segunda-feira, 11 de setembro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




32 - O túnel do fim

A noite de 19 de agosto de 1965, muito mais do que marcar o belo rosto de Dalva, marcou-lhe a vida. O começo do fim . Um de-sastre terrível. O Oldsmobile de minha mãe se desgovernou no Túnel Novo de Copacabana, subiu na calçada e matou quatro pessoas. Nuno estava com ela. Eles haviam acabado de jantar na Boate Drink, de Cauby Peixoto e do organista Djalma Ferreira, ex-namorado de Dalva, de quem Nuno sentia ciúme. Algumas pessoas disseram ter visto os dois discutindo, ao sair da boate. Acredita-se que estivessem brigando quando ocorreu o desastre. A relação deles era recente, menos de seis meses, e pouco aceita por nós. No desam - paro da separação de Tito, em sua desesperadora solidão, minha mãe se rendera às atenções desse jovem, que tinha mais ou menos a minha idade. Nuno entrara na vida dela como secretário e motorista e, nessa situação, se sentia frágil e inseguro de seu papel na relação. Daí o ciúme. Nuno estava ao volante e sofreu escoriações leves. Mas, ao perceber a extensão do acidente e achando que Dalva estava morta, apavorou-se. Ingenuamente, retirou Dalva do carro, toda ensanguentada e inconsciente, e informou aos policiais que era ela quem dirigia. O costureiro de Dalva, Walter, também estava no carro, mas não pôde esclarecer muita coisa, pois disse que estava dormindo no banco de trás. Minha mãe foi duramente processada pelas vítimas, e seu advogado, Virgílio Donicci, teve muito trabalho para esclarecer, por meio de perícia e um longo pro-cesso, que era Nuno quem dirigia o carro. A comoção que tomou conta das pessoas quando a notícia se espalhou foi impressionante. O desastre ocupou a primeira página de todos os jornais. No Hospital Miguel Couto, naquela madrugada, uma pessoa esperava sozinha, antes que qualquer parente ou amigo chegasse. Ansioso, chorava e pedia notícias aos médicos que transitavam pelos corredores. Era Mané Garrincha. Dono daquela simplicidade enorme, ao escutar no rádio a notícia, saiu correndo e foi o primeiro a chegar ao hospital. Quando me viu, foi dizendo: “Eu adoro ela! Vim pra ajudar. Faço qualquer coisa por ela!”. O Brasil inteiro torceu pela recuperação de Dalva, que esteve em coma durante alguns dias. O saldo do acidente foi penoso: afundamento do maxilar esquerdo, bacia Fraturada. A marca deixada na bochecha esquerda ficou horrível e, mesmo depois de algumas plásticas, não houve como recuperar a suavidade de suas feições. Não bastasse o resultado do acidente em seu rosto de artista e mulher vaidosa, minha mãe ficou desesperada quando soube que no acidente haviam morrido quatro pessoas. Depois do desastre no Túnel Novo, com todas as despesas que passou a ter, ela foi se enterrando em dívidas e problemas. Pouco trabalho, pouco reconhecimento do grande público, poucos shows e, principalmente, a ausência de frescor na carreira fizeram com que ela mergulhasse em uma tristeza pro-funda. Ou na garrafa de conhaque. Ad-vogados para enfrentar o processo das vítimas, pagamento às famílias, despesas com hospitais e remédios, era muita coisa para ela. Sem falar da reforma da casa, que ainda não tinha terminado. Em meio a esse clima, minha mãe re-solveu pedir ajuda à gravadora Odeon. Afinal, em seus momentos de glória, havia sido a número 1 em lucros para a companhia. Foi até o escritório do responsável pelas questões jurídicas da empresa, doutor Jessen, e ouviu-o dizer que, para receber algum dinheiro emprestado, mesmo em forma de adiantamento, ela teria de assinar um documento, abrindo mão de alguns discos. As músicas seriam escolhidas por eles. Isto é: Dalva “venderia” para a Odeon, em definitivo, algumas obras suas. Ela não acreditava no que escutava! Tentou argumentar que tinha filhos, sua obra seria um legado a eles e não seria justo ter de entregar parte do que havia gravado para o controle total da Odeon. Ela voltou para casa arrasada. Quando soubemos do assunto, mais arrasados ficamos por não termos ainda estrutura financeira para ajudá-la nesse momento. Bily, mais novo, estava começando a trabalhar. Eu casara havia pouco tempo e enfrentava as dívidas naturais de todo noivo. Além disso, vivia a corda bamba da carreira de cantor. Minha mãe voltou a conversar algumas vezes com o pessoal da gravadora. Foram ir-redutíveis. Sabiam que era a única saída dela. Após dias de discussão inútil, não suportando o peso dos problemas, ela entregou os pontos. E, assim, parte do que gravou — é claro que escolheram seus principais sucessos — hoje pertence à Odeon, companhia que ela ajudou a crescer e enriquecer com o brilhantismo de seu canto. Para compreender a mesquinharia desse gesto, é preciso que eu conte os valores dos contratos de minha mãe. Há alguns anos, tive acesso a esses contratos e fiquei surpreso com os números ridículos. No auge de seu sucesso, os percentuais de minha mãe variavam de 1% a 5%, valor máximo dado a ela nos contratos. E era por esses míseros percentuais que a gravadora estava lutando — não lhe bastavam os 95% que já tinha em seu poder. Minha mãe sofreu muito com esse episódio. Sentiu-se usada, desmoralizada artisticamente. Quem eram eles para julgar que ela nunca mais faria sucesso suficiente para pagar um empréstimo? O tempo — e o sucesso de “Máscara negra” e “Bandeira branca” — mostrou que eles avaliaram erradamente. Mas já era tarde para recuperar o que havia assinado. A partir daí, com aquelas mortes na lembrança, o rosto desfigurado, a autoestima completamente abatida, não foi mais possível para ela segurar a cabeça. Cada vez mais segurava o copo de conhaque. Era o começo de uma grande tragédia, como se não bastasse a que já havia vivido.



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