Lia de Itamaracá, ou Maria Madalena, conta como é mais do que uma cirandeira.
Por Dora Amorim (texto) e Ricardo Moura (Foto)
“Tia Lia”, “Mãe Lia”, “Lia da ciranda”. Na beira-mar de Itamaracá, uma mulher alta, com um pouco mais de 1,80 metros de altura, caminha chamando a atenção dos pedestres – que gritavam o seu nome. Com uma blusa amarela berrante, Lia de Itamaracá, batizada como Maria Madalena, estava em plena comunhão com o dia ensolarado. Naquela mesma manhã, quando me recebeu na sua ilha, a cirandeira, intitulada Patrimônio Imaterial de Pernambuco desde 2005, recepcionou 15 turistas em casa. Acordou e percebeu o murmurinho do outro lado do portão. Ao chegar mais perto viu as sombras e abriu a porta. "É ela, é a Lia!", teriam gritado.
A filha mais famosa da Ilha de Itamaracá nos levou ao Centro Cultural Estrela de Lia, desativado desde 2009. Antes, ela organizava cirandas todos os sábados e, ao longo da semana, eram realizados encontros e oficinas no local. A falta de incentivo, no entanto, fez a cirandeira paralisar o projeto e o lugar foi ficando, aos poucos, esquecido. Foi lá, à beira-mar, que nos reunimos para falar sobre a vida e os carnavais de Lia e sua ilha. Saudosa, a cirandeira se lembrou da infância, quando os blocos tomavam as ruas, alegravam as famílias e animavam a praia.
“O Carnaval era muito animado, cheio de blocos, algumas manifestações de Olinda vinham de lá pra se apresentar aqui, mas com o tempo foi se acabando. Hoje temos o Bloco As Catraias, o Bloco do Bode, ainda existe alguma coisa...”, lembra Lia. Atualmente, o Carnaval de Itamaracá reúne cerca de 30 blocos de frevo, trios elétricos e cortejos, sendo As Catraias, lembrado pela cirandeira, o maior dos blocos, levando 50 mil foliões às ruas da cidade. “Fui chamada para desfilar (no Bloco As Catraias) e gostei, tem senhoras de idade, meninos, as famílias vão. Mas, depois do Carnaval é mais fácil encontrar as cirandas, o coco de roda, o cavalo marinho. Aqui tem e tinha muitas tradições boas”.
Em 2012, a cirandeira abriu a folia de Itamaracá com uma apresentação no Polo Pilar. O Carnaval está no sangue dela, mas nem sempre foi foliã de carteirinha. Quando era menina, ela e a irmã iam para Olinda ver a saída dos blocos Elefante e Pitombeiras: “Não perdia um ano”, recorda. Depois do desfile, a jovem voltava para a ilha e acabou-se o Carnaval, não gostava de dançar ou se fantasiar. Mas tudo mudou quando a cirandeira se casou com um porta-estandarte do Maracatu Elefante. O marido Antônio convenceu a artista a visitar o maracatu sem muitas expectativas. E então Lia se encantou.
“Só me meti com o Carnaval, porque meu esposo fez a minha cabeça para conhecer o Maracatu Elefante. Eu disse que não ia dançar, pois não gostava de Carnaval. Comecei a ver aquela coisa bonita, todo mundo dançando, as baianas, aquelas mulheres, as crianças e pensei como tudo era lindo. Assim, a diretora do maracatu me colocou para dançar e eu pensei: 'Me lasquei'. Ela fez a minha roupa e me soltou no meio da roda como baiana rica. Logo como baiana, foi uma riqueza! Eu gostei tanto de desfilar nesse maracatu que eu lembro até hoje, desfilei duas vezes!”, comenta com entusiasmo.
Lia de Itamaracá também gosta de se lembrar do passado, quando a ilha era repleta de casas de palha e ela brincava na areia preta, em frente à casa de Santino de Barros Monteiro, patrão da sua mãe, considerado até hoje o seu pai de criação. Lia recorda ainda que começou a cantar aos 12 anos, encantada pelo pastoril e pelo cavalo marinho. Pouco depois, com a mesma idade, a artista teve contato com a ciranda: “Fui conhecendo e entendendo como funcionava vendo os outros cantarem”. Depois disso, ela nunca mais deixou de cirandar. No ano seguinte, conheceu a cantora Teca Calazans, que veraneava em Itamaracá. Ao escutar os cantos de Lia, a amiga fez os versos:
“Essa ciranda quem me deu foi Lia/
Que mora na Ilha/
De Itamaracá”
Um hino da ciranda de Pernambuco, a canção intitulada “Lia” veio como um presente e abriu as portas para a pernambucana. “A ciranda é uma dança do amor”, falou olhando fixamente para o mar, e depois olhou para mim e sorriu como se estivesse falando alguma tolice. Não era. A partir da figura de Lia, a ciranda realmente se tornou uma dança do amor, do toque, da aproximação. “É uma música forte, ela nunca se acaba, você pode colocar qualquer música, a ciranda não fracassa, é sempre uma cultura forte. Quanto mais cirandeiro tiver, mais ela vai avante”, diz.
GUERREIRA
Lia tem orgulho da sua ciranda e da sua ilha. Foram as ondas do mar de Itamaracá que inspiraram as suas canções e a tornaram conhecida. No entanto, ela lamenta a falta de sucessores, não há ninguém na sua família que se interesse pelo legado. O neto disse a uma repórter que seria o responsável por dar continuidade à ciranda, mas logo se desinteressou. Ninguém da ilha ainda apareceu. Por enquanto, a cirandeira se prepara para lançar a campanha “Vamos cirandar”, voltada a arrecadar recursos para o Espaço Cultural Ciranda de Lia e para a ciranda de Itamaracá.
“Sou uma guerreira, meto a cara no mundo”, diz ela, ao se lembrar dos muitos anos de carreiras e falta de patrocínio. Mesmo assim, nunca deixa de falar com alegria sobre a música e a vida em Itamaracá. “Às vezes gritam: ‘Dona Selma do Coco’, e eu penso: ‘Esse povo deve estar doido’. Mas respondo do mesmo jeito. É tudo da cultura”, fala sorrindo.
Depois da entrevista, demos uma carona para Lia até o castelo, como chamou sua casa. Da porta, ela acenou e pediu muito obrigada. Linda e de amarelo, a filha ilustre da Ilha de Itamaracá brilhava naquela manhã, três semanas antes do Carnaval.
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