Por Daniel Oliveira
O cantor Alceu Valença escreveu o roteiro e dirigiu "A Luneta do Tempo", seu primeiro filme
Alceu Valença vive no Rio de Janeiro desde a década de 1970, mas parte de sua inspiração ainda parece ser conduzida pelo interior de Pernambuco. Quando a conversa segue pelas veredas do sertão, o cantor, compositor e agora cineasta mostra entusiasmo especial. Isso porque as vivências na infância em São Bento do Una, onde nasceu, ocuparam lugar indispensável nos rumos do seu cancioneiro e, sobretudo, na sua formação. No olhar de diretor e roteirista de A Luneta do Tempo, longa-metragem que acaba de estrear no Brasil, essa referência é renovada. O filme aborda o mito do cangaço com a atuação de Irandhir Santos e Hermila Guedes, além do próprio Alceu. Ele, claro, também assina a trilha sonora. Com histórico de militância nos idos de 1960, quando cursava direito, Alceu é contundente ao criticar o atual modelo eleitoral brasileiro, mas comedido ao avaliar a disputa política no país. Às vésperas de completar 70 anos, ele falou àMuito em três momentos - duas conversas por telefone e um encontro no TCA, onde fez show acústico em março. Entre os temas, cinema, mercado, internet e o seu "sertão profundo", agora com fast-food e condomínios.
O senhor já disse muitas vezes que não pensava em ser artista, mas os acontecimentos de sua vida foram levando para a carreira de cantor e compositor. Como se sente sendo artista hoje?
Eu gostaria de cantar todos os dias. A coisa melhor do mundo é isso, porque eu adoro o palco. Mas não gosto de ser celebridade. Na época que vim para o Rio, em 1970, ao artista era pedido, no máximo, um autógrafo. Não tinha ninguém que tivesse uma fotografia e não tinha esse louvor. Claro que não me recuso a tirar foto, porque fica aparentando que você está desmerecendo a pessoa. Eu não quero ser como os neuróticos americanos, Elvis Presley, que vivia trancado, ou Michael Jackson, que eram grandes artistas, mas também escravos da fama.
Após quase cinco décadas de música, este ano marca a sua estreia como diretor no filme A Luneta do Tempo, premiado no Festival de Gramado. Qual é a raiz dessa relação com o cinema?
Quando era menino, minha mãe gostava muito de cinema e eu ia com ela. Em São Bento mudava muito a programação. Quando voltava para a fazenda, a gente fazia cinema de sombras. E quando mudei para Recife, assistia a tudo que passava. Depois, querendo ser um intelectual, aprendendo francês, entra na minha vida o cinema da Nouvelle Vogue e o Neo-realismo italiano. Na época da faculdade, vi Nelson Pereira dos Santos, mas assistia muito a chanchada, Grande Otelo. Diziam que eu parecia Jean-Paul Belmondo [ator francês]. Eu era tímido e comecei a arranjar muitas namoradas por causa dele. Passei a fumar, escondido de mamãe e papai, igual a ele no filme Acossado [de Jean-Luc Godard]. Mas fiquei mais interessado no movimento estudantil, na política e deixei de ver cinema por um tempo.
Seu filme foi elaborado em mais de dez anos e aborda o cangaço, tema presente no imaginário do interior nordestino, onde o senhor nasceu e passou a infância. Qual foi o ponto de partida?
A TV Manchete me chamou para fazer uma participação como Lampião com Daniela Mercury nos anos 1990. Na infância, o papai me contava histórias do cangaço e eu gostava de ler Rui Facó,Cangaceiros e Fanáticos, cordéis, A Chegada de Lampião no Inferno, essas coisas. Ouvia essa mitologia e minha família falava que os cangaceiros passaram lá perto da fazenda. Eu pensava que eles moravam do outro lado da serra. Quando meu pai morreu, fui para a fazenda e lembrei disso tudo. A partir daí, comecei a escrever. Encontrei com Walter Carvalho, mostrei e ele disse: "Isso é cinema, vamos dirigir juntos?". Acertei para ele dirigir comigo e roteirizei. Mas apareceu Budapeste [filme baseado no livro de Chico Buarque] e Waltinho viajou. Então Andrucha Waddington, numa entrevista, perguntou o que eu estava fazendo. Eu mostrei e ele também falou: "Vamos dirigir?". Mas logo depois foi para o Maranhão fazer Casa de Areia. Aí pensei, "agora quem vai fazer sou eu". Tive umas quinze aulas e comecei a ver compulsivamente cinema, anotava a gramática. Resolvi que seria uma coisa musical. Não é um musical americano, não é Broadway. É sobre o mito do cangaço.
Em 1973, o senhor fez a trilha sonora de A Noite do Espantalho, de Sérgio Ricardo, e atuou no filme, que trata do interior de Pernambuco assim como A Luneta do Tempo. Uma experiência contribuiu para a realização da outra?
Contribuiu. Até porque a gente gravou a segunda parte em Nova Jerusalém, o mesmo lugar de A Noite do Espantalho. E eu só fui porque fiquei com muita saudade daquele tempo. Não usei nada da cidade, mas sabia que iria encontrar pessoas para fazer uma boa figuração, porque quase todo mundo trabalha na Paixão de Cristo. Mas o filme de Sérgio é totalmente diferente do meu. O que foi muito bom para mim é que olhava através do visor da câmera do irmão dele, Dib Lutfi. Quando um ator terminava a sua participação, voltava para o hotel, enquanto eu ficava vendo os movimentos de câmera. Sempre gostei de fotografia.
Os versos "Beija-flor, estou chorando suas penas / Derretidas na insensatez do asfalto", da música Espelho cristalino, de 1977, trazem um antagonismo entre o rural e o urbano que vislumbra quase um resultado trágico dessa relação. Após quase 40 anos, como vê o sertão?
Está muito melhor, porque tem internet. Vi muitas coisas no sertão do Nordeste. Você chega em Caruaru, que é agreste, e pode comer uma tapioca, mas também uma comida japonesa no shopping center. Tem um cinema tão bom quanto o de Salvador e o do Rio de Janeiro. No entorno de Caruaru há condomínios. Você pode morar com 100 pessoas e até criar galinha de capoeira, alimentos orgânicos. E divide aquela história por ali. Daqui a pouco, as pessoas vão voltar para o interior, será uma migração da cidade para os condomínios, onde você poderá trabalhar. Eu posso morar em São Bento e, de repente, tem um show em Portugal. Pego um carro, em duas horas e meia chego ao Recife e em seis horas e meia estou em Portugal.
A partir do manguebeat, com Chico Science e Nação Zumbi, a cena de Pernambuco voltou a produzir muitos artistas importantes para a música brasileira, como Mestre Ambrósio, Otto e Karina Buhr, após um período, digamos, de entressafra nos anos 1980. Como o senhor vê esse contexto criativo?
O manguebeat deu uma vontade muito grande nas pessoas de se voltar para as coisas de Pernambuco. E o objeto da Nação Zumbi é diferente, no aspecto rítmico e de composição. Eles têm uma pegada que é deles. Mas, na época, eu morava aqui no Rio de Janeiro. Eu tenho uma casa em Olinda e só morei dois anos nela, no final dos anos 1980. Esses movimentos, que eram muito bons, estavam surgindo lá e eu não conhecia, como Mestre Ambrósio com Siba. Fui a um show deles aqui, me entusiasmei, subi ao palco, cantei. O Chico Science tinha uma coisa muito boa de palco, ele fazia algo que tinha um pouquinho de hip hop, mas que era muito mais brasileiro do que americano. Devia conhecer alguma coisa de embolada, que era o nosso hip hop. E o que abarcou uma época em Pernambuco é essa geração dele e esses outros que ainda tiveram um lugar ao sol, como Otto e Karina Buhr. Hoje é difícil encontrar uma pessoa.
O que era diferente antes?
As rádios tocavam tudo. A Rádio Nacional serviu de parâmetro para as rádios do Brasil todo. De uma maneira natural, o brega concorreu com a MPB e tudo mais. O povo gostava de Aquele abraço, de Gil, de A Banda, de Chico. O povo cantava música de todo mundo. E a rádio tocava Reginaldo Rossi e Chico Buarque, Amado Batista e Geraldo Azevedo. Tinha uma variedade.
De fato, o senhor, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo e Moraes Moreira, por exemplo, apresentavam trabalhos menos comerciais. Como era ultrapassar as fronteiras das gravadoras?
As fronteiras não existiam tanto naquele momento. Era o seguinte: existia um negócio para a gravadora, que era Disco é Cultura. Uma parte dos discos era financiada pelo governo. Por isso, tinha os artistas brasileiros. João Araújo, pai de Cazuza, que foi da Som Livre e da Associação Brasileira dos Produtores de Discos, me falou uma vez que a música americana vendia 3%. E que a MPB de qualidade, ou seja, Kleiton & Kledir, Gil, Alceu, Gal, Bethânia, Fagner, era 85% de todo o comércio de música. Depois, ele ficou até com dor na consciência porque botou as músicas em inglês para as novelas.
Hoje a relação dos artistas brasileiros com o mercado fonográfico é bem diferente. O que pensa do momento atual?
Os artistas vivem hoje dos shows que fazem. Vender 30 mil discos é uma grande venda. Por isso, deixei há muitos anos as gravadoras. Rompi com a RCA Victor nos anos 1980, porque começou a ser obrigado a cantar brega. O Jornal do Brasil denunciou isso. E os artistas passaram a ser comandados pelo executivos das gravadoras, claro que com exceções. Antes, em 1978, quis romper esse contrato, mas nem que eu pagasse eles aceitavam, porque existiam outras pessoas ganhando. Me pagaram direitinho, mas também pagaram o atravessador. Então não podiam deixar eu sair porque deram demais, entende? Não para mim, porque o meu estava totalmente declarado. Depois disso fui indo de gravadora em gravadora até quando resolvi colocar o pé na estrada e ser absolutamente independente.
A internet é uma opção mais viável de difusão de artistas diante do que o senhor afirma ser uma hegemonia de poucos estilos nas grandes gravadoras?
Isso ainda é uma incógnita, não sei ainda como a internet fideliza. Quase sempre na internet acontece o viral. Eu tenho um viral de oito milhões de pessoas, as pessoas compartilham, mas se fosse uma música nova, não sei se daria nem dois.
Depois do movimento estudantil, o senhor se distanciou da política. Desde as eleições de 2014, porém, quando teve que desmentir que apoiava o candidato Aécio Neves, voltou a esse debate. O que acha do acirramento das disputas políticas no país?
Eu não me manifesto sobre política. Nas últimas eleições, por exemplo, votei em branco. Há anos penso que deveria ocorrer uma reforma no sistema eleitoral. Essa coisa do dinheiro de firmas para eleições, as pessoas sempre vão querer algo em troca. Não existe simpatia de dez milhões. Nas redes de televisão, deveria ter uma hora de discussão política, de graça, para que o cidadão conseguisse entrar no debate. E um debate equilibrado, senão vira briga de torcida, como Sport x Santa Cruz. Ou então o que acontecia quando os tropicalistas metiam o pau nos fãs de Chico e o contrário. Desde lá eu dizia que tinha lugar para os dois.
O senhor é contra ou a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Isso fica a cargo do Congresso brasileiro. Agora, que eles debatam honestamente. Se a pessoa é denunciada, tem que ter a prova e mostrar. Enquanto não houver, não vejo motivo. Se houver, tem motivo. O impeachment tem que ser absolutamente dentro da lei e da Constituição. Sou constitucionalista.
A vida do senhor parece ser bem movimentada: música, livro de poesia e agora cinema. Além do trabalho, como é o seu cotidiano no Rio de Janeiro?
Acordo, leio o jornal, saio, vou andar na praia. Vou do Leblon até o Arpoador. Tenho que fazer 110 passos, porque está no meu iPhone. Depois volto para casa, pego um livro, releio coisas ou entro nas redes sociais.
Usa as redes sociais com frequência?
Eu não era viciado, mas estou quase. Converso com a minha família, que tem WhatsApp, ficamos perto e longe. E, agora, todos os dias eu toco violão. Eu não pegava de jeito nenhum, porque o médico há um tempo disse para não tocar, por conta de uns nódulos musculares de tensão nas costas. Ultimamente, o violão fica olhando para mim e eu para ele. Fico com pena e vou tocar. Toco todos os dias há uns seis meses (risos). E tem outra coisa, todos os meus amigos foram embora daqui do Baixo Leblon. Alguns para a sua terra, como Waltinho Queiroz [o compositor baiano Walter Queiroz]. Saiu todo mundo, porque ficou muito caro. O meu apartamento eu ganhei de presente da gravadora. E o Leblon é um bairro onde ninguém fala com ninguém. Aliás, tenho amizade com os nordestinos, porteiros dos prédios, os cearenses das lojas de suco. Mas não dá muito para falar porque eles estão sempre trabalhando.
Em 2016, o senhor completa 70 anos. Como vê a sua trajetória até aqui?
Tomei um susto agora, porque tenho dezessete. Não, tenho vinte e sete, para poder entrar em filme de dezoito anos (risos). Então, continua sendo correr atrás, estar na estrada. Tanto a estrada literal quanto a metafórica, que é a estrada da vida. E minha mãe tem 102 anos, converso com ela todos os dias. Então, estou nos meus trinta.
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