segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

ESTUDANDO A MPB: REFLEXÕES SOBRE A MPB, NOVA MPB E O QUE O PÚBLICO ENTENDE POR ISSO - PARTE 03

Por Rafael Machado Saldanha 


RESUMO: Este trabalho pretende discutir a evolução do uso da sigla MPB (Música Popular Brasileira), desde sua popularização, nos anos 60, até os dias de hoje, dando ênfase para sua ramificação recente conhecida como “Nova MPB”. Também se buscou compreender como se dá a recepção por parte do público brasileiro, procurando contrastar as informações obtidas nas pesquisas bibliográficas com a opinião de ouvintes de MPB reunidos através de um fórum da Internet. Palavras-Chave: Música Brasileira – Estudos da Recepção – MPB – Nova MPB 


1.3. Tropicalismo: Uma mudança de rumo


A partir de 1966, temos a “crise do paradigma nacional-popular e abertura para experimentalismos formais e novos conteúdos poéticos“ (Napolitano, 1999:17). É desta época o debate na “Revista da Civilização Brasileira” onde Caetano Veloso falou da necessidade da retomada de uma “linha evolutiva” da música popular brasileira de onde a Bossa Nova havia parado. Essa afirmativa teve uma repercussão extremamente negativa por ter sido entendida de maneira valorativa, que privilegiava o samba (enquanto matriz da Bossa Nova) em detrimento de outros gêneros musicais brasileiros, como o Frevo ou o baião, o que não era o caso. A ideia está clara na fala do poeta e compositor Antônio Cícero:

O dado mais interessante da bossa nova – não do ponto de vista estético,
mas do ponto de vista puramente intelectual – era precisamente sua novidade.
Enquanto toda música popular brasileira – praticamente toda música
popular, com a exceção notável da americana – queria ver-se como tradicional,
a bossa nova jactava de ser nova: e, evidentemente, o era.
Quando, portanto, Caetano, ao falar da “linha evolutiva da música
popular brasileira”,se refere à linha que vai do samba á bossa nova,
ele o faz não porque fosse essa a única linha evolutiva possível (...)
mas sim porque de fato a bossa nova tinha sido,conscientemente,
a mais ambiciosa e bem-sucedida das utilizações “da modernidade musical...
na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente,
da música popular brasileira”11 (Cícero, 2003:202-203).

Outra interpretação é a de que a “linha evolutiva” seria somente um nome para “sintetizar o processo de ‘autoconsciência’ estética e ideológica da música brasileira”(Napolitano, 1999:18).

Uma ideia que também aparece repetidamente nos debates dessa época é a de “impasse”, em contraponto à de “evolução”. Napolitano define quatro pontos que esclarecem os impasses surgidos no campo da MPB dos anos 60.

a) “impasse” como redefinição dos parâmetros culturais e estéticos para pensar a nação e, por conseguinte, fundamentar uma atuação político-cultural afirmativa;
b) “impasse” como redefinição em relação ao papel político da arte e do artista (ou da cultura e do intelectual) numa sociedade de classes cada vez mais orientada para o mercado; 
c)”impasse” como necessidade de equacionar a relação “forma-conteúdo”, assumindo os desafios de afirmar a obra como resultado de uma pesquisa estética e como portadora de uma mensagem ideológica, duplamente orientada: para o próprio conjunto de artistas/ intelectuais (obra como síntese programática) e para o conjunto da nação-povo, inicialmente entendida como sinônimo dos segmentos sociais mais desfavorecidos (obra como portadora de uma mensagem);
d)”impasse” como necessidade de organizar os termos do debate em torno do novo contexto político-ideológico que se impusera após o golpe militar de 1964, obrigando o artista-intelectual que se propunha a pensar a nação a se definir frente ao problema do autoritarismo e da modernização capitalista, dinâmicas que se impuseram no rastro dos projetos nacional-reformistas derrotados. (Napolitano, 1999:21-22).

A solução proposta para estes “impasses” e continuidade para a “linha evolutiva” vem em 1967 com o Movimento Tropicalista. Liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, o Tropicalismo vem defendendo a retomada de uma “postura internacionalista e moderna na música popular, em contraposição aos ideólogos do ‘nacional-popular’”(Naves, 2000:42), que teria tido como referência anterior a Bossa Nova, tendo como figura-mestra João Gilberto. Porém, não havia por parte dos tropicalistas uma identificação com a postura contida, evocativa do cool jazz americano, que se tinha como marca dos bossanovistas 12. Alguns saúdam o tropicalismo justamente como volta do “excesso” à música, numa postura que remeteria aos artistas modernistas brasileiros, sobretudo ao poeta Oswald de Andrade.

Oswald de Andrade e seu “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” parecem nortear o olhar dos tropicalistas para o uso das informações tradicionais na construção de um novo pensamento acerca da nação. Ao abrir dizendo “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”(Andrade, 1970:5) o poeta está direcionando um olhar não só ao que é comumente exaltado, mas ao que é propositalmente esquecido nas narrativas nacionais. Esse “novo olhar” dos tropicalistas significava, musicalmente, uma ampliação das influências válidas em nossa música, como diz Naves:

No movimento tropicalista, a tradição musical é valorizada, embora se faça um recorte diferente dos elementos culturais a serem utilizados. A concepção tropicalista de “riqueza cultural” abrange desde o rock alienígena aos ritmos regionais já consagrados, e mostra-se flexível o suficiente para incluir o kitsch como um item a mais do tesouro nacional. (Naves, 2000:42)

Essa ampliação não foi bem recebida nos círculos mais radicais da recém criada MPB. Artistas mais ligados às esquerdas políticas acusaram duramente os tropicalistas de fazerem música “alienada” e de estarem servindo aos interesses da ditadura. Essa hostilidade contagiou também a audiência, que vaiava os artistas do movimento em suas participações nos festivais de música dos anos de 1967 e 1968. Essa antipatia se dava por uma posição identificada por Caetano Veloso em 1968, em entrevista a Augusto de Campos, como “resguardo”, definido por Antônio Cícero como “ato pelo qual, por medo ou impotência, se resguarda, isto é, se põe a salvo, se defende, se poupa, se isola alguma coisa. Em arte, o que se quer resguardar são, ostensivamente, sempre as formas: as formas de se fazer e as formas das coisas que são feitas.”(Cícero, 2003:209), e complementa dizendo que no caso, mais do que a destruição, o que se teme é “a descoberta de que outras formas são possíveis”(Cícero, 2003:209).

Porém, apesar de terem sido rejeitados pelos setores radicais, os artistas do movimento tropicalista se enxergavam e eram enxergados como pertencentes à MPB, e isso foi fundamental para seu sucesso, pois como explica Cícero, se o tropicalismo não fosse visto como interior à MPB

As canções que ele produzisse, como o iê-iê-iê, não chegariam a afetar
a MPB, que se manteria em seu resguardo. Ora, o fato é que as
canções tropicalistas não adquirem todo o seu sentido e sua força
senão quando são consideradas como modificação, agitação e
transformação revolucionária da (...)MPB, com a qual se confundem
no momento mesmo em que dela tomam distância para comentá-la.
O público brasileiro aceita essas canções como pertencentes à MPB
por reconhecê-las como suas e por amá-las e admirá- las (...). As músicas
tropicalistas são brasileiras demais e boas demais para
serem excluídas da MPB. (Cícero, 2003:212).

O movimento acabou se desfazendo em 1969, com a prisão e exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Porém, suas modificações na estrutura da MPB já haviam sido incorporadas, e mesmo após o fim do tropicalismo, aqueles artistas que haviam participado deste continuaram a ser considerados como artistas de MPB. O conceito amplo do que significava a sigla, que agora abarcava do samba ao rock, já estava consolidado, e foi com este que a MPB iniciou seu processo de institucionalização.

 Como já foi dito, os artistas de MPB não viam problemas em se utilizar da mídia para se promover, e com o Tropicalismo, diminui também o preconceito quanto à utilização de influências advindas da chamada “Cultura de Massa”. Como coloca Wisnik

(...)o tropicalismo promove um abalo sísmico no chão que parecia sustentar
o terraço da MPB, com vista para o pacto populista e para as harmonias
sofisticadas, arrancando-a do círculo do bom gosto que a fazia recusar como
inferiores ou equivocadas as demais manifestações da música comercial,
e filtrar a cultura brasileira através de um halo estético-político
idealizante, falsamente “acima” do mercado e das condições de classe.
(Wisnik, 2005:31).

Em texto originalmente escrito ainda nos anos 60, Edgar Morin previa que da própria Cultura de Massa surgiria uma esfera que emularia a “Alta Cultura” (Morin, 1997a). Pelo espaço que ela ocupa do mercado fonográfico e no imaginário brasileiro deste período, podemos enxergar a MPB como essa esfera em nosso país, no que Napolitano parece concordar dizendo: “Adquirindo legitimidade perante a hierarquia cultural vigente, a MPB foi incorporada como signo de ‘alta’ cultura por uma parte substancial da elite cultural, política e econômica do Brasil”(Napolitano, 1999:13). A causa da aparente tranqüilidade com que se deu este processo é sugerida por José Miguel Wisnik em seu famoso artigo “O minuto e o milênio ou Por Favor, professor, uma década de cada vez”, onde ele expõe as peculiaridades de nossas relações entre música popular e erudita comparadas às relações traçadas na Europa.

Ora, no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de recados, pela sua capacidade de captar as transformações da vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão política e sexual explícitas, e nem às outras pressões que se traduzem nas exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento estreitamente concebido. (...). No Brasil, a música erudita nunca chegou a formar um sistema onde autores, obras e público entrassem numa relação de certa correspondência e reciprocidade. (Wisnik, 2005:29)

 É justamente essa “legitimidade da alta cultura” que possibilita à MPB se tornar uma instituição ao passo que começa a superar seus “impasses” internos.


1.4 – O pós-tropicalismo

 Para a MPB, os anos 70 começam sob o signo da crise. O Ato Institucional número 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, acirra a censura e diminui os já restritos direitos civis no país. Caetano Veloso e Gilberto Gil começam a década exilados em Londres. Na capital inglesa, a produção dos dois seguem caminhos bastante distintos. Gil toma contato com o reggae e com o rock inglês daquele momento. Já Caetano se fecha, compondo – em português e inglês – obras entristecidas que falam sobretudo de sua saudade do Brasil. Os dois só retornariam ao Brasil em 1972. Chico Buarque também deixou o país ao final da década de 60, em um auto-exílio em Roma, que terminaria no meio de 1970.

 A música seria ainda atingida pela crise do mercado fonográfico, que fez com que as gravadoras reduzissem drasticamente os investimentos no setor. Com isso, houve uma mudança também na função dos Festivais de música promovidos pelos canais de televisão. 

Os festivais eram, basicamente, a grande vitrine onde o artista se mostrava exatamente ao seu público em potencial. E, como decorrência, o supermercado das gravadoras, que ali podiam escolher, com estreita margem de erro, seus novos produtos, já testados pelo confronto com o público. (...) A censura e a repressão direta, com prisões e exílios, tiraram dos festivais sua função de ponto de encontro e reduziram-nos a apenas feiras para novas contratações. Mas, com a recessão da indústria do disco – da qual ela só se refaria a partir de 1974/75 –, até esse papel se tornou supérfluo.(Bahiana, 2005a:42).

 Isso fez com que os primeiros anos da década fossem dominados por artistas que já faziam sucesso nos anos 60. A MPB era colocada então como a voz dos setores médios da  sociedade, tanto por ter seu público cativo entre os jovens de classe média com acesso à educação superior, quanto por seus artistas serem – em sua maioria – oriundos deste setor. Um termo muito utilizado à época para se referir ao tipo de música que se destacava dentro do campo da MPB era “música universitária”. A primeira geração de “música universitária” seria aquela que havia iniciado a construção, ainda nos anos 60, da instituição MPB, com Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, todos com passagem pela academia (embora destes quase nenhum tenha se formado – ao menos naquela época – abandonando os cursos para se dedicarem à carreira musical).

 A segunda leva, que surgiria nos festivais do início da década de 70, seria marcada pela maior pluralidade. Enquanto a geração anterior era composta por artistas do eixo Rio-São Paulo (uma exceção seriam os baianos, mas mesmo estes já haviam se instalado no sudeste antes de começarem a se arriscar mais seriamente na carreira musical), essa nova safra seria de artistas vindos de diversos estados da região nordeste, como Fagner, Belchior e Ednardo (Ceará), Elba Ramalho e Zé Ramalho (Paraíba), Geraldo Azevedo e Alceu Valença (Pernambuco). O impacto das revoluções musicais não haviam se dado da mesma forma em todos os lugares, o que ficou claro no som destes artistas.

(...) enquanto no Rio e em São Paulo parte da libertação tropicalista incluía a licença para explorar o rock, no Nordeste essa liberdade significava a eletrificação de tudo o que já estava à mão (ou no ouvido): baião, coco, xaxado, martelos, maracatus, frevos. A mistura ferve no início dos anos 70 e, a partir de 1975, é filtrada afinal para o sul, numa curiosa volta ao princípio. (Bahiana, 2006a:266).

 A jornalista Ana Maria Bahiana destaca o ano de 1972 como o ano de entrada da “terceira geração de universitários”, dos quais se destacavam Gonzaguinha e Ivan Lins. Essa inserção ainda se deu via festivais, uma vez que estes artistas se viam como “Parcela escolhida da criação musical do país, detentora da continuidade da ‘linha evolutiva’, boa demais para se submeter aos ‘vexames’ dos programas de calouros e das estações de rádio” (Bahiana, 2005a:43). Reunidos em um movimento chamado M.A.U. (Movimento Artístico Universitário), estes artistas passam a estrelar um programa de TV na Rede Globo, chamado “Som Livre exportação”, de curta duração, mas que garante a eles popularidade suficiente para que pudessem seguir suas carreiras posteriormente.

 Outra tendência dentro da MPB do início dos anos 70 era a dos “malditos”, artistas ligados à contracultura, que eram bem avaliados pela crítica, mas um fracasso de vendagem. Destes podemos destacar os vanguardistas Walter Franco, Jards Macalé e Jorge Mautner (Napolitano, 2002:8). Outro elemento interessante da música deste período é a maior inserção da mulher não só como intérprete, mas também como compositora.

A presença da mulher como força de produção, na música, ultrapassando
o papel de mera intérprete de canções alheias (e masculinas), é um dado importante
da década de 70. Evidentemente não pertence a ela com exclusividade: há Chiquinha
Gonzaga no início do século e Dolores Duran nos anos 50, para citar dois exemplos.
O que se viu nesta década foi o aparecimento de uma quantidade considerável
de mulheres compondo – e, de imediato, nos dois anos finais do período,
uma encampação do fato pela indústria do disco, que, revertendo a máxima
até então em uso, “mulher não vende disco”, passou a investir nas novas criadoras,
na tentativa de empacotar e vender mais um produto que, possivelmente,
atendia a novas necessidades do mercado. (Bahiana, 2005a:49-50).

Apesar da forte ação da censura, os temas políticos continuam em voga nas canções dos primeiros anos da década de 70, contando com subterfúgios para tentar driblar a repressão do governo militar, o que “ajudou a construir a mística da MPB como espaço cultural por onde o político emergia” (Napolitano, 2002:3). Porém mesmo essas estratégias foram se enfraquecendo à medida que o órgãos censores agiam.

Nos anos 70, não havia clima para a criação artística e, mesmo quando
estatisticamente os problemas com a censura se reduziram, seus efeitos sobre toda
uma nova geração de criadores permaneceram irreversíveis. Podados
em suas primeiras investidas, estes jovens fatalmente se enquadraram
na autocensura. Para eles, o certificado de liberação era algo tão
normal quanto a carteira de identidade.(Autran, 2005:88)

Outra força coercitiva que atuava no período, porém em sentido contrário, partia das esquerdas ortodoxas: as chamadas “patrulhas ideológicas”. A expressão, cunhada por Cacá Diegues em entrevista ao jornal Estado de São Paulo em agosto de 1978, nomeava setores artísticos que perseguiam autores de obras acusadas de serem “alienadas” ou “adesistas” – ou seja, de prestarem serviço à ditadura militar. O cartunista Henfil tinha até mesmo um Cartum regular no Pasquim – o “Cemitério dos mortos-vivos” – onde ele “enterrava” simbolicamente os artistas que violavam as regras de conduta política do momento. Belchior, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee foram algumas das vítimas do desenhista mineiro, que batizou o grupo de “patrulha odara”. (Bahiana, 2006:292).

A partir de 1974, com o governo do General Ernesto Geisel, a promessa de abertura do regime levou a um arrefecimento da repressão, ou como disse Napolitano, “a política de ‘descompressão’ do regime militar exigia uma certa tolerância diante do consumo da cultura de ‘protesto’”.(Napolitano, 2002:5). Em 1976, várias obras que haviam sido proibidas nos anos anteriores foram liberadas e a censura às novas obras foi mais comedida.

Ao término da década, a instituição MPB está plenamente consolidada. A questão da evolução praticamente se resolve, pois como diz a crítica musical Ana Maria Bahiana

(...) a “linha evolutiva” da música brasileira não tinha sofrido nem
danos irremediáveis – como os anos sombrios da repressão faziam supor
– nem grandes progressos. A proposta de uma nova síntese
e de uma discussão constante sobre as relações criador/ indústria/ mercado,
anunciada pela Tropicália, simplesmente se viu completada e executada,
incorporada ao dia-a-dia. (Bahiana, 2005a:49)

Não só isso, mas passa a “significar uma música socialmente valorizada, sinônimo de ‘bom gosto’, mesmo vendendo menos que as músicas consideradas de ‘baixa qualidade’ pela crítica musical.” (Napolitano, 2002:4). Embora sua centralidade no mercado fonográfico venha a ser ameaçada por modismos como a disco-music e o funk-soul, seu papel no mercado de bens simbólicos do país está assegurado desde então.


1.5 – Ampliando as fronteiras: os anos 80 e o BRock

Logo no início da nova década, a MPB perde sua posição de principal produto dentro do mercado fonográfico. A partir de 1982, o novo movimento de rock brasileiro, que seria conhecido posteriormente como BRock17, passa a liderar as paradas de sucesso com bandas vindas do Rio de Janeiro e São Paulo (alguns anos mais tarde, seria a vez da cena brasiliense conseguir seu espaço). Não era a primeira vez que a música popular brasileira perdia essa condição (como vimos anteriormente), porém, um novo fato torna essa investida diferente. Com o movimento de abertura política, o BRock passa a ser visto como novo discurso representativo das juventudes brasileiras. A leitura no congresso nacional da música “Inútil”, da banda paulistana Ultraje a Rigor, pelo então deputado federal Ulysses Guimarães, selava a música das bandas da nova geração como trilha-sonora da redemocratização. A MPB tinha novamente um “outro”.

Diante disso, a postura dos MPBistas não foi de confronto, como havia acontecido na década de 60, e sim de aproximação.

A sigla passou a ser adotada de modo mais amplo. (...) Seu sentido restritivo
do início se diluiu, permitindo que, quando nos anos 1980 o rock nacional ganhou
novo alento, seus representantes fossem considerados, sem maiores problemas,
como parte integrante da música popular brasileira, Também foi nessa década
que ouvi da cantora Joyce a expressão MPB-chato, para designar músicos
demasiado apegados a paradigmas estéticos nacionalistas. (Sandroni, 2004:30)

Em 1986, João Gilberto grava para a trilha sonora de uma novela da TV Globo a música “Me chama”, de Lobão, mas o faz “do seu jeito cool e bossa nova”(Motta, 2001:359). No mesmo ano, Caetano Veloso canta em seu show “Caetano Veloso e Violão” a música da banda Barão Vermelho, “Todo amor que houver nessa vida” – que já havia sido gravada por Gal Costa em 1985 –, e “Totalmente demais”, do Hanoi-Hanoi, faixa que deu nome ao disco ao vivo lançado pelo cantor baiano naquele ano. Ainda em 1986, Gilberto Gil escreve uma letra para ser gravada pelos Paralamas do Sucesso, “A Novidade”. Podemos entender estes fatos como a MPB, que ainda ocupa a posição dominante dentro do campo musical brasileiro, legitimando alguns produtos da geração BRock, elevando-os a seu status privilegiado dentro do imaginário cultural do país. Gradualmente, o ex-vocalista do Barão Vermelho Cazuza, em carreira solo desde 1985, é enxergado como um híbrido, alguém que faz a ponte entre o rock e a MPB. Outros artistas vão conseguir este mesmo reconhecimento em um momento posterior.

A partir de 1988, o BRock entra em declínio, e as vendas despencam, colocando em crise as empresas da indústria fonográfica. Porém, a MPB não conseguiu reconquistar o espaço central do mercado, sendo este ocupado por modismos como a Lambada (1988/89) e a música sertaneja (de 1990 em diante).


1.6 – Uma volta às origens?

Os anos 90 começam com a MPB ainda longe de ter a mesma importância no mercado fonográfico das décadas de 60 e 70. Após a era do Sertanejo (que durou até 1992) veio a moda do pagode romântico e depois da Axé Music. A MPB, numa atitude de resguardo, começou a se retrair e a ser identificada não como uma sigla que representava a diversidade da música brasileira, mas correspondendo cada vez mais a um tipo de música específica.

(...) ao voltar ao Brasil, perto do final dos anos 1990, defrontei-me com uma
nova maneira de encarar a MPB, um novo significado atribuído à sigla. Ela
passou a ser compreendida também como etiqueta mercadológica. (...) A partir
dos anos 1990(...) a afirmação “gosto de MPB” passa a só fazer sentido
se interpretada como adesão a um segmento do mercado musical.
(Sandroni, 2004:30).

Mas que tipo de música seria este, que a partir do final do século XX conseguiu dominar a sigla que em um momento anterior chegou a representar toda a produção musical do país? Uma pista valiosa para se chegar a essa noção se tem ao se avaliar aquela que é tida como a grande cantora de MPB da década, Marisa Monte.

Em seu livro de memórias, Nélson Motta – o descobridor da cantora – fala do processo de escolha do repertório do primeiro show de Marisa:

Ouvimos centenas de músicas de diversos estilos e gerações (...) apesar do
generation gap, tínhamos uma grande identidade de gosto musical.
Além de João Gilberto, Marisa adorava Custódio Mesquita,
sofisticado compositor dos anos 30/40, um dos favoritos de João. (...) 
De Custódio para Tim Maia, outro favorito (...). Na sequência, “Negro gato”,
como um blues bem pesado, rascante e sensual, Billie-Holiday-no-Estácio.
Outras boas descobertas: a pouco conhecida “Samba e amor” (...), que
Chico Buarque compôs em seu exílio italiano, em 1970, também a ser levada em
heavy blues, sexy e preguiçosa. E o hit brega de Peninha, “Sonhos”,
reabilitado por uma regravação recente de Caetano Veloso. Mas a versão
de Marisa teria uma dramaticidade intensa e ansiosa, deliberadamente over,
como um quase tango, o ambiente musical mais adequado para sua letra
de perda e abandono. (...) Marisa também gostava muito de muita coisa dos
melhores autores da sua geração, como Renato Russo, Cazuza, Lobão e
a rapaziada dos Titãs, que tinha acabado de lançar um novo disco.
Em Jesus não tem dentes no país dos banguelas, encontramos
um clássico instantâneo do rock brasileiro, de Arnaldo Antunes,
Marcelo Fromer e Sérgio Britto, que avançava a discussão política
em forma e conteúdo (...). “Comida” foi imediatamente incluída no repertório,
numa ambientação mais jazzística. Junto com uma nova canção de Lobão,
de seu recém-lançado e estupendo Lp Vida Bandida, com letra de Bernardo
Vilhena, que também deu nome ao show de Marisa: “Tudo veludo”. (...)
Em seguida escolhemos dois grandes sambas, que Marisa conhecia desde
criança, quando seu pai, Carlos Monte, era diretor da Portela: o belo
samba-enredo “A lenda das sereias” e o lento e pungente “Preciso me encontrar
(Deixe-me ir)”, de Candeia. E fechamos o repertório com um blues de
Rita Lee e Paulo Coelho, “Cartão-postal”, uma linda versão de Augusto de
Campos para a “Elegia”, de John Donne, musicada por Péricles Cavalcanti em
ritmo de beguine, um clássico de Os Mutantes, “Ando meio desligado”, e uma
marchinha de Assis Valente lançada por Carmem Miranda,
“Good Bye Boy”. (Motta, 2004:419-421)

Neste fragmento, podemos ver que o repertório era uma verdadeira síntese da história da MPB até aquele período, não só pela músicas escolhidas em si, mas como pelas atitudes. Temos a reverência ao cancioneiro tradicional típica da fase nacional-popular dos anos 60, os expedientes de pastiche inspirado no tropicalismo, um pouco do poético-político dos anos 70 e as concessões à música pop e rock, presentes nos anos 80. Ainda no texto, vemos notações das referências que guiavam os arranjos das versões (“Billie-Holiday-no-Estácio”, “ambientação mais jazzística”), que nos dão mais um indício do efeito que se pretendia atingir: um ambiente de sofisticação sem perder contato com a brasilidade.

Marisa Monte foi o grande nome dos anos 90 no gênero, seguida por seus parceiros – Arnaldo Antunes (em carreira solo após o Titãs – a partir de 1992 – com um trabalho fortemente inspirado na poesia concreta) e Carlinhos Brown (percussionista baiano que já havia feito parte da banda de acompanhamento de Caetano Veloso, com obra de grande apelo rítmico) e do cantor e compositor pernambucano Lenine.

O caso de Arnaldo Antunes é interessante. Vindo de uma banda de rock, o artista passa a desfrutar de outro tipo de popularidade e status quando se coloca como artista de MPB. A “agressividade” associada ao rock dá lugar a uma aura de “sensibilidade”, de “intelectualidade” quando este se afasta de sua banda. Vale lembrar que tal status não se estende aos ex-companheiros nem quando estes passam a gravar discos no formato acústico e se apresentar vestidos de forma mais sóbria. 

Na virada do século XX para o século XXI, devido à explosão da pirataria, artistas de MPB começam a voltar aos topos das listas de vendagem, justamente devido ao caráter fiel de seu público. Como identifica Napolitano, “A MPB ‘culta’ ofereceu a esta indústria a possibilidade de consolidar um catálogo de artistas e obras de realização mais duradoura e inserção no mercado de forma mais estável e planejada”. (Napolitano, 2002:4-5). Assim, o interesse na sigla surgida nos anos 60 adentra o novo milênio renovado.  



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