Por Leonardo Davino*
No meio do caminho há o denso silêncio. Feito de asfalto, vidro e óleo queimado, Calado, de Nuno Ramos, obriga o visitante do Museu do Açude (RJ) a desviar o caminho. A obra de Nuno Ramos interfere no verde-mata do lugar e parece perguntar: "Pra que cantar com alegria? Cantar assim faz mal a quem é triste" (versos de "Pra que cantar", de Nunos Ramos).
Em um complexo movimento de dentro-fora da euforia tropical pulsante ao seu redor, já que as árvores do lugar se refletem no vidro-núcleo-útero da obra, e com suas proporções de volume e de dimensões agigantadas, Calado equilibra e refrata em seus cortes retos o horror do verde-vênus, do historicamente apresentado como belo.
"Talvez as próprias árvores façam agora parte deste esqueleto (...). Nosso projeto é pô-lo de pé, içá-lo com guindastes e helicópteros até a posição vertical para ver como reage, mas temos medo que sua coluna se quebre. Enquanto isso, procuramos preservá-lo do sol e da poeira, semi-enterrado no chão calcário (...). Ele canta através de nós", anotaria o narrador de "Ele canta" (Nuno Ramos, O pão do corvo).
O núcleo não está no centro. Nem redondo ele é. Parece incompleto, cortado ao meio e em mais um pedaço. Está deslocado, como o asfalto e o óleo queimado colocados dentro da floresta, apontando para outras paisagens híbridas possíveis. Ele parece querer aportar na superfície do objeto talhado em linhas duras e cruas.
O núcleo-olho-boca de Calado mira no descentramento da obra como um todo artificioso - asfalto e óleo queimado - fincado no tropical. E mira no eixo sem-eixo do indivíduo que transita entre tradição e traição, intuição e raciocínio. Do lixo ao luxo culturais. E vice-versa. O Brasil "é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação?"Mas Calado é também o espaço que o navio - barco feito de sabão? - ocupa dentro da água. E a "distância vertical da quilha do navio à linha de flutuação", como registra o dicionário. Calado (2003), é abertura e corte. Silêncio no meio do caminho do visitante que penetra a Floresta da Tijuca (maior floresta urbana do mundo), Calado sopala a dicotomia local/universal, natureza e sua imitação.
Não à toa, Calado (2004) é o nome do disco de Rômulo Fróes. E de uma música - não-canção, sem voz, nem letra - do mesmo disco. A potente desolação do objeto abandonado a esmo, transplantado, meteoro caído, atravessa o disco em suas letras e melodias tristíssimas. E aliada a elas a voz de Rômulo Fróes em tons baixos.
Tendo trabalhado como assistente de Nuno Ramos, e sendo a voz que confere presença nas obras do artista plástico, Rômulo Fróes é a voz que melhor traduz os sujeitos cancionais criados pelo cancionista Nuno Ramos.
É na voz de Rômulo, por exemplo, que o sujeito de "Voz mais triste" se desenvencilha de qualquer raio solar, nega os valores da cultura da festa. Ele não se protege do lado sombrio da existência através da ilusão artístico-cancional, diferente do folião comum que faz da mentira poética - da festa das máscaras e aparências - uma realidade.
Ao priorizar e dramatizar a pulsão do sujeito cuja voz não tem companhia, Rômulo Fróes assina parceria e investe na inscrição do indivíduo agoniado por querer ficar de fora do carnaval: da "euforia de três dias".
A voz de Rômulo performatiza a experiência de "Quem como eu / Perdeu o coração / [e] / Pode cantar por nós / Nós que choramos porque a morte existe / Nós que cantamos com a voz mais triste". E performatiza com auto-crítica o samba em sua nervura exposta. Ou o amor: esse "santo pesado que está sem andor".
Se para Clément Rosset a alegria não se distingue da alegria de viver, o sujeito de "Voz mais triste" não se acomoda à vida. A sua alegria é triste porque se fixa no sofrimento e não nela mesma, ou no regozijo incondicional da existência. Viver é pouco. O sujeito quer o raciocínio.
O som melancólico e lamentoso da cuíca (Wellington Moreira) surge como signo - cão uivando - de significação da canção: adensa as considerações trágicas cantadas por Rômulo. Voz humana e som instrumental forjam um sentimento de felicidade pessoal em que o silêncio sirênico indicia a morte eternamente cíclica do indivíduo abandonado na vida: junco perdido diante da imensidão do mar.
Os versos iniciais - "Não faz mal / Estava escrito no céu ou nas mãos / Como uma chuva que não chega ao chão / Ou carnaval / Feito de cinzas, solidão" - cantam o sentimento do sujeito. Ele sabe que entre a vontade (Dioniso) e a representação (Apolo) passa o mundo, a vida, o indivíduo.
O canto de Rômulo Fróes se fricciona e provoca ranhuras em um polo e no outro, conciliando-os, apontando que além do bem e do mal - "Depois do sonho [do abrigo onírico] e da alegria [de viver]" - há apenas o bem e o mal. O sujeito rompe com essa pseudo dialética: canta sua tragédia reconciliando-se com o silêncio em meio à profusão de sons carnavalescos.
Contrário a quaisquer idealização e escape, o sujeito de "Voz mais triste", de Nuno Ramos, critica a cultura da festa, as estruturas do gosto e os horizontes de expectativas. Pede menos exotismo e mais vivência por trás dos refletores. O sujeito usa o canto para como auto-conhecimento: "carnaval feito de cinzas, solidão". E desdobre que o resultado é a "voz mais triste".
O fenômeno estético justifica-se como existência. Ao Calado, de Nuno Ramos, e ao sujeito da canção "Voz mais triste", na interpretação de Rômulo Fróes, pouco importam os raios de sol que atravessam as palmeiras e aquecem suas superfícies: tudo virará cinza. Sob o turbilhão de brilho há a miserabilidade cotidiana das gentes que fazem o carnaval.
Em processo de sofrimento de individuação - o que, de viés, inflama a presença e a necessidade de contato com o outro, o "nós" que aparece na letra -, o sujeito acentua ao máximo a sua diferença em relação ao folião do carnaval, da festa tropical, da brasilidade vã. E se direciona para o silêncio, tonifica a objetivação do silêncio que contem o barulho do todo utópico que somos. Calado ou com voz mais triste ele sente melhor o mundo e estetiza a dor, a ausência de som, a certeza de ser só.
E aqui, no meio, na ponte, há o pressentimento do reestabelecimento de uma unidade. E aqui também mora a alegria, outro entendimento de alegria. Afinal, as rigorosas e ordenadas formas geométricas de Calado não indiciam uma tentativa de tornar sua vida no meio de tanto verde-mata mais suportável? E a "voz mais triste" não é o símbolo de um indivíduo que é feliz exatamente por não querer ter a subjetividade diluída no culto à tropicalidade irracional? No fundo, todos cantamos a mesma canção?
***
Voz mais triste
(Nuno Ramos)
Não faz mal
Estava escrito no céu ou nas mãos
Como uma chuva que não chega ao chão
Ou carnaval
Feito de cinzas, solidão
Quem como eu
Perdeu o coração
Pode cantar por nós
Nós que choramos porque a morte existe
Nós que cantamos com a voz mais triste
No final
Depois do sonho e da alegria
A minha voz sem companhia pode cantar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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