segunda-feira, 14 de agosto de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




28 - Que Rei sou eu?

Meu pai tentava reorganizar a vida com Lurdes e retomar a carreira. Devido aos capítulos no Diário da Noite, amargava uma situação difícil — a segunda versão do Trio ia perdendo a credibilidade e o carinho do público, dia a dia, show a show. A atitude de contar em capítulos a vida com minha mãe deixou marcas muito feias. E revelou uma faceta que o fez se arrepender muito: a de homem ressentido, que reagira ao descobrir que a ex-mulher podia existir artisticamente sem ele e, pior, fazer sucesso! A primeira consequência foi ficar sem contrato com a Rádio Nacional, a número um, que preferiu Dalva de Oliveira a uma re-montagem do Trio de Ouro. Ele foi então para a Rádio Tupi. Mas sempre se consider-ou muito injustiçado pelo pessoal da Rádio Nacional. Contava que até contrataram pessoas para vaiá-lo num Festival de Carnaval no Teatro João Caetano, do qual participou com o Trio de Ouro e Nelson Gonçalves, de-fendendo a música “Ai, morena”. Orgulhava-se muito da forma com que enfrentara toda a vaia. Ordenara a Nilo e Noemi que ficassem no fundo do palco e mantivera-se na frente, ousadamente jogando beijos e curvando-se ao público em agradecimento, como se estivesse sendo aplaudido. Vendo aquela cena, Nelson Gonçalves, companheiro de tantas jornadas, também foi para a frente do palco e postou-se ao lado de Herivelto, até que a vaia foi diminuindo, o público começou a aplaudi-los e eles puderam cantar. Meu pai se gabava de sua experiência com plateias, aprendida no circo, que o fez sair-se tão bem nesse incidente. Mas, em seu egocentrismo, costumava “esquecer” a participação de Nelson na história quando a contava. Avaliando esse incidente hoje, o que me parece é que ninguém pagou para vaiar ninguém . Foi ele mesmo quem desencadeou a confusão e a gritaria, ao narrar pelos jornais a vida a dois, com a ajuda do jornalista David Nasser. Isso sim provocou a ira e a revolta do grande público, que até pouco tempo antes não se cansava de aplaudi-lo no Trio de Ouro, ao lado de Dalva. Foi essa narrativa e o samba “Caminho certo” que provocaram um ódio tão grande no público a ponto de não mais respeitá-lo como o grande compositor que era. O que fazia com que a vida e a carreira de meu pai fossem um pouco melhor eram o Carnaval e a sua Escola de Samba de Salão. Tudo o que se relacionasse a isso o absorvia muito: a seleção das mulatas e ritmistas, a escolha do repertório e dos figurinos, ideias novas para os shows, tudo era feito com amor e cercado de alegria. Como os participantes da escola eram pessoas humildes, não se preocupavam em analisar o que Herivelto fazia de sua vida. Para eles, meu pai era apenas o grande compositor, o patrão que oferecia a chance a quem jamais havia imaginado pisar em certos lugares, como restaurantes, boates ou hotéis cinco-estrelas. E muito menos conhecer o país, levando sua arte em cima dos palcos. A Escola tinha esse clima. Muita animação, alegria e, acima de tudo, disciplina, porque meu pai, como já disse, era homem de “enfrentar os crioulos”. Era realmente durão. Mas ai daquele que fizesse alguma coisa contra qualquer um dos componentes. Ele os protegia como se fossem seus filhos. Ou até muito mais! Não aceitava que se referissem a eles como negros, de modo pejorativo. Eram artistas, eram músicos. Somente ele podia, carinhosamente, chamá-los de crioulos ou crioulas. Uma vez, em um hotel de Maceió, não querendo hospedar negros, disseram que havia lugar somente para Herivelto. Ele não titubeou: foi para outro hotel com todos eles. Além da escola de samba, Herivelto foi se dedicando às composições, com a parceria cada vez mais intensa com David Nasser, e ao mundo político do autor, que ele começava a descobrir e a participar. Como era um guerreiro em potencial, não se deixava abater. Para o compositor que perdera sua intérprete maior, criar músicas para Nelson Gonçalves em parceria com David Nasser era uma grande válvula de escape — além de ótima fonte de renda, pois Nelson estava es-tourando em todo o Brasil, sendo chamado de “gogó de ouro”. Para ele meu pai entregou “A camisola do dia”, “Nega manhosa”, “Pensando em ti”, “Atiraste uma pedra”. De-pois, aderindo à era do tango, ele e David compuseram “Carlos Gardel”, “Vermelho 27”, “Hoje quem paga sou eu”, além da homenagem do samba-canção “Francisco Alves”, todas gravadas por Nelson. “Caminhemos” havia sido lançada em 1947 por Francisco Alves, mas ao ser re-gravada por Nelson Gonçalves, em 1951, foi espontaneamente incorporada pelo grande público à polêmica musical devido ao seu tema.

Não, eu não posso lembrar que te amei
Não, eu preciso esquecer que sofri
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois
Vida comprida, estrada alongada 
Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada
Vou indo caminhando
Sem saber onde chegar
Quem sabe na volta
Te encontro no mesmo lugar

Dessa forma, meu pai foi conseguindo manter o prestígio. Afinal de contas, não havia perdido o talento e a força de compor. Entregou também alguns sucessos a uma cantora que despontava para o estrelato e que dizia, sem nenhum receio, que sua fonte inspiradora e sua grande mestra na arte de cantar era Dalva de Oliveira. Seu nome era Ângela Maria, a quem meu pai deu “Recusa”, um bolero que fez sucesso, mas não tanto quanto a música dedicada ao Dia das Mães, feita em parceria com David, no fim dos anos 50 e também gravada pela Sapoti. Com uma linguagem muito simples, “ Mamãe” foi um estouro na praça e se tornou um verdadeiro hino às mães, em qualquer classe social. Mas comenta-se que David não queria escrever o que meu pai pedia e que Herivelto, com seu feeling popular, teve de insistir muito. Ela é a dona de tudo Ela é a rainha do lar Ela vale mais para mim Que o céu, que a terra, que o mar Ela é a palavra mais linda Que um dia o poeta escreveu Ela é o tesouro que o pobre Das mãos do Senhor recebeu Mamãe, mamãe, mamãe Tu és a razão dos meus dias Tu és feita de amor e esperança Ai, ai, ai! Mamãe Eu cresci, o caminho perdi Volto a ti e me sinto criança Mamãe, mamãe, mamãe Eu te lembro, chinelo na mão O avental todo sujo de ovo Se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe Começar tudo, tudo de novo Pode-se imaginar que, à medida que as canções da polêmica musical eram lançadas, o clima entre meus pais se transformou em guerra. A população, sempre atenta ao meio artístico, se dividia em suas preferências por um ou por outro. Na verdade, mais por Dalva, como os jornais da época demonstram . Movida pelos capítulos no Diário da Noite e pelo lançamento do samba “Caminho certo”, essa guerra contra minha mãe terminou tendo como grandes vítimas nós, crianças. Até Lurdes, toda vez que ouvia esse samba no rádio, dizia: “Eu odeio essa música. Herivelto foi longe demais com isso!”. Lembro-me de uma noite no apartamento de Santa Teresa. Meu pai e Lurdes estavam no quarto, e percebi que a conversa girava sobre a briga dele com minha mãe. Ela tentava levantar o moral dele, meio acabrunhado o dia todo, e também demonstrava preocupação comigo e com Bily em meio a tanta confusão: “É essa situação toda, Lurdes… Tá uma barra!”. “É, Herivelto, você foi muito longe. Pre-cisa pensar nos meninos também .” “Eu sei, ela me fez perder a cabeça…” Não falo por qualquer outro filho. Falo por mim . Eu o vi várias vezes ficar extrema-mente constrangido ao ouvir essa música ou quando ela era mencionada. Uma vez, o constrangimento chegou a ser um desabafo, uma espécie de pedido de desculpas indireto aos filhos. Tive o prazer de presenciar esse momento. Eu já havia voltado do Exército. Estava sentado atrás no carro dele e na frente ia Otelo. Iam papeando, falando de música, para variar, quando, de repente, tocou no rádio a maldita “Caminho certo”. Eu gelei. Para minha surpresa, Otelo encarou o assunto com meu pai: “Herivelto, essa música é uma vergonha pra sua carreira de compositor. Você nunca devia ter feito”. Espantado, pude assistir a meu pai responder acabrunhado a Telinho: “É, eu sei. A gente faz cada burrada na vida… E depois tem de encarar os filhos”. Fiquei duro lá atrás, nem respirava direito para ele não se lembrar da minha presença. Os pensamentos se misturavam: eu não sabia se ele tinha dito aquilo especialmente para eu escutar ou se havia esquecido da minha presença e desabafado com Otelo, seu grande companheiro. E aí chorei mansamente, as lágrimas correndo por minha face, torcendo para meu pai não perceber. Naquele momento, apesar de ter sido uma das vítimas de sua atitude, tomou conta de mim uma mistura de sentimentos: amor, perdão e pena por ele. Era uma vítima de si mesmo. Muitos anos se passaram sem eu entender. Lurdes já havia passado a ter domínio total sobre meu pai, comandando tudo o que acontecia ao redor. Por isso, em minha cabeça ficou sempre uma pergunta: se ela, como tanta gente, teve consciência da grande besteira que meu pai fez ao contar sua vida pessoal pelos jornais, por que não usou a enorme ascendência que tinha sobre ele para impedi-lo ou, pelo menos, fazê-lo parar? Essa pergunta sempre dançou em minha cabeça. E, à medida que eu crescia e passava a entender melhor o mundo dos adultos, mais essa questão representava um vácuo em meu raciocínio. Afinal, por que Lurdes não usou de sua força para evitar que meu pai sofresse tanto? E fizesse tantos sofrer? Ao promover muitas conversas para conseguir levantar todos os aspectos dessa história, comecei a encontrar algumas peças perdidas (ou desconhecidas para mim), que foram se encaixando com perfeição ao quebra-cabeça que me dispus a montar. Elas me mostraram ângulos que, na época dos acontecimentos, eu ainda não tinha maturidade para captar. Lurdes exercia um poder especial sobre meu pai. Como não era perdidamente apaixonada por ele, tinha capacidade de controlar os sentimentos e administrar melhor tudo o que se referisse a seu casamento. Como ele mesmo a define em seu livro: “Lurdes era uma pessoa muito lúcida e com uma visão clara e pragmática da vida”. Ela pertencia a uma camada mais alta da sociedade de Porto Alegre, e a educação que recebeu deu-lhe uma visão de vida mais elegante e uma posição social melhor. Graças ao pai e à herança que este deixou, sempre teve boa condição de vida no Rio. Ela não permitia que Herivelto esquecesse que era um homem vindo do interior, com um passado de pobreza, luta e sacrifícios. Um homem mais simples, e irascível. Com ela, no entanto, não havia gritos. Talvez porque não houvesse combustão no relacionamento deles… Estando numa posição superior, Lurdes não fazia questão de modificar o quadro da separação de Herivelto. Acho até que o fato de sentir meu pai abatido em seu drama pessoal dava a ela uma força e uma estabilidade que ele não tinha, mas que passava a buscar e encontrar nela. O preconceito e a moral da época pesavam sobre ele. Não era fácil enfrentar um desquite nos anos 50, ainda mais um desquite turbulento. Com a virada dos 40 anos pesando para Herivelto, Lurdes se tornou um ponto de referência para a imagem daquele homem separado de Dalva, um ponto de honra: perdera Dalva, mas… olha que beleza de morena, também de olhos verdes, que estava ao seu lado! E tão fina-mente educada! Sobre Lurdes também pesava o preconceito da época. Já desquitada e com um filho, não podia se dar ao luxo de outra separação, a moral da época não permitiria. Além disso, investira muito naquele homem, esperara muito por ele. Aquele casamento tinha de dar certo! Percebo que cada um a sua maneira precisava do outro para vir à tona. Para emergir socialmente. Numa época em que dificilmente uma mulher desquitada conseguia outro marido, meu pai assumiu Lurdes diante do mundo. E ela, em troca, com sua postura de mulher fina e educada, conferiu a ele o status de homem de sorte, devolvendo a respeitabilidade que o escandaloso desquite roubara. Em minha pesquisa, sempre encontro referência à grande habilidade de Lurdes em lidar com as pessoas. E me chamou especial-mente a atenção um personagem do qual ela tirou grande partido para impressionar meu pai. Ela era prima de um importante jornalista, Aparício Torelli, conhecido como Barão de Itararé. O apelido, decorrência de sua grande cultura e elegante personalidade, além do fulgurante humor, foi conferido por ele mesmo em referência a um episódio da Revolução de 1930, a batalha de Itararé, “a batalha que não existiu”. Suas crônicas eram muito apreciadas; seu humor e mordacidade, temidos. Lurdes recebia o Barão em casa com frequência, o que lhe dava um grande prestígio diante do meu pai, acostumado a receber apenas artistas e boêmios. Ainda não convivera com esse tipo de intelectual. Amigos dessa época, como Messias, me relataram a deferência com que esse primo de Lurdes era tratado por eles. Inteligentemente, ela começou a estabelecer um contraste entre eles. Enquanto meu pai tinha as narrativas escandalosas de David Nasser, uma ex-esposa sendo arrasada nos jornais e nas músicas e, enfim, vivia um drama plebeu, ela gozava da companhia de um intelectual como o Barão de Itararé. Com isso, colocava-se numa posição superior diante de meu pai, social e culturalmente. Ela procurava dominá-lo sob todas as formas, tirando partido das situações que visualizava como favoráveis. Mas não sei se tinha consciência de que a sua grande força estava no fato de que não competia com ele artisticamente. Meu pai jamais permitiu que houvesse competição, na música ou no palco, que ele não pudesse vencer. Foi esse o seu grande problema com minha mãe. Ele foi ficando louco com o grande destaque de Dalva de Oliveira. Ao receber suas instruções para fazer algo numa música ou num arranjo, in-tuitivamente minha mãe superava a encomenda, aperfeiçoava, dava o seu toque inspirado e… ficava maravilhoso. Resultado: conflito. Ele ficava com os louros do sucesso porque, sem dúvida, o arranjo era dele, mas louco de raiva porque constatava que o melhor resultado era Dalva quem oferecia e era a ela que o público dirigia o aplauso mais forte. Essa situação corrompeu o relaciona-mento deles. Com Lurdes ele nunca correu esse risco: era ele o artista da casa, era ele o ser maravilhoso e especial. Mas, por isso mesmo, tornou-se um produto nas mãos de Lurdes. Aquele homem que sempre fora movido a emoção, violão e boêmia, passou a ser enquadrado em outra realidade de vida. Conversando com Messias, que também escreve um livro de memórias, ele conseguiu verbal-izar bem esse novo contexto que meu pai passou a viver: “A Lurdes foi a mulher da vida do Herivelto. A Dalva, porém, foi seu verdadeiro e insustentável amor. A Lurdes fez a agenda dele, mas bloqueou a sua criatividade”. Com a sabedoria que os anos trazem, Messias encontrou as palavras certas para o que sempre senti e pensei da vida amorosa do meu pai. Assisti ao domínio de Lurdes sobre ele crescendo à medida que sua cri-atividade ia morrendo. Ela passou a enquadrá-lo numa regra que até então não existia para ele. A música de Herivelto passou a não ter mais tanta vida. Passou a ser apenas sucessos comerciais em que o mérito muitas vezes era dos intérpretes. Sem dúvida, continuava a ser o grande Herivelto, só que enquadrado num novo mundo sem a sua formidável liberdade de expressão e, creio, com alguma consciência do que es-tava acontecendo à sua volta. Ou deixando de acontecer. Mas não havia volta para ele. Por outro lado, ela também não podia se dar ao luxo de um rompimento com meu pai. Eles tinham medo de que o bonde da vida não passasse outra vez. O momento deles era tudo ou… tudo!


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