sábado, 16 de setembro de 2017

LAMENTO NEGRO COMPLETA 30 ANOS À ESPERA DE RECONHECIMENTO

Grupo lançara disco, livro, e doc para celebrar a data redonda

Por José Teles


Maia (à direita), num ensaio do Lamento Negro


Se o Lamento Negro não tivesse existido, Nação Zumbi talvez existisse, provavelmente com o mesmo nome, mas dificilmente com a mesma sonoridade. Chico Science, Dengue, Lúcio Maia e Jorge du Peixe (Pupillo chegaria com o grupo já formado e reconhecido), que moravam em Olinda e Casa Caiada, distante de Peixinhos, onde surgiu o grupo, certamente teriam feito música, provavelmente com o mesmo destaque que obtiveram, mas não é possível conjecturar que caminhos sonoros seguiriam.

A rota dos quatro foi modificada radicalmente, quando Gilmar “Bola Oito” Correia, convidou Francisco França, seu colega de trabalho, na Emprel, empresa processadora de dados municipal, para o ensaio de um bloco de samba-reggae do qual participava. O grupo era o citado Lamento Negro, que completa 30 anos em 2017 e se prepara para celebrar a efeméride com disco, documentário e livro. O lançamento está previsto para janeiro do próximo ano, na Festa dos Turbantes, a sua prévia no Clube Atlântico, em Olinda.

Tudo começou em 1987, com uma turma de Peixinhos que gostava de dançar break e curtir música negra americana. Um garoto da turma, chamado Nequinho, conheceu o Alafin Oyó, grupo olindense de afoxé, e ficou entusiasmado: “Ele disse para a gente, no Centro Social de Peixinhos, que tinha visto uma negrada dançando diferente do estilo nosso. A gente não tinha conhecimento de afoxé. Chegamos lá com cabelo black, de basqueteira, vestido de esquente, e dançamos break com os atabaques deles. Resolvemos fazer aquilo em Peixinhos, mas misturando com as coisas que a gente ouvia”, conta Osmair José, o Maia, um dos fundadores do LN.

Em 1987, o BRock ainda era a música que predominava nas paradas de sucesso, a música local era desprestigiada. Aqui ali havia bolsões de inquietude, sobretudo nos nichos de heavy metal e punk rock. Na Bahia fermentava-se a axé, e grupos afro de Salvador começavam a ser conhecidos além das fronteiras do estado. Os pernambucanos interessavam-se pelo recém-criado Olodum e desdenhavam os centenários maracatus, que só apareciam na imprensa no período carnavalesco e viviam há anos em crise.

“(O percussionista) Maureliano ouvia muito reggae, e sugeriu o nome, que veio dos Wailers, do grupo de Bob Marley, Os Lamentadores. A gente começou pegando o som dos tambores do Olodum, Muzenza, Araketu, fazendo samba-reggae, para desfilar no Carnaval de Olinda. Depois incrementamos com maracatu, coco de roda, rap, veio daí aquela misturada de ritmos”, continua Maia, então com 13 anos. Todos eram adolescentes, não tinham onde ensaiar nem instrumentos para tocar.

Ali perto havia a ONG Daruê Malungo, de Gilson José de Santana, Mestre Meia-Noite (também conhecido por Chau). Ele emprestou instrumentos e o espaço aos garotos, e ainda sugeriu que em vez dos tambores do Olodum, experimentassem as alfaias do maracatu. Os break boys de Peixinhos deixaram a black music em segundo plano, e se concentraram na cultura popular, que havia em fartura onde eles viviam, mas à qual, até então, não prestavam atenção. O Lamento Negro começou a sair no Carnaval de Olinda como um bloco de afoxé e samba-reggae, mas logo se tornou também uma banda, de onde saíram os batuqueiros do Chico Science & Nação Zumbi.


RECONHECIMENTO

Três décadas depois, o Lamento Negro ganha fôlego impulsionado pela data redonda, arregimenta novos integrantes, uma parceira, a baiana Conceição Fayola, encarregada de um caderno sobre a trajetória do grupo de viabilizar um documentário” “Sou do Ilê Ayê, nasci no Curuzu, onde fica a sede do bloco, e 99% dos moradores são negros. Peixinhos e Curuzu, Lamento e Ilê tem muito a ver, inclusive pela ligação com o samba reggae e o trabalho social que os dois grupos fazem. A grande diferença é que o Ilê tem uma sede grande, no Curuzu, com um dos melhores estúdios de Salvador”, diz Conceição.

Outra semelhança entre o Ilê e o Lamento Negro é que ambos começaram com influência americana. Os baianos inspirados pelo Black Panther Party (Partido da Pantera Negra, criado em 1966), e os pernambucanos pela black music, porém forjando uma identidade própria e brasileira. Mas as comparações param por aí. Além de continuar sem sede, o Lamento Negro não desfruta do mesmo prestígio do Ilê Ayê, que ganhou a sede no último governo de Antonio Carlos Magalhães na Bahia:

“Uma das coisas que a gente costuma falar: Pernambuco tem uma musicalidade antes e depois do Lamento Negro. Do grupo vieram Nação Zumbi, Coração Tribal, grupos de samba e os maracatus passaram a ter outra visibilidade. Antes ninguém sabia o que era uma alfaia. O que o Lamento Negro fez por Pernambuco não tem reconhecimento, isso sem nem falar do trabalho social, que tivemos que interromper porque a gente não tem sede para dar nossas oficinas. Tem o projeto Troque sua Arma por um Tambor, mas tivemos que limitar as oficinas”, queixa-se Maia. Conceição Fayola complementa:

“O Lamento Negro luta para continuar fazendo um trabalho social, estamos na casa Crer (Comitê Estadual de Promoção da Igualdade Étnicorracial) lá no Carmo, mas só vamos fazer oficinas de percussão, canto coral, e dança. Reduzimos porque para as crianças irem é distante, a gente preferia fazer em Peixinhos”.

Peixinhos ganhou visibilidade depois que integrantes do Lamento Negro foram incorporados à cozinha percussiva de Chico Science & Nação Zumbi, e por grupos como o Via Sat. O abandonado Matadouro do bairro foi reformado e rebatizado de Nascedouro, um centro cultural, onde o grupo gravou Toques das Nações, o disco dos 30 anos. “O Nascedouro de Peixinhos não tem mais o mesmo vigor de quando a gente chegou lá para trabalhar com cultura. O teatro está fechado, o prédio está ameaçado. Tem um conflito, porque fica em Olinda, mas quem administra é o Governo do Estado, o Centro Tecnológico de Cultura Digital. O que acho triste é que já veio ali tantas pessoas importantes culturalmente, Afrika Bambaata, Gilberto Gil, um monte de gente, e está daquele jeito”, comenta Maia.

O estúdio de gravação, felizmente, continua sendo utilizado. A música que o Lamento Negro gravou para o próximo álbum foi registrada lá, onde também está sendo feita a mixagem. Nena Queiroga, Almir Rouche, Isaar, Adelson (vocalista do Ilê Ayê), Zé Brown, Gilmar “Bola Oito” Correa, do Combo X, são alguns dos convidados do disco. “Otto iria participar, mas depois que lançou o disco novo ficou sem agenda”, diz Maia, lembrando que Otto também foi batuqueiro do Lamento Negro:

“Ele chegou no ensaio do Lamento levado por Chico Science, até 1992 tocava com a gente”. Maia diz que não convidou ninguém da Nação Zumbi para participar do disco porque o grupo se distanciou de Peixinhos. Acha que seria diferente se Chico Science ainda estivesse na banda: “A primeira gravação nossa foi uma demo que fizemos com Chico, ele cantando A Cidade. Gravamos duas músicas para botar no CD Rock de Elcy (da loja CD Rock). Mesmo depois de ficar famoso, quando voltava das viagens com a banda, vinha em Peixinhos, tomava uma com a gente. Igual àquela música dele, Passeio no Mundo Livre, que diz ‘Eu só quero andar, nas ruas de Peixinhos’. Chico está até hoje com o Lamento, acho que ele não deixou a gente nunca”

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