segunda-feira, 28 de agosto de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




30 - Getúlio, Juscelino, Ademar: Amizade com o poder

Com sua inteligência e humor ferino, meu pai era muito requisitado pelos grandes políticos da época. Frequentava palácios e gabinetes. Sua capacidade de falar ao povo atraía os políticos, que lhe pediam músicas — na maioria das vezes, marchinhas de Carnaval — para suas campanhas. Foi assim com Getúlio Vargas, por quem foi recebido muitas vezes no Palácio do Catete. Numa delas, no início de sua separação de Dalva e afastado da Rádio Nacional, meu pai e alguns artistas estavam num bate-papo animado com o presidente, quando Getúlio perguntou: “Herivelto, como é que vai a nossa Rádio Nacional?”. Meu pai, meio surpreso pela falta de informação do presidente, respondeu: “Deve ir bem, meu presidente. Não sei muito o que acontece por lá, porque meu contrato não foi renovado”. “Isso não é possível! Um artista como você não pode estar fora da Nacional. Você é um dos nossos patrimônios culturais!” Alguns dias depois, meu pai recebeu um telefonema de Vítor Costa, diretor da Rádio Nacional, todo meloso: “Herivelto, você anda sumido. Vê se aparece pra conversarmos. E olha, Herivelto, dinheiro não vai ser problema pra gente acertar sua vida aqui, tá bom?”. E assim aconteceu a volta de Herivelto à Rádio Nacional. Outro político que lhe pediu músicas para suas campanhas foi Ademar de Barros. A composição “A caixinha do Ademar”, feita para a campanha à presidência da República de 1950, que ele não venceu, foi gravada por Nelson Gonçalves com o pseudônimo de Quincas Gonçalves.

Quem não conhece
Quem não ouviu falar
Na famosa caixinha do Ademar
Que deu livro
 Deu remédio
Deu estrada
Caixinha abençoada
Já se comenta de norte a sul
Com Ademar tá tudo azul 

Outras duas músicas da campanha de Ademar foram gravadas por Araci de Almeida, também com pseudônimo. Não sei bem como era o acerto dele com os políticos, mas me lembro de que na época ele andava com a ideia fixa de ter um avião. Não deu outra. Quando Ademar perguntou a meu pai o que que-ria, ele disse: “Quero um avião!”. E o governador ofereceu a ele e a Benedito Lacerda, seu parceiro, um Junker, que devia ser da Vasp. Era um avião de três motores, um no bico e dois nas asas. Foi um alvoroço. Meu pai ficou todo prosa, porque era dono de um avião. E a gente, na maior empolgação, torcendo para chegar logo o dia em que nos levaria para dar uma volta. Lembro que uma das vezes em que fomos convidados para um passeio no avião estávamos em São Paulo. Mal levantou voo no aeroporto de Congonhas, tivemos de retornar, pois a torre avisara que havia caído um pedaço do avião. Fomos ver e era a tampa do reservatório de combustível que havia se soltado. Foi um susto e tanto. Logo passou o entusiasmo de meu pai e Benedito — descobriram que sustentar um avião não era para qualquer um . Tentaram fazer de tudo com o aparelho: carga, turismo, passeio, transporte… Algum tempo depois desistiram e passaram adiante aquele monstro por 200 mil cruzeiros, uma nota na época. Também o presidente Juscelino Kubitschek era muito amável com os artistas e apreciava estar com meu pai. Ele gostava muito de música e de dançar e convidava os compositores da época com frequência para irem ao Palácio do Catete. Papos agradáveis rolavam e saraus musicais aconteciam . Numa dessas reuniões, meu pai foi convidado a visitar Brasília, que ainda não passava de um grande projeto e muitas máquinas levantando poeira. Outros artistas foram junto, entre eles Dilermando Reis, Ataulfo Alves, Grande Otelo, Onéssimo Gomes. Na sede do governo em Brasília, o Catetinho, Juscelino falou bastante do seu projeto aos artistas, abraçado a meu pai. Explicou a importância de sua obra e, apontando uma poeira que se levantava a alguns quilômetros adiante, disse: “Herivelto, tá vendo a poeira que cobre aquela máquina gigantesca? Lá vai ser a maior avenida de Brasília, a W3. Quero que você vá lá, escolha um terreno, qualquer um, e diga pro meu assessor aqui”. Mesmo tendo de pagar o equivalente, hoje, a 50 reais por mês, meu pai fez pouco-caso daquele papo do presidente. Não acreditou na obra, não enxergou o futuro. E hoje não sou herdeiro de um terreno na avenida W3, em Brasília. Teve outra história parecida. Ele era amigo do prefeito de Angra dos Reis, que o adorava, e foi convidado para passar um fim de semana com ele. Quando estavam lá, em meio a muita cantoria e alguns drinques, o político, todo orgulhoso de sua cidade, ofereceu a meu pai: “Herivelto, posso te oferecer uma ilha aqui em Angra!”. “Ilha?” “Claro, uma ilha. Angra tem centenas e eu ainda posso te oferecer uma!” “Muito obrigado, senhor prefeito, mas o que eu faria com uma ilha? Muito obrigado.” E, mais uma vez, não sou herdeiro de uma ilha em Angra dos Reis. Este era o meu pai, um homem completa-mente sem visão para o mundo prático. 




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