segunda-feira, 4 de abril de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*





Uma sorridente e amorosa Maysa, com seus olhos verdes e sua voz rouca, levantou as arquibancadas com “Dia de rosas”, uma marcha-rancho de Luiz Bonfá e sua mulher Maria Helena Toledo, mas Gal Costa quase não foi ouvida, embora seu estilo e sua qualidade tenham sido percebidos por todos os ouvidos mais sensíveis. Meu coração batia cada vez mais forte. Nana foi arrebatadora, soltou a voz e o coração, o poderoso arranjo impulsionou sua interpretação e a música empolgou o público: nosso saveiro navegou de velas abertas. No intervalo, minha amiga Marieta Severo, que estava começando a namorar Chico, me disse que no júri estávamos bem. Menescal me confirmou. Na espera ansiosa nos bastidores, entre boatos, fofocas e unhas roídas, Dory me deu uma fita do Senhor do Bonfim, que amarrei no pulso mentalizando meu secreto e óbvio desejo.

Quando “Dia de rosas” foi anunciada em terceiro lugar, o público não gostou da classificação e vaiou: Maysa foi ovacionada delirantemente. A temperatura subiu. Vaias e aplausos quando “O cavaleiro”, de Tuca e Geraldo Vandré, foi classificada em segundo lugar. Então... será que... alguém nos empurrou para o palco. De mãos dadas, Dory, Nana e eu vivíamos aquele momento tão ansiado de vitória, de conquista, de afirmação, dessas coisas que importam tanto quando se tem 21 anos. Ofuscados pelos refletores e emudecidos pela gritaria, entramos no palco e fomos recebidos pelos aplausos calorosos que tanto desejávamos mas também por uma estrepitosa vaia, dos muitos que torciam por “Dia de rosas” e estavam furiosos com a decisão do júri. Fiquei chocado, não entendia nada naqueles segundos intermináveis entre o locutor Hilton Gomes anunciar a primeira colocada e o maestro Mário Tavares conseguir fazer a orquestra tocar os primeiros acordes no meio do barulho ensurdecedor, ampliado pelas paredes de concreto do ginásio, famoso por sua péssima acústica. Do alto do palco, no meio da gritaria, vejo nas primeiras filas meu pai e minha mãe rindo e aplaudindo (ela chorando) e aceno para eles, Nana começa a cantar sem ouvir a orquestra, sai do tom, o ritmo atravessa, sua voz treme e falha, dramaticamente e com grande coragem ela canta a música até o final sem se ouvir nem ouvir a orquestra: só os aplausos e vaias ensurdecedores de 20 mil pessoas. Meu coração quase saía pela boca.

No dia seguinte, na ESDI, foi uma pequena comoção. Encantado, recebi cumprimentos de colegas e professores, e na primeira incursão do dia ao botequim da esquina, excedi-me com certa arrogância numa discussão sobre arte x tecnologia e tive que ouvir de um colega, que com afetada solidariedade me dava tapinhas nas costas: “É, Nelsinho, acho que as vaias subiram-lhe à cabeça...” Descontei no garoto que servia café. Ele usava uma touca de pano e nós o chamávamos de “De touca” e ele odiava. Naquele dia, triunfante, ele tinha resolvido o problema: tinha tirado a touca. “Ô ‘Sem touca’, um cafezinho aqui pro vaiado, por favor”, pedi, para gargalhadas gerais. Touca recolocada. Minha vida acadêmica estava movimentadíssima: fascinado com as aulas de Zuenir Ventura sobre a linguagem e a comunicação, a força da expressão escrita, o jornalismo moderno, consegui por intermédio de meu pai um estágio na reportagem geral do Jornal do Brasil. Quando ganhei o festival, já vinha me dividindo entre o jornal e a ESDI. Ia às aulas, quando ia, de manhã, e passava as tardes no jornal e na rua. As noites, na música, com minha turma, em volta de Vinícius, nos shows do Beco das Garrafas e nas festas.

Na velha redação da Avenida Rio Branco, onde trabalhavam Fernando Gabeira, Alberto Dines, Carlos Lemos, Marina Colasanti, Armando Nogueira e outras estrelas do novo jornalismo, me apaixonei por aquele mundo de notícias, idéias e papel. No primeiro dia, saí com um velho repórter para a cobertura de um escândalo no Departamento de Águas. No dia seguinte, materinha humana da editoria de Cidade, um leilão de objetos penhorados na Caixa Econômica. Na volta, escrevia a minha versão, que era submetida ao chefe da Reportagem, Luiz Orlando Carneiro, que pacientemente corrigia, tirava todos os adjetivos e me ensinava o básico. Logo comecei a receber pequenas missões, campanhas do Banco de Sangue, eventos escolares, pequenos acidentes, novo bicho no Zoológico. Mesmo assim gostava, cada vez mais. Corria para ler o jornal de manhã cedo para ver como tinha saído, se tinha saído, a minha materiazinha anônima, depois de um trato dos copidesques.

No dia seguinte ao festival, subi as centenárias escadas de madeira do Jornal do Brasil e entrei na redação modesto e sorridente, como se nada tivesse acontecido. Mas ninguém falou nada de festival, ninguém ali me conhecia, embora junto com Dory e Nana eu estivesse
na primeira página de todos os jornais, levantando o “Galo de ouro” no Maracanãzinho. No meio da tarde, duas jovens repórteres do JB, Maria Helena Leitão e Bella Stal, entraram esbaforidas na redação: estavam procurando o estudante da ESDI que tinha ganho o festival. Me apresentei e dei minha primeira entrevista na própria redação onde estagiava. Como representantes do Brasil na parte internacional do festival fomos, brasileiramente, vice: a vencedora foi a alemã “Frag den Wind”, que ninguém precisa ouvir para saber que era chatíssima. As concorrentes internacionais eram fraquíssimas e poucas entusiasmaram o público: as preferidas eram a inglesa “Love Is All” e a francesa “L’amour toujours l’amour” que, como os próprios nomes dizem, não eram lá muito originais. Foi bom porque abiscoitamos mais uma grana e chato porque todas as vezes que a música era anunciada uma parte do Maracanãzinho vaiava a entrada de Nana. Mesmo na noite da final, quando Ronaldo Bôscoli — que era o redator do festival — colocou no script de Hilton Gomes na apresentação da música que o letrista estava fazendo 22 anos naquela noite e pedindo um aplauso, recebi uma inédita “vaia natalícia”.

Depois do festival, fiquei eufórico quando soube que Elis gravaria “Saveiros”. Mas saí decepcionado do estúdio da Philips, onde fui assistir à gravação. Ao contrário do arranjo rítmico e vibrante da gravação de Nana, o que Elis encomendou ao maestro Chiquinho de Morais era o oposto, em forma de lentíssima canção, sem ritmo marcado, sem bateria nem percussão. Era bonito até, mas chato, parado, e Elis cantando também era perfeito, mas sem emoção, sem brilho, sem vontade. Estava claro que ela não se entusiasmava com a música: estava gravando, a pedido da direção artística da Philips, para ser o lado B de seu compacto com “Canto triste”. Logo passei de estagiário a repórter, ganhando um salário mínimo, e começaram a aparecer oportunidades de matérias melhores e, finalmente, a glória: uma matéria de meia página, minha primeira assinada, no Caderno B, com uma das novas sensações musicais de 1966: o baiano Gilberto Gil, que eu já conhecia do Teatro Opinião e da
casa de Vinícius e admirava por “Procissão”, “Roda”, “Louvação” e “Ensaio geral”. Usei como epígrafe uma frase de Torquato Neto, perfeita para expressar como Gil se situava no efervescente momento musical, dividido entre políticos e bossanovistas, jazzistas e sambistas, nacionalistas e jovem-guardistas, cariocas e paulistas. 

“Há várias formas de se fazer música brasileira: Gil prefere todas.” Com o dinheiro do prêmio do festival comprei um fusca bege e, seguindo a práxis revolucionária que Glauber Rocha pregava, aprendi fazendo: saí dirigindo pela cidade sem me preocupar com burocracias como carteira de habilitação, vistoria, seguro, essas coisas. Duas semanas depois o carro foi roubado na porta de casa. Arrasado, fui pedir ajuda ao segurança da boate Le Bateau, meu conhecido da noite, que era da polícia e que já tinha recuperado carros de amigos. Na porta do Bateau, contei-lhe o problema, dei uma descrição do carro, disse onde ele tinha sido roubado. Muito simpático e amistoso, Mariel Mariscott disse para eu me tranqüilizar: “Você deixa uma grana para a investigação que a gente acha o carro...”
Deu uma risada e completou: “... e ainda apaga o vagabundo!” 
Desisti das investigações e peguei um táxi para casa.



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