segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




04 - Primeiros tempos


Ao conhecer minha mãe, completamente apaixonado, Herivelto quis logo viver com ela. Dalva, sozinha no Rio, totalmente envolvida por Herivelto, pelo papo inteligente, deslumbrada com sua musicalidade, seduzida por seus olhos azuis, perdidamente apaixonada, aceitou a proposta. Uma proposta indecente para a época, pois dá para imaginar o escândalo nos anos 30: duas pessoas viverem juntas, sem casar?! Dalva chegara a mentir para a família em São Paulo, dizendo nas cartas que já estava casada com Herivelto. A situação financeira dos dois era terrível. Vindos havia pouco tempo de suas cidades, estavam começando a conquista da capital. Assim, embalados pela paixão, uniram suas pobrezas e, mais importante, sua musicalidade e seus sonhos. Os primeiros endereços do casal: rua do Lavradio, rua Pedro I, rua Silva Jardim, rua dos Inválidos, verdadeiros muquifos em volta da praça Tiradentes. Quando nasci, em outubro de 1937, meus pais moravam na rua do Senado, na Vila Rui Barbosa, em quarto alugado na casa de um alfaiate. Viveram assim um bom tempo, em cabeças de porco, pardieiros. Minha mãe lavava as camisas de meu pai e até os ternos de linho em banheiras. Passava nossas roupas em cima da cama. Cozinhava em espiriteiras a álcool, cuidava de mim e ainda cantava ao lado de meu pai, iniciando a carreira do Trio de Ouro. O dinheiro era escasso, trabalhavam em espaços chinfrins, circos, boates nos subúrbios do Rio. Somente em 1938 começaram a se apresentar nas rádios, o grande veículo de divulgação e valorização do artista na época. Não havia arrecadação de direito autoral; a venda de discos engatinhava. Para se ter ideia do incipiente mercado da época, os artistas tinham de vender quinhentas cópias de um 78 rotações para ter direito à gravação de outro disco. E não era nada fácil vender essas quinhentas cópias… Assim, o aluguel barato daquelas casas de cômodos era o que conseguiam pagar. Hoje, para quem lê esta história, aqueles lugares podem parecer pitorescos. Mas não era brincadeira. Morávamos em casarões velhos,
malconservados. Muitas vezes, não havia quartos separados para cada família. Penduravam-se lençóis ou cobertores num arame, nos cômodos maiores, e cada família morava de um lado. Foi nessas condições que meu pai trouxe Nilo Chagas para morar conosco. Nilo morava muito longe, dificultando o trabalho do Trio. Meu pai estendeu um arame no meio de nossa casa, ou melhor, de nosso quarto, e conseguiu com Dudu Olimecha um pedaço de lona de circo para dividir o cômodo. De um lado, a família Martins; do outro, Nilo. Minha mãe contava que eu tinha paixão por ele e que a primeira palavra que pronunciei, antes mesmo de papai ou mamãe, foi Gangá, o apelido que dei ao Nilo. Era ali naquele cômodo que recebiam os amigos, todos também começando suas vidas. Dorival Cay mmi, recém-chegado da Bahia, contou-nos que me conheceu num bercinho humilde, nessa casa em que Nilo morava conosco. Lembrou-se da camaradagem que unia a todos na dureza e na boêmia dos arredores da praça Tiradentes. Caymmi ficava impressionado com a
elegância deles, mesmo morando desse jeito. Como no quarto havia um armário muito pequeno, de uma porta apenas, meu pai conseguiu um espaço no guarda-roupa do Teatro Carlos Gomes para guardarem as melhores roupas. Quem também visitava meus pais era a atriz Zezé Macedo, muito amiga de minha mãe. Como quase todos no meio musical vivem me dizendo que me carregaram no colo, Zezé quando me encontrava gostava de ir além e dizia que me conheceu na barriga de minha mãe. Ao saber que eu estava em busca dos amigos de meus pais, ela me procurou e ofereceu uma carta-poema, linda, escrita para Dalva, depois de visitá-la no hospital, em 1971. No poema relembra que bordou uma camisa-pagã para mim nesse tempo distante. Vou mostrar um pouco da doçura de Zezé: “Dalva, (…) Penso em você Tão jovenzinha e linda… Cantava, o olhar distante, Uma balada, inspirada No amor de alguém, Apaixonado e amado. Depois, eu lhe pedia: ‘Cante o Itaquari!’ E você atendia, E eu, feliz, sorria. Mas um dia, entendi: Você já andava suspeitando Que a cegonha chegasse Trazendo-lhe o Pery…” Depois que Nilo se mudou para um quarto na Piedade, meu pai concordou que minha mãe começasse a trazer a família para morar com eles, mesmo ainda em situação difícil. Primeiro veio a mãe, Alice, com a irmã de Dalva, Margarida. Depois vieram as outras irmãs, Lila e Nair. Morávamos na rua Pedro I numa casa miserável. Dormíamos todos juntos, no chão, separados apenas pela lona do circo. Ao lado deles, minha tia Lila recorda que morava um rapazinho, muito simpático e falador, com um sorriso que cativava a todos. Seu nome: Sílvio Santos. Hoje, o grande apresentador de TV e dono de uma das mais importantes redes de TV do país. Eram todos guerreiros unidos na mesma batalha: a conquista de um lugar ao sol. A busca da dignidade no viver. Daí fomos para um apartamento um pouco melhor na rua Campos da Paz. Confesso que lembrar toda essa pobreza me traz uma sensação, física até, de náusea. E hoje, depois de tanto tempo, quando passo por qualquer lugar desse tipo, com lixo em volta, de imediato me vem à mente um cheiro de rato insuportável. Esses cheiros e o pavor enorme de baratas vão me acompanhar até a morte. São sensações muito fortes. Mesmo não tendo idade para recordar todos os detalhes, ficaram marcas que jamais vão e apagar. Eu já era nascido, mas meus pais ainda ão haviam casado. Só vieram a se casar tempos depois, em 1939. Um grande amigo e conselheiro de meu pai foi quem o incentivou a tomar essa atitude: Benedito Lacerda, flautista e compositor, seu parceiro em “A Lapa”, gravada em 1950 por Francisco Alves. Afinal, argumentava Benedito, já tinham um filho, outro estava a caminho, a moça precisava ter uma segurança, a família começava a aumentar. A música “Ceci e Peri”, composta por Príncipe Pretinho, a primeira gravada pelo Trio de Ouro, deu origem a meu nome. Meu pai, espírita e muito ligado à coisa indígena, dizia, antes mesmo de eu nascer: “Se for homem, meu primeiro filho se chamará Pery ; se for mulher, se chamará Cecy, assim, com y”. Acho que por essas ideias, ao nascer meu irmão, quase três anos depois, ele lhe deu o nome de Ubiratan. Mas minha mãe contava que, desde pequeno, eu o chamava de Bily. Não saía o Ubiratan. Todos em casa passaram a chamá-lo assim. Muita gente acredita, e encontro até publicado na imprensa, que a origem de meu nome se deu por meio de concurso organizado por meus pais, no programa de rádio de César Ladeira. Puro folclore. Basta lembrar que nasci pouco tempo depois que meus pais se conheceram, quando não eram nem um pouco famosos e ainda não tinham nenhum acesso aos radialistas importantes. Minha mãe gostava de lembrar um fato muito especial para ela, quando me amamentava ao peito: tinha tanto leite que conseguia amamentar outras duas crianças, muito pobres, nossas vizinhas na casa de cômodos. Dizia orgulhosa que não teriam sobrevivido sem o seu leite. Muitas vezes, ao ir trabalhar com meu pai, naqueles lugares simples do começo de carreira, e não tendo quem cuidasse de mim, entrava no palco comigo nos braços: um lenço cobria minha cabeça e seu seio desnudo. Enquanto cantava, eu mamava. A praça Tiradentes foi se tornando o reduto de meu pai. Na esquina onde hoje fica o Café Thalia, em frente do Teatro Carlos Gomes, se reunia toda a música brasileira. Herivelto “batia o ponto” todas as noites. Ficava por lá até altas horas, batendo papo, em pé ou sentado a uma mesa, esquecido da vida. Ou melhor, fazendo vida. Desse grupo de boêmios, Herivelto foi um dos primeiros a ter carro: um Ford azul, ano 1930/32. Muito vaidoso, desfilava com ele pela praça. No tempo do racionamento por causa da guerra, não havia gasolina disponível para os civis. Surgiu então um tipo de combustível chamado gasogênio. Para adaptar na traseira do carro a geringonça — dois enormes botijões —, era necessário levar o carro à oficina. Os botijões se pareciam com esses cilindros grandes de gás. Me impressionavam muito, porque eram pretos, feios, antiestéticos e ocupavam toda a traseira do carro. Aquela geringonça funcionava como uma espécie de maria-fumaça. Esquentava demais e no verão era um inferno. Mas, em compensação, no inverno de São Paulo era delicioso. Quando em São Paulo ainda existia inverno. Muitas vezes, ao sair de algum show, com minha mãe e até comigo no carro, meu pai dizia que ia dar só uma “passadinha” pela praça Tiradentes. Entrava nos bares e… esquecia-se de tudo. E a gente esperando por ele, no carro. Horas a fio. Se estivessem num clima legal, minha mãe esperava pacientemente. Senão, era mais um motivo para briga. Mandava chamá-lo ou, pior, ia pessoalmente buscá-lo. O trabalho ia melhorando, a praça Tiradentes era agora só para boêmia: não morávamos mais por lá. Meus pais haviam alugado um apartamento na General Galvão, no Rio Comprido, só para nós, sem a família de minha mãe. Meu avô havia vindo de São Paulo e já possuíam sua própria casa. Era um apartamento mais decente, onde tínhamos nossos quartos separados. Passou a ser frequentado por amigos, artistas, pessoas que mais tarde se tornariam grandes nomes do cenário artístico nacional. Os nomes de Dalva e Herivelto foram se tornando conhecidos, os shows se sucediam, o Cassino da Urca começou a chamá-los como freelances, sem contrato fixo. As apresentações do Trio de Ouro agradavam. Seus discos eram cada vez mais bem recebidos pelo público. Nessa época, o maior divertimento das pessoas estava no rádio, não havia ainda a televisão. As famílias se reuniam em suas salas para ouvir o rádio. Era a maior fonte de informação e de lazer. Curtiam seus artistas, dançavam ao som de suas músicas, se abasteciam das novidades que discutiriam no trabalho, nos bares, no dia seguinte. O grande momento dessa reunião era a Hora do Brasil. O famoso programa tinha um tom solene, importante. Completamente diferente da modorrenta Hora do Brasil de hoje, mais conhecida como “hora de colocar a fita no som”. Líder total de audiência, poderíamos comparar o programa ao Jornal Nacional, nos seus áureos e distantes tempos e 80% de Ibope. Na Hora do Brasil havia um espaço muito disputado pelos artistas: de vez em quando a direção convidava algum para entrar no ar com uma música. Era uma grande honra: o Brasil inteiro ouviria. Todos queriam ser convidados. Caso não se lembrem, até hoje o tema musical da abertura do programa é um trecho da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. E o sucesso do Trio de Ouro, “Ceci beijou Peri”, fazia uma adaptação popular daquele trecho da ópera. Por essa feliz coincidência, começaram a ser convidados com frequência  de ter ido com eles muitas vezes.  Hora do Brasil era transmitida ao vivo do prédio onde hoje fica a Câmara dos Deputados, na rua Primeiro de Março. Não sei se na época já era a Câmara. Não havia orquestra. O conjunto de Benedito Lacerda acompanhava os artistas. Dino e Meira arrasavam nos violões. Havia nos anos 40 um mercado de trabalho diferente do atual. Nos melhores cinemas apresentavam-se shows musicais ou humorísticos, num palco em frente das telas. Antes do início ou no meio das sessões, fechava-se a cortina, puxava-se o piano, e os shows aconteciam para o público que assistiria logo depois aos filmes de Douglas Fairbanks, Rita Hay worth, Glenn Ford, Mary Pickford, os mitos do cinema da época. O Trio de Ouro fez muitos desses shows, num grande vaivém pela cidade, porque às vezes se apresentavam em dois cinemas na mesma noite. Chegaram a cantar ao lado de Chico Alves, em cinemas do Rio e de São Paulo. Viviam sempre numa grande correria: não se podia perder a hora, era tudo ao vivo, fosse nos cinemas, fosse transmitido pelo rádio.




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