segunda-feira, 21 de agosto de 2017
MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*
29 - Rádio Nacional
Nos anos de 1940-50, não eram as gravador-as o grande suporte dos artistas, mas sim as rádios. Elas davam trabalho com a intensa programação ao vivo em seus auditórios. Contratavam os melhores com exclusividade. Ter um contrato desses era motivo do maior orgulho entre os artistas. E a certeza do sustento assegurado. Em 1942, o Trio de Ouro assinou o primeiro contrato com a cobiçada Rádio Nacional e começou a consolidar o prestígio junto ao público. As apresentações eram disputadíssimas pelo auditório. Numa época em que os artistas se apresentavam parados em cena, meu pai, sempre inovador, dirigia as apresentações do Trio de Ouro de forma quase teatral, com marcações rigidamente obedecidas por Dalva e Nilo. Muito caprichoso com os figurinos, Herivelto fazia dos números do Trio um verdadeiro show. Ao retornar da Venezuela, meu pai começou a direcionar sua vida sem Dalva. Quando foi participar ao diretor da Nacional, Vítor Costa, o fim de seu casamento e a saída de Dalva de Oliveira do Trio de Ouro, além de pedir um tempo para providenciar outra cantora, meu pai viu se concretizar o que tanto temia (e tanto adiara!): “Nem pensar, Herivelto. Nosso contrato é com o Trio. Não existe Trio de Ouro sem Dalva de Oliveira! E, sem Dalva, não tem contrato ”. Numa tentativa frustrada, Vítor Costa ainda procurou convencer Herivelto de continuar na rádio as apresentações do Trio com Dalva, em cumprimento ao contrato. Em vão, meu pai não era homem para se convencer de nada. E já havia tomado uma atitude. Imagino como ficou ferido em seus brios para agir como agiu, diante da tão poderosa Nacional. “Nada disso! O Trio de Ouro é criação minha. Faço com ele o que bem entender. Fui eu quem inventei a Dalva. Invento outra. Sempre trabalhei, com Dalva ou sem Dalva. Podem ficar com quem quiserem .” E saiu batendo a porta. Pagou um preço caro por isso. Obviamente, a direção da rádio fez questão de manter Dalva em seu cast, dando-lhe um contrato assim que retornou ao Rio, vinda de Belém. O caminho dos meus pais começava a se dividir. Na Rádio Nacional, o elenco era fantástico. O cast contratado compunha-se de 98 artistas. A rádio mantinha contratadas — prestem bem atenção! — cinco orquestras (sob o comando dos maestros Radamés Gnattali, Lírio Panicali, Leo Peracchi, Ercole Vareto e Chiquinho (Francisco Duarte), ou seja, um quinteto formado por feras) e um conjunto regional. Vivia-se uma época de ouro na história musical do país. Não me lembro de ir muito à Rádio Nacional com meu pai, mas me recordo com clareza das idas frequentes com minha mãe, já cantando sem o Trio. Marlene, Francisco Alves, Ivon Curi, Emilinha, Cauby Peixoto, Heleninha Costa, Luís Gonzaga, Gilberto Milfont, Ellen de Lima, Zezé Gonzaga, José Garcia, Gregório Barros, Carmélia Alves, Orlando Silva, Os Cariocas, Quatro Ases e Um Coringa, Trio Irakitan, Trio Nagô, Francisco Carlos, Blecaute, Risadinha, Jackson do Pandeiro, Trigêmeos Vocalistas, Neuza Maria, Linda Batista, Dircinha Batista, Maestro Chiquinho, Orlando Dias, Adelaide Chiozzo, Gilberto Alves, Deo, Carlos Gal-hardo, Ester de Abreu… peço perdão por não me lembrar de muitos outros. Todos fizeram parte da minha vida. A Rádio Nacional nos anos 50 era um grande celeiro de craques da música e tive o privilégio de assistir de perto a esse momento especial. Acostumei-me a vê-los, ao acompanhar minha mãe aos sábados, no programa César de Alencar, aos domingos, no programa de Paulo Gracindo, e nas quintas, no programa de Manoel Barcelos. Nessa convivência, com intuição de criança, sentia quem era sincero com minha mãe e quem era falso diante do que passávamos. Mas, de maneira geral, to-dos a apoiavam e lhe dedicavam um carinho especial. A imagem do auditório da Rádio Nacional é marcante para mim . O clima era de festa! Nos corredores, todos se falavam e se confraternizavam, contando as últimas novidades. Alguns se estranhavam . Não deixava de ser uma “fogueira de vaidades”. O burburinho do público no auditório para seiscentas pessoas era contagiante. Aquele espaço podia “fazer” um artista ou derrubá-lo. Foi nesse auditório frenético que nasceu a expressão “macaco de auditório”, que considero de muito mau gosto. Minha mãe também deplorava essa expressão. Nessa convivência com os maiores ícones da Nacional, as minhas lembranças mais fortes, fora meus pais, são de dois artistas não tão badalados na época, mas com tamanho talento que se perpetuaram através desses cinquenta anos muito mais que alguns astros daquela época. Falo de um rapazinho tímido, franzino, humilde até, sempre pelos cantos, tocando um violão maravilhoso: era o Garoto. Sua música me impressionava. Ficava extasiado escutando-o dedilhar o instrumento. Um dia, vi-o sozinho num dos estúdios Ismael Neto. Curioso como toda criança, me aproximei e fiquei ouvindo-o tocar uns acordes lindos. Repetidamente, ele tocava a mesma canção. Estava começando a compor uma música muito suave. Nascia “Valsa de uma cidade”. Mais tarde, Ismael receberia a ajuda de Antônio Maria na criação da letra. Quando chegava com minha mãe à porta da Rádio Nacional, a fila dos fãs já estava enorme, virava o quarteirão. Ela levava mais de vinte minutos da porta do carro, um lindo Jaguar prateado, até chegar ao elevador. Era uma loucura o assédio, todos gritando: “Dalva! Dalva! ”. Todos queriam tocá-la, beijá-la. Minha mãe era muito paciente e gentil. Tinha grande amor por seus fãs. Permitia que a tocassem, mas, muito vaidosa, pedia para não amassar suas roupas, pois ia entrar em cena. Eram fãs de todo o Brasil, oferecendo ad-miração pelo seu canto especial e, mais ainda, total solidariedade à mulher que se separara do marido, rompendo de forma tão corajosa um relacionamento traumático. Naquele início dos anos 50, minha mãe estava provocando, sem ter consciência disso, um dos maiores fenômenos de identificação de massa já observados em nosso país. Sub-missas aos maridos, em casamentos sem a menor qualidade e até violentos, vivendo sob o jugo do preconceito da sociedade, que não lhes permitia romper com nada disso, essas mulheres projetavam em Dalva seus problemas de vida e invejavam -lhe o grito de liberdade. Mesmo no auge da disputa dos fã-clubes de Marlene e Emilinha Borba, minha mãe era querida por todos. Sem nenhum pudor, posso afirmar que Dalva de Oliveira representava uma unanimidade no cenário artístico brasileiro. Hoje, quando retorno à Rádio Nacional, sinto o coração apertado. Entristeço-me com o aspecto decadente de suas instalações ao recordar a decoração do 19o andar, a sala suntuosa do presidente Vítor Costa, com seu tapete fofo, as poltronas de couro e lambris de madeira de lei. Outra sala chique era a do diretor de programação, Floriano Faissal, no 21o andar, onde os artistas mais importantes eram recebidos. Minha mãe tinha sempre as portas abertas nessas salas e era recebida com deferência. Como crianças, Bily e eu aproveitávamos bem toda aquela mordomia: era lanchinho, colinho de gente famosa, muitos paparicos. Sempre digo: nenhuma criança passou por colos tão variados quanto a gente. Por onde ando neste país, escuto: “Conheci tua mãe. Você era pequenino e te peguei no colo”. Se o papo for com artistas da época, en-tão, eles ainda se recordam de uma historinha que entrou para o folclore da família. Minha mãe, ao fazer os exercícios de aqueci-mento da voz (os “vocalises”), desenvolveu o hábito de treinar assim: “PERÍ-Í-Í. PERÍ-Í-Í”. Todos riam quando a escutavam . E eu, se estivesse longe, voltava correndo para perto dela, me sentindo o máximo! Edith, fiel escudeira de minha mãe, conta que, anos mais tarde, num momento profissional ruim, com pouco trabalho e tendo de pagar uma parcela intermediária da casa de Jacarepaguá, Dalva recorreu ao diretor da Nacional, Vítor Costa, pedindo um empréstimo. Com especial carinho por minha mãe, Vítor disse que a quantia estava à disposição. Edith foi encarregada de buscar o cheque. Foi muito bem recebida e ainda escutou: “Diga à nossa eterna Rainha do Rádio para não se preocupar em devolver. É um presente de coração”.
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