segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O SAMBA: CANTANDO A HISTÓRIA DO BRASIL - PARTE 01

Por Mara Natércia Nogueira


Resumo: Neste  artigo,  pretende­se sugerir que  o samba,  um gênero musical brasileiro, é capaz de contar a história do Brasil, por meio de um viés  mais original,  mais criativo e mais autêntico.  Parte­se  da premissa segundo a qual uma compreensão mais ampla da trajetória e da identidade  do povo brasileiro,  pode ser obtida com as  letras  dos sambas  pois,  as  mesmas,  procuram retratar um “Brasil mais brasileiro” . A pretensão do artigo é a de  mostrar que, se, de  um lado,  o samba vem cantando o encontro das diferentes culturas e da miscigenação peculiar que, no Brasil,  foram capazes  de produzir uma originalidade típica que  deve  ser preservada, de outro lado, o samba também tem sido um modo de contar a história do povo brasileiro, na perspectiva crítica do modelo de colonização que nos foi imposto.

Palavras-­chave: samba,  identidade cultural,  identidade nacional,  miscigenação, colonização. 


Para cantar samba
Não preciso de razão
Pois a razão
Está sempre com dois lados
 Amor é tema tão falado
Mas ninguém seguiu
Nem cumpriu a grande lei
Cada qual
 Ama a si próprio
Liberdade, igualdade
 Onde está?
Não sei
Mora na filosofia
Morou, Maria
Morou, Maria


O Brasil e a construção de sua identidade

Uma boa via para quem quer conhecer a história do Brasil, à luz dos acontecimentos que remontam à colonização, chegando até os nossos dias, bem como, compreender o desenvolvimento político das estruturas governamentais a que este país se submeteu para chegar a ser uma República e se tornar “independente” com soberania e legitimidade, é aquela que percorre a trajetória do samba 4 . Retratando os acontecimentos de nossa história de uma forma a um só tempo criativa e original, o samba canta uma “outra” história, por meio da qual é possível conhecer o modo de vida de cada povo que aqui se fixou, seus costumes e valores, suas tradições, sua maneira própria de buscar a garantia da liberdade e de se fazer respeitar a partir de características de pertencimento que constituem a identidade cultural própria dos grupos responsáveis pela formação do povo brasileiro.

O samba é um caminho que possibilita uma leitura crítica para conhecermos um pouco mais as peculiaridades desses povos. A história do samba é uma evocação de um passado integrado na história do Brasil (ALVES, 1976, p. 13). O encontro desses vários povos provocou uma miscigenação muito peculiar, pois que, alguns vieram para este país como mercadorias – os escravos; outros como conquistadores e donos – os senhores portugueses; outros vieram para buscar refúgio em um continente novo, enquanto que, outros aspiravam encontrar melhores oportunidades de vida em uma terra habitada por numerosos grupos indígenas, antes de sermos submetidos ao processo colonizador. Assim, como pensar que esse “encontro” de povos e de culturas tenha propiciado a formação de uma nação, a nação brasileira, por meio de uma “mistura” um tanto quanto especial e peculiar?

Sobre esta problemática, faz­-se necessário tecer algumas considerações a respeito do elemento central que distingue os povos, qual seja, a identidade. O conceito de identidade funciona como o balizador quando sujeitos diferentes culturalmente passam a conviver em um espaço comum. À luz do conceito de identidade, é possível perceber as diferenças de cada cultura, perpassadas pelos valores, costumes e tradição de cada uma.

Para o antropólogo Claude Lévi­Strauss, “a identidade é uma entidade abstrata sem existência real, muito embora seja indispensável como ponto de referência” (LÉVI­STRAUSS apud ORTIZ, 1985, p. 137). Em nível individual, a identidade, nos termos em que Carlos Rodrigues Brandão a define, é um conceito que expressa a subjetividade do indivíduo que, por sua vez, é revestida de conteúdo social. Assim, a identidade pode ser vista como um sentimento pessoal e a consciência da posse do “eu”, de uma realidade individual que a cada um de nós torna, diante dos outros “eus” um sujeito único. A própria codificação social da vida coletiva se encarna no sujeito e lhe impõe a sua identidade. Assinala para ele um lugar, um feixe de papéis, um nome que é seu, de sua família, de sua linhagem, daquilo que ele é como sujeito (BRANDÃO, 1986, p. 37).

A identidade seria, então, um ponto de intersecção entre o “eu” e o “outro”, entre o indivíduo e a sociedade, seria o reconhecimento de ser quem se é, e é esta realidade que possibilita aos outros reconhecerem no sujeito o que ele é. Para Renato Ortiz (1985), a identidade constitui­se numa das principais mediações entre o indivíduo e a estrutura social, por sintetizar os aspectos psicológicos e sociais que nos permitem dizer: quem é o indivíduo e que sociedade é esta onde ele vive. A identidade é aquilo que você é, suas características próprias, exclusivas e conscientes; a alteridade é aquilo que você é aos olhos dos outros. A alteridade compõe a identidade na medida em que as expectativas do outro influenciam ou determinam o que entendemos por nós mesmos. As identidades são, como se vê, representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro. Assim, ela não é apenas o produto da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença. É uma categoria que atribui significados específicos a tipos de pessoas em relação umas com as outras.

O sentimento gerado a partir da construção pessoal e social de um grupo, que resulta na qualificação que este grupo vai dar a si próprio sintetizando um modo de ser próprio, que pensa segundo seus valores e preceitos, que sente de acordo com os seus padrões de afetividade/interatividade e que orienta sua conduta conforme a imagem com que o grupo se reconhece enquanto unidade social diferenciada (uma tribo, uma nação, uma minoria, um povo, uma classe ...), é o que a Antropologia denomina de identidade étnica.

Assim, a identidade de um grupo étnico constrói-­se por meio da afirmação de uma peculiaridade cultural, diferenciada de outros que, por estarem historicamente unidos por laços próprios de relações como as familiares, as redes de parentes, os clãs, as aldeias e tribos, e por viverem e se reconhecerem vivendo em comum um mesmo modo peculiar de vida e representação da vida social, estabelecem para eles próprios e para os outros as suas fronteiras étnicas, os limites de sua etnia, configurando o fenômeno que, em Antropologia, é chamado de etnicidade.

A identidade cultural do “sujeito”, no decorrer da história da cultura ocidental, vem passando por distintas definições. A concepção Iluminista preconizava a existência de um sujeito provido de identidade fixa e estável, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Essa identidade se manifestava quando do seu nascimento e durante sua existência permanecia inalterado. Num outro momento da história, a identidade é definida na relação do sujeito com outros que se mostrassem importantes a ele – o sujeito sociológico, onde o núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto­-suficiente. Nessa relação, o sujeito passa a estabelecer seus valores, sentidos e símbolos, denominados de cultura, do mundo que habitar. A identidade é, portanto, formada na interação entre o eu e a sociedade (HALL, 1997, p.11).

Quanto ao conceito de identidade nacional, faz­se necessário ressaltar acerca do papel que esta cumpre, como conciliadora das diferenças na perspectiva da formação da unidade identitária de uma nação, a partir de um padrão homogêneo. A cultura nacional é composta de instituições culturais, de símbolos e representações. Ela se forma a partir de três aspectos interrelacionados: a narrativa da nação – contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais e na cultura popular; as origens – na tradição e na intemporalidade, onde o objetivo é inspirar valores e normas de comportamentos por meio da continuidade com um passado histórico adequado e o mito fundacional ­ o qual é responsável por contar a história que localiza a origem da nação, do povo e do seu passado num imaginário longínquo (HALL, 1997, p. 50).

Um primeiro parâmetro de referência analítica, para tentar compreender a trajetória de construção da nossa identidade nacional, pode ser encontrado no modernismo brasileiro dos anos 20. Para Renato Ortiz (1985) são duas as fases que caracterizam esse movimento. Na primeira delas (1917­1924), a preocupação é estética e o modelo é a Europa do século XIX, com o estabelecimento da ordem burguesa, que assim se expressa: i) autonomização de determinadas esferas (arte, literatura, cultura entendida como civilização); ii) surgimento de um pólo de produção orientado para a mercantilização da cultura (bens culturais); iii) mudança semântica no tocante à arte e à cultura.

A arte, antes vista como habilidade/artesão, agora, é a qualificação ligada à noção de imaginação e criatividade: um novo vocábulo é encontrado para exprimir a arte: estética. A cultura que, antes, associava­se ao crescimento natural das coisas, agora, passa a encerrar uma conotação que se esgota nela mesma e se aplica a uma dimensão particular da vida social, seja enquanto modo de vida cultivado, seja como estado mental do desenvolvimento de uma sociedade.

A 2ª fase (a partir de 1924) estende-­se até os anos 50, com a elaboração de um projeto de cultura mais amplo que se expressa à luz da questão da brasilidade. Expressam esse projeto: a arquitetura de Niemeyer; o teatro de Guarnieri; o desenvolvimento do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1956); a literatura de Oswald de Andrade (Manifesto Antropofágico).

Um outro parâmetro de busca de uma definição da identidade nacional, de tentativa de definição de nossa brasilidade, pode ser buscado no ideal daqueles que “pensaram” o Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, com as raízes na “cordialidade” do brasileiro; Cassiano Ricardo (“bondade”), Silvio Romero que definiu seu método como “popular e étnico” (brasileiro como “raça mestiça”). Outros autores tomam eventos como o carnaval ou a índole malandra para definirem o “ser” nacional. Todas as definições procuram atribuir ao brasileiro um caráter imutável à maneira de uma substância filosófica.

Mas, a pergunta a ser feita é, qual é a ideologia subjacente ao projeto de construção da identidade nacional? Segundo Ortiz (1985), a partir dos anos 50, o debate gira em torno da seguinte questão: “sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento”. Assim, o desenvolvimento e a modernização se identificam como elementos de uma identidade que se pretende construir: uma identidade nacional. No contexto de uma sociedade industrializada, modernidade e nacionalidade articulados formam a racionalidade capitalista. Mas, se a construção nacional da identidade, contrapõe-­se às forças oligárquicas e conservadoras do imperalismo internacional, o que é digno de nota é que, nessa discussão, a ausência da cultura popular revela claramente que o nacional não é popular.

Segundo Ortiz (1985), se tomarmos como exemplo a obra de Gilberto Freyre, um crítico da modernidade, veremos que são características da sua obra: a retratação da realidade brasileira à luz da casa­grande/senzala; a atitude senhorial; opõe­se à ordem industrial que se implanta a partir de 30; na polaridade entre o tradicional e o moderno, a valorização da ordem oligárquica. Há de se notar, também, o contraste entre São Paulo e o nordeste. Enquanto São Paulo é a representação da cidade, da locomotiva, da burguesia industrial, do gosto pelo trabalho e da realização técnica e econômica, as imagens do Nordeste são construídas a partir da terra, do campo, dos habitantes telúricos e tradicionais e por isso representam o tipo brasileiro por excelência.

À luz dessas considerações, é possível perceber, então, que o “Estado Nacional” 5 , fundado na soberania popular é uma totalidade que dissolve a heterogeneidade da cultura brasileira na univocidade do discurso ideológico. É através de uma relação política, portanto (via Estado), que se constitui assim a identidade nacional, como construção de segunda ordem que se estrutura no jogo da interação entre o nacional e o popular, tendo como suporte real a sociedade global como um todo.

Nesse contexto, as características culturais – costumes, tradições, sentimentos de pertencimento a um lugar, língua e religião ­ dos povos que no Brasil se fixaram, provocou uma mistura de raças original e peculiar. A alegoria às três raças – índios, negros, brancos ­ e o surgimento de uma miscigenação brasileira, se, de um lado, passa a significar a verdadeira e diferencial riqueza cultural deste país (DAMATTA, 1987, p.37), por outro lado, o mito da mestiçagem, ao incorporar os elementos ideológicos que estão na base da construção da identidade nacional, coloca um problema para os movimentos negros:


Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra
no discurso unívoco do nacional, tem-­se que elas perdem sua especificidade.
Tem-­se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no Brasil.
O impasse não é simplesmente teórico, ele reflete as ambiguidades
da própria sociedade brasileira. A construção de uma identidade nacional
mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor.
Ao se promover o samba ao título de nacional, o que efetivamente ele é hoje,
esvazia-­se sua especificidade de origem, que era ser uma música negra
(ORTIZ, 1985, p. 43).





Referências
ALVES, Henrique  Losinskas.  Sua  Excelência  – O  Samba, 1976, 2ª  ed..  São Paulo, ed.  Símbolo.
BRANDÃO, Carlos  Rodrigues. Identidade  & etnia – construção da  pessoa  e resistência  cultural. São Paulo : Brasiliense, 1986.
DICIONÁRIO  DE CIÊNCIAS  SOCIAIS  /  Fundação Getúlio Vargas,  Instituto de  Documentação; Benedicto Silva, coordenação geral; Antônio Garcia de Miranda Neto . . . / et  al. / 2ª ed. , Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. XX, 1422 p. 14 
DAMATTA, Roberto.  “Digressão: A Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à  Brasileira”. In: Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro. Editora  Rocco, 1987, Cap.7, pp. 58 – 85.
FREIRE, Gilberto.  Casa Grande  Senzala. 4ª  ed.  Rio de  Janeiro,  José  Olímpio,  1943.  In:  DICIONÁRIO  DE CIÊNCIAS  SOCIAIS  /  Fundação Getúlio Vargas,  Instituto de  Documentação; Benedicto Silva, coordenação geral; Antônio Garcia de Miranda Neto . . . / et  al. / 2ª ed. , Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. XX, 1422 p.  
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós­Modernidade. Tradução de Tomáz Tadeu da  Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro. DP&A Ed., 1997.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2003.
NAVES, Santuza Cambraia. Almofadinhas e Malandros. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro – RJ, p. 22 ­ 27. Ano 1, n° 08, fevereiro / março 2006.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e  identidade  nacional.  3 a .  ed.  São Paulo: Brasiliense, 1985.
SOUZA,  Maria  Luiza  Rodrigues.  Globalização: apontando questões  para  o debate. In: Memória. FREITAS, Carmelita Brito de (org.). Goiânia : Ed. UCG, 1998, pp. 49­54. 

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