segunda-feira, 30 de outubro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




39 - Humor

Meu pai, por ser dotado de um senso de humor inteligente e mordaz, era grande conta-dor de histórias e casos engraçados e usava muito bem isso nos shows. Quando trabalhamos juntos, eu sempre insistia para ele ficar um tempo sozinho em cena contando seus famosos casos e fazendo piada com as-suntos que envolviam a sua própria vida. A plateia se divertia. Era um sucesso. Contava ele que, quando minha mãe morreu, os jornais e revistas estamparam nas primeiras páginas a fotografia dela. O país inteiro chorava, as pessoas muito emocionadas com o fim de um sofrimento de meses. Ele estava parado na frente de uma banca quando foi abordado por um estranho: “Pois é, seu Herivelto, que tristeza! Já foi o Nilo Chagas, agora está indo dona Dalva, só falta o senhor!”. Outra das suas histórias, que mostram a ingenuidade de certa parte do público, se passou no falecimento de Pixinguinha. Herivelto levava uma das alças do caixão junto com outros artistas, boêmios e companheiros queridos. Uma multidão seguia o cortejo. Perto da cova onde Pixinguinha ia ser enterrado, ele escondeu o rosto no braço e chorou, enquanto o povo todo, naquela contrição e dor, começava a cantar “Carinhoso”: Meu coração Não sei por que Bate feliz Quando te vê… Eis que de repente, a seu lado, alguém iniciou o seguinte papo com meu pai: “Veja só, seu Herivelto, que maravilha de homenagem! Pode deixar, fique certo que, quando for a sua vez, nós haveremos de cantar ‘Ave Maria no morro’”. Uma história engraçada, que acabou virando música, é a de Bené Nunes, grande pi-anista. Ele vivia com Oracina Correa e não saíam lá de casa. Chegavam ainda de manhã ao apartamento, por volta das nove horas, iam ficando para o almoço. Continuavam pela tarde afora. Anoitecia, minha mãe convidava para jantar e eles aceitavam . E nada de ir embora. Meu pai, que gostava muito de Bené, acabou fazendo um samba para ele:

Você vem
Você fica e não sai
Você veio tão cedo
Que até já almoçou
E depois pra fazer companhia
Você foi ficando
E até jantou
Já são sete horas da noite
Você só ensaia sair, mas não sai
Não entende as piadas que eu jogo
Se é por falta de adeus
Até logo, até logo
Se a dor que mora n’alma
No meu rosto se estampasse
Talvez à minha casa
Você nunca mais voltasse
Você é um castigo, e castigo eu não mereço
Pelo amor de Deus Esquece o meu endereço!

Bené ria muito toda vez que meu pai cantava o samba, principalmente quando Herivelto fingia que chorava ao dizer o finalzinho da música:

Pelo amor de Deus / Esquece o meu endereço!

Uma das primeiras músicas que meu pai compôs, ainda morando no Morro de São Carlos, tem uma história bem pitoresca. Foi feita por encomenda de um bloco carnavalesco do morro. Estamos falando de 1934, quando edição musical era apenas um sonho do artista. Era música para ser cantada no Carnaval, falando dos bondes e motorneiros, do meio de transporte da época. Tinha apenas a primeira parte composta:

Seu condutor din-din
Seu condutor din-din
Pare o bonde pra saltar o meu amor
Seu condutor…

Alvarenga, companheiro de Ranchinho, ouviu a música e se apaixonou por ela. Então chegou perto do meu pai e pediu: “Herivelto, o Ranchinho e eu vamos gravar um novo disco e quero incluir ‘Seu condutor’. Você me dá a música?”. “Claro, Alvarenga, é um prazer, é sua!” O tempo de Carnaval chegou e com ele o disco da dupla Alvarenga e Ranchinho. Só que com uma segunda parte que Herivelto não compusera. Ele entrou numa loja, pegou o disco, e qual não foi sua surpresa ao ver que seu nome não constava do selo como compositor. Procurou Alvarenga, mas ele não quis falar com meu pai. Indignado, Herivelto contratou um advogado e foram para o tribunal decidir a questão. Quando o juiz perguntou a Alvarenga se a música tinha sido composta por Herivelto, ele respondeu no ato: “Claro que sim!”. E o juiz: “Mas como é que você só colocou o seu nome no selo do disco, esquecendo o autor verdadeiro?”. “Mas, senhor juiz, eu gostei da música, pedi então pro Herivelto que me desse e ele me deu. Ora, deu, tá dado.” Meu pai riu muito de toda essa confusão. Mas não abriu mão de ter seu nome no disco como parceiro de Alvarenga. 



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