Por Luã Marinatto
Bob Lester morreu aos 102 anos, ou aos 99
Para a família, era Nilton. No documento, porém, constava Edgard de Almeida Negrão de Lima. Ele contava ter nascido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A mãe, contudo, veio de Minas Gerais, e a irmã poucos anos mais nova afirma ter passado toda a infância e juventude no bairro do Riachuelo, Zona Norte do Rio. Nem sobre a idade há consenso: entre os mais próximos, acredita-se que a morte, em novembro de 2015, ocorreu aos 99 anos — dois anos antes, uma grande festa havia celebrado o seu centenário. Dois enganos para lá, dois devaneios para cá, Bob Lester usava a mesma desenvoltura que o transformou em artista para fantasiar sobre a própria trajetória.
Desde a década de 70, o cantor e dançarino alardeou ter feito parte do Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda nas décadas de 30 e 40. No último domingo, entretanto, uma reportagem do jornal “Folha de S. Paulo” mostrou que Bob jamais integrou o grupo — não as formações oficiais, pelo menos. Os rostos em fotografias que o artista dizia serem dele, em entrevistas e programas de TV, pertenciam, na verdade, a outros integrantes.
— Não tenho provas de que tudo o que o Bob Lester disse é verdadeiro. Mas também não tenho provas absolutas do contrário. É como o equilibrista na corda: pode cair para um lado ou para o outro — explica o pesquisador Ricardo Cravo Albin, referência em Música Popular Brasileira: — De fato concreto, ele não foi um integrante fixo do Bando da Lua. Mas quem sabe se não participou de um ensaio, de uma apresentação? Daí para dizer que fez parte, é um pequeno passo.
O próprio Ricardo, inclusive, viu de perto o talento de Bob. Na comemoração pelos 100 anos — que talvez fossem 97 —, chorou ao lado do ator e diretor Luiz Carlos Miele no bar Cariocando, no Flamengo. No palco, o equilibrista na corda sapateava e soltava a voz como se um garoto fosse.
Uma foto do Bando da Lua com Carmem Miranda — Bob dizia ser o primeiro agachado, à esquerda, informação que não procede
Debute no Paraná
A primeira aparição de Bob Lester na imprensa nacional data de novembro de 1964, no “Diário do Paraná”, após atrair centenas de pessoas apresentando-se nas ruas de Curitiba. Identificado como Edgar Campos Mattos Moreno — portanto, com sobrenome diferente — e dizendo ter nascido em Minas Gerais, ele relatou ao jornal o passado de glórias que repetiria ao longo do meio século seguinte, mas ainda sem incluir Carmen Miranda. A tiracolo, o artista já levava uma pasta repleta de fotos e recortes, hábito que jamais abandonaria (no fim da vida, o material chegaria a ser guardado com um cadeado).
Dali em diante, a presença nos meios de comunicação seria constante. Em consulta à hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, são 153 menções ao seu nome entre 1970 e 2010 — só no EXTRA, foram cinco reportagens.
O sambista Luiz Henrique, que cuidou de Bob nos últimos anos de vida — “tinha ele como um avô” —, arrisca um comentário sobre a curiosa personalidade do artista que cativou jornalistas, colegas de profissão e até pesquisadores:
— A gente sempre encontrava um fundo de verdade naquilo que ele fantasiava.
Bob Lester (desta vez, o próprio) aparece à direita de Nelson Gonçalves, numa edição da revista “O Cruzeiro” de 1970
Para o Rei Roberto Carlos, uma pessoa divertida
As dúvidas pairam também sobre a tragédia pessoal que Bob dizia ser a razão de sua queda. Citado pela primeira vez na reportagem do “Diário do Paraná”, o acidente de carro que teria vitimado esposa e filhas voltaria à tona diversas vezes, com detalhes distintos, nunca com a devida comprovação.
Ao reafirmar ter perdido toda a família, o artista acabaria chateando os parentes, moradores de Realengo, onde passava temporadas esporádicas. A mágoa, entretanto, não durava, talvez pela eterna simpatia de Nilton, como era chamado entre eles.
— Quando eu era criança, minha vó dizia ter um filho sumido. Ele reapareceu 30 anos depois, contando ter morado no exterior e convivido com um monte de gente importante — lembra Maria Tereza Martins, de 58 anos, sobrinha de Bob.
— A família nunca duvidou. O currículo dele era aquela pasta, mas muita coisa se perdeu. Só me pergunto por que a dúvida não foi levantada com ele vivo, para poder se defender — acrescenta Alessandra Martins Chales, de 35 anos, filha de Tereza.
Os amigos fazem coro. Agnaldo Timóteo, com quem Bob já se apresentou, é categórico: “As afirmações dele eram irretocáveis”. Roberto Carlos, que chegou a pagar diárias em um hotel para o artista em 2011, confirmou, via assessoria, ter conhecido o músico. “Era uma pessoa legal e divertida”, revelou o Rei. Armando Pinheiro Guimarães, dono do Cariocando, deixava Bob hospedar-se gratuitamente vez por outra em um hostel de sua propriedade: “Ele tinha foto até com o Sinatra”, garante.
Bob Lester só não convenceu Ruy Castro, biógrafo de Carmen Miranda. Em coluna publicada na última semana, também na “Folha”, o escritor contrapôs a visão de Luiz Henrique: “Toda boa mentira precisa ter um fundo de verdade para parecer convincente.
Em outra reprodução da revista “O Cruzeiro”, de 1970, Bob aparece ao centro, de smoking, e o ator Procópio Ferreira está à direita
‘Era com dança e aplausos que queria viver’
Depoimento de Elisa Clavery, repórter do EXTRA que entrevistou Bob Lester dois meses antes de sua morte
“No apartamento em que morava, em Niterói, Bob misturava frases em inglês, no meio da entrevista. Dizia que era resquício da época em que viveu nos Estados Unidos — ou acreditou viver. Com orgulho, ele me mostrou uma matéria de jornal recente, em que era citado como amigo de Carmen Miranda, e fez questão de me dar uma cópia impressa. Falou, com tristeza, que tinha acabado de leiloar, por apenas R$ 800, os sapatos que ‘ganhou de Frank Sinatra’. Pouco tempo atrás, tinha sido ‘o relógio que recebeu de Fred Astaire’. Antes de me despedir, fez um apelo: queria voltar à mídia, para ser convidado de novo a sapatear. Era com dança e aplausos, me disse, que ele queria viver.”
Bob Lester no apartamento onde morou nos últimos anos de vida, em Niterói
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