Por Silvio Essinger
RIO - Houve quem virasse mito popular e quem sofresse com a pecha de maldito. Quem construísse frutífera carreira e quem tivesse que se contentar com uma discografia esparsa. Quem resistisse neste planeta e quem se fosse precocemente. Em comum: a criatividade irrefreável e o fato de terem lançado seus LPs de estreia em 1973. “Krig-ha, bandolo!” (Raul Seixas), “Secos e Molhados”, “Pérola Negra” (Luiz Melodia), “Manera fru fru, manera” (Fagner), “Eu quero é botar meu bloco na rua” (Sérgio Sampaio), “Ou não” (Walter Franco), “João Bosco” e “Luiz Gonzaga Jr.” chegam aos 40 em 2013 com uma cara de menos de 20. Diferentes em suas propostas, mas sempre questionando as fronteiras da música popular brasileira, esses discos seguem influenciando novas levas de músicos e suscitando a pergunta: afinal, como é que tanta gente boa apareceu assim, ao mesmo tempo?
— Havia um espírito libertário, uma necessidade de se expressar numa época em que nada era permitido. E a música tinha o poder de forçar os limites — explica Ney Matogrosso, então cantor dos Secos & Molhados, grupo que começou no undergound paulistano, vendeu 900 mil cópias de seu LP de estreia, pôs 25 mil pessoas no Maracanãzinho em fevereiro de 1974 e, pouco depois, encerrou sua era dourada com uma cisão motivada por disputas entre os integrantes.
— A gente via que ia chegar alguma coisa — conta o produtor Roberto Menescal, que em 1973 era diretor artístico da Phonogram/Philips e acabou cuidando pessoalmente dos talentos que a gravadora pescou para lançar em LP: Raul, Melodia, Fagner e Sérgio Sampaio. — Já tinham se passado movimentos como a bossa nova, a Jovem Guarda e a tropicália. E depois, sempre vêm aquelas pessoas que não se enquadram, mas que estão na onda de renovação. Eles vêm soltos, solitários, mas fortes.
Nem tão solitários assim. O baiano Raul e o capixaba Sérgio já tinham participado juntos, em 1971, do excêntrico LP “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das Dez” e se destacaram, no ano seguinte, concorrendo em festivais com as músicas “Eu quero é botar meu bloco na rua” (Sérgio), “Let me sing, let me sing” e “Eu sou eu, Nicuri é o diabo” (ambas de Raul). Menescal estava de olho nos dois e os contratou para a Philips.
Sérgio foi o primeiro a estourar, com o compacto do “Bloco”, que vendeu 500 mil cópias. Seu LP, produzido por Raul, não chegou a ser um grande sucesso, mas deixou clássicos, entre o samba e o rock, como “Cala a boca, Zebedeu” e “Viajei de trem” (o disco deve ganhar um relançamento, remasterizado, da Universal Music, no segundo semestre). O LP do baiano, por sua vez, seguiu um caminho mais lento e acabou se tornando um dos discos mais conhecidos da música brasileira, com “Mosca na sopa”, “Metamorfose ambulante”, “Ouro de tolo” — sucessos de um artista que virou uma religião. Raul morreria em 1989 e Sérgio, em 1994.
A bordo das vozes de Gal Costa (“Pérola Negra”) e Elis Regina (“Mucuripe”) chegaram também à Philips, respectivamente, um carioca do Morro de São Carlos (Melodia) e um cearense de Orós (Fagner).
— Eu estava na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas — diz Melodia, atração do Teatro Net Rio nas próximas segunda e terça-feira, e artista cujas canções tinham chamado a atenção de nomes da intelectualidade como o jornalista Torquato Neto, o artista plástico Hélio Oiticica e o poeta Waly Salomão (que dirigia o show “Gal a todo vapor”).
— A gravadora queria que eu fosse bem lançado. E deixaram que eu fizesse o disco da minha maneira — revela Fagner, que teve Ivan Lins e Luiz Cláudio Ramos nos arranjos de “Manera fru, fru, manera”, disco que uniu rock, gêneros nordestinos e até um tanto de seresta, e que voltará às lojas este ano, em edição de luxo, remasterizada, incluindo a faixa “Canteiros”, que tinha sido banida de edições posteriores por questões com os herdeiros da poeta Cecília Meireles.
Se Raul Seixas era a mosca na sopa, o paulistano Walter Franco radicalizou, pondo uma mosca na capa de “Ou não”, exercício de vanguarda acústico que incluiu sua canção premiada em festival (a colagem de vozes “Cabeça”). O LP vendeu pouco, mas ganhou admiradores como Caetano e Arnaldo Antunes. Preparando-se para “botar o bloco na rua” em 2013, recuperado de um acidente vascular cerebral acontecido há poucos meses, Walter diz que hoje a censura estética talvez não permitisse que um artista estreasse com um disco como aquele:
— Ela é tão perigosa quanto aquela censura contra a qual nos colocamos na época. Ela age de maneira inconsciente.
Integrante da ala um pouco mais tradicional da MPB (como Gonzaguinha, que iniciou em 1973 uma série de LPs só interrompida por sua morte, em 1991), João Bosco também teve sua dose de vanguarda na estreia: o tropicalista Rogério Duprat (que, por sinal, produziu “Ou não”) dividiu os arranjos com o pianista Luís Eça.
— É um disco que parece ter dois lados, o das músicas com o Luizinho e as com o Duprat — conta João, que faz de quinta a sábado, no Teatro Rival, seu show de 40 anos de carreira.
Para a jornalista Ana Maria Bahiana, que acompanhou toda a movimentação de 1973, aquela era uma turma crescida sob a influência da MPB dos festivais e do rock, que tinha ganhado da Tropicália uma espécie de “licença para matar”.
— O que os unia era o desejo de fazer algo nos incrivelmente reprimidos, controlados, censurados anos 1970.
— Naquela época, era só deixar a porta aberta que os talentos chegavam — diz, saudoso, André Midani, então presidente da Phonogram, que pegou os grandes sucessos da leva, menos os Secos e Molhados. — Fiquei contrariadíssimo!
— Mandamos a nossa fita para todas as gravadoras — assegura Ney Matogrosso. — A Continental só nos contratou porque o (produtor da banda) Moracy do Val disse: se vocês não os contratarem, outra gravadora vai fazê-lo!
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