso fez o circuito dos musicais da emissora e voltou consagradoramente à “Jovem guarda”, em histórico programa, com todo o auditório cantando: “E tu, tu mi dirai, che sei felice come non sei stata mai...” Mas todo mundo percebeu que alguma coisa havia mudado.
Começava o reinado de Roberto Carlos, o artista mais popular do Brasil. Aos poucos, ele foi saindo da “Jovem guarda”, que se tornou apenas mais um entre vários programas em que se apresentava. O programa continuaria sem ele, comandado por Erasmo e Wanderléa. Na última vez em que Roberto se apresenta na “Jovem guarda”, em que não aparecia há semanas, Erasmo lança um dos maiores sucessos musicais do ano e um clássico instantâneo: “Sentado à beira do caminho” é a música de despedida, uma bela balada de abandono e de solidão, que era para o fim da “Jovem guarda” o que “Quero que vá tudo pro inferno” tinha sido para o início: “Preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo, que eu existo...”

O Brasil inteiro cantou com Erasmo, Bráulio Pedroso dedicou praticamente um capítulo inteiro de sua novela “Beto Rockeffeller” na TV Tupi, o maior sucesso do momento na televisão, a cenas mudas com o protagonista Luiz Gustavo andando pelas ruas de São Paulo ao som de “Sentado à beira do caminho”, um capítulo-clip. Erasmo e Wanderléa seguiram tocando “Jovem guarda” por mais alguns poucos meses, aos trancos e barrancos, sem Roberto, sem brigas, mas em clima de pesada melancolia. Só quebrado pela proposta dos dois Robertos, Carlos e Farias, para que Erasmo e Wanderléa participassem do novo filme de música e aventuras a ser rodado no Japão e em Israel: Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa. De repente, na vertigem daqueles tempos tropicalistas, tudo ficou muito diferente. Com o seu auditório incendiado, a Record passou a gravar os programas no Teatro Paramount, os musicais começaram a perder audiência, o calor das plateias já não era o mesmo, contratos começaram a não ser renovados, artistas começaram a ser dispensados,
“Jovem guarda” saía do ar.



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